1º livro Capítulos para Apreciação
A SAGA DOS CEM ANOS
História de uma Família de Portugueses Emigrados para o Brasil
AMOR X AMBIÇÃO
Vol 1
Carmen Lucia Mastroeni Franzé
MmeKallu
1ª Edição
2012
AMOR X AMBIÇÃO
Romance Baseado em fatos reais
Em memória de todos aqueles
que inspiraram este romance,
o meu mais profundo respeito.
Nota do autor
Neste livro, os personagens e as cenas são fictícias,
criadas apenas para engendrar a história desta Saga,
baseada em relatos dos fatos por pessoas que os
vivenciaram, e, de outras, que os ouviram
em narrativas ao longo destes
cem anos de acontecimentos.
.
Agradecimentos:
Em primeiro lugar a Deus
por proteger a minha vida e a de minha família todos os dias.
E, em especial, agradeço ao meu marido; amigo paciente,
companheiro e grande incentivador.
Amo você!
.
E, meu imenso Carinho e Gratidão...
Para todos que contribuíram
para que este despretensioso trabalho
chegasse aos meus leitores.
Oferecimentos:
Ofereço esta obra aos meus familiares:
Meu marido, filhos, netos,
nora e genros
pela paciência, carinho e amor,
sem os quais, eu jamais conseguiria
concluir esta obra.
ÍNDICE
Introdução ...................................................Pág. 07
01 – Isabel ..................................................Pág. 09
02 – a família ..............................................Pág. 15
03 – a visita .............................................. Pág. 26
04 – a triste partida ..................................Pág. 40
05 – a pequena Amélia ...................... .....Pág. 63
06 – As artimanhas... ...............................Pág. 75
INTRODUÇÃO
O Brasil, desde meados do século XVIII, tornou-se o sonho de aventura para muitos europeus. Seus mais de 8.500 km2 de extensão, rasgados com bacias de redes fluviais abundantes, terras férteis e virgens, clima tropical, fartura de flora e fauna e facilidade de prestação de serviços pelos negros e nativos da região, eram fatores preponderantes para os aventureiros que sonhavam vir para a Nova Terra a fim de fazerem fortuna.
Desde então, a emigração de famílias e jovens de alguns países da Europa para o Ocidente, acontecia em massa. Os barcos a vapor transportavam passageiros emigrados, além de clandestinos que, escondidos nos porões, passavam fome, sede e corriam riscos, pois, quando descobertos, eram desembarcados na terra mais próxima ou colocados ao mar em barcaças que, à deriva nas marés, corriam risco de chegar a lugar algum. E, assim, os grandes vapores atravessavam o Atlântico no vai e vem de suas águas profundas, acalentando os sonhos de todos os emigrados.
Na época, portugueses, italianos e alemães foram os povos que mais acorreram para o Novo Continente, mais precisamente para a América do Sul onde, Argentina e Brasil eram os países que concentravam maior número destes imigrantes.
Em Portugal, mais precisamente na Ilha da Madeira, uma família, como tantas outras, sofria a angústia de ver seus jovens prepararem-se para a viagem de exploração, atraídos pelas maravilhas que amigos emigrados relatavam em suas missivas.
Jovens e cheios de ambição reconheciam a dificuldade de prosperarem na Ilha pela dificuldade de comercializar os produtos de suas culturas com a Europa devido à distância do Continente e também pela limitação de desenvolvimento atribuído à topografia muito acidentada, como é o relevo de todas as ilhas que compõem o arquipélago das Berlengas de Portugal.
Segundo alguns historiadores, as Berlengas mostravam, com seus cumes de altos fundos, serem restos de fragmentação do continente europeu. Teoricamente, nos primórdios dos tempos, esse continente estava ligado ao americano. Para esses historiadores, as Berlengas de Portugal, como o Botólito de Sintra e a linha de altos fundos que chega até o planalto dos Açores são testemunhas concretas dessa teoria. Para outros, a origem vulcânica das ilhas das Berlengas é a razão da riqueza do solo para a agricultura.
Na magnífica Ilha da Madeira, o clima subtropical favorecia a eterna primavera do lugar, e a riqueza do colorido de suas flores era a maior responsável de sua beleza. Beleza esta, tomada como compensação da própria natureza pela enorme pobreza da região, consequência não só da crise politica e social que atravessava, como também, pela topografia do terreno, e sua densidade demográfica, que dificultava ainda mais a prosperidade e o enriquecimento das famílias.
Estes fatores aguçaram, em muito, a emigração de ambiciosos jovens portugueses que, acalentados pelos sonhos e atraídos pela aventura do desconhecido, deixavam com pesar suas famílias.
Os Gonçalves, proprietários de uma Quinta na região litorânea da Ilha, cultivavam batata ou aveia e a uva, para suas vindimas; suas culturas preenchiam todos os espaços das encostas da propriedade, e o vinho era o orgulho da família desde os seus ancestrais.
Os Gonçalves eram uma das poucas famílias abastadas da região porque, além da Quinta na bela Ilha, possuíam no continente, em Lisboa, armazéns locados para comércio.
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Eram três os irmãos Gonçalves - Antônio, Pedro e José - que cuidavam da comercialização dos produtos, e Fernando, o pai, administrava a renda advinda das várias atividades.
Antônio, o mais velho, homem forte e bem apessoado, era alto, olhos grandes e negros, assim como, negros os fartos cabelos encaracolados, contrastando com a tez clara, emprestavam-lhe uma beleza peculiar. Com 29 anos, tinha personalidade forte e determinada.
Pedro, um ano mais novo, de estatura média, moreno claro, olhos azuis e de natureza mansa e cordata, era, como o irmão Antônio, cobiçado pelos pais de família e um forte concorrente às moçoilas casadoiras das ilhas e do Continente.
José, o mais novo dos irmãos, homem franzino e de estatura miúda, olhos castanhos e rosto de feições suaves, era de natureza pacata e muito cordata. Sua fraca determinação era colocada à prova no que se referia à filha Isabel, menina de nove anos que levava os traços delicados do pai e as feições atraentes de seu tio Antônio. Bem dotada e faceira, fazia o que queria com todos que a conheciam, bastando fazer uso de seu jeitinho matreiro, e de seus trejeitos de olhar com os grandes, negros e expressivos olhos que possuía.
Isabel, resultado de um casamento combinado entre as famílias Gonçalves e Pereira, era o mimo de todos daquela Quinta, parentes e serviçais, que viviam ali como se fossem membros de uma grande família.
Maria, esposa de José, moça bonita e de fino trato, era filha única do casal Pereira, de Lisboa. Estudou interna num colégio de freiras em Coimbra, muito famoso na educação e preparação de moças para a sociedade e o casamento.
Tudo era de muita felicidade para a família que vivia em perfeita harmonia na Quinta “Bela Vista” até que, num funesto dia, Fernando e Isabel, genitores dos irmãos Gonçalves, não sobreviveram a uma forte tempestade durante a travessia pelas águas do Golfo.
Com o trágico acidente, a tristeza veio lhes toldar a felicidade, não só pela perda dos entes queridos, mas, também, pela aflição que todos começaram a viver quando se conscientizaram de que nada mais impediria os irmãos de realizarem o antigo sonho de emigrarem, enfim, para o Ocidente.
Estes, que há muito sonhavam com esta aventura, foram sempre tolhidos pela avançada idade de seus pais. Agora, sem eles, começavam a pensar na real possibilidade de realizarem aquele desejo tão antigo.
Como muitos portugueses, os irmãos Gonçalves, Antônio e Pedro, recebiam cartas de amigos imigrados no Brasil, nas quais relatavam as belezas e riquezas naturais da nova terra. E contavam das facilidades de ali se estabelecerem, pelo fato de ser um país pouco explorado e carente em todas as áreas de trabalho, desde as acadêmicas até às culturas na lavoura e exploração de minérios, oferecendo, assim, grande abertura na diversificação de atividades em todos os campos: cultural, comercial, industrial, pecuarista, agricultura, mineração e profissões liberais.
José acalentava o sonho de acompanhá-los na campanha, porém, receoso com o pavor que Maria apresentava à simples menção de tal viagem, com tristeza, mantinha-se à parte de toda e qualquer prosa sobre o assunto. Preocupava-se com a saúde da esposa e sentia-a, muito sozinha sem a companhia de Izabel, a sogra, sua mãe, a quem ela fora tão unida desde o casamento. Por isso, José procurava compensá-la em atenção, principalmente agora, que lhe acontecia uma segunda gravidez.
Depois da tragédia com os pais, no intuito de animar a esposa, ele constantemente convidava os sogros, Emília e Joaquim, para temporadas na Quinta. Durante essas estadas, Maria parecia superar melhor o mal-estar. A companhia dos pais trazia-lhe muita alegria, apesar da preocupação que lhe causava a filha Isabel que, sempre muito mimada pelos tios e avós paternos, agora, com as frequentes visitas dos avôs maternos, tornava-se ainda mais mimada e autoritária.
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Mas, não era apenas a filha que lhe causava preocupação, também, o marido, que não conseguia disfarçar o entusiasmo que por vezes deixava transparecer de aventurar-se com os irmãos pelo Ocidente; e, o que a deixava em grande aflição era a espera da decisão dele em acompanhá-los ou não, na fadada aventura.
Maria sentia pavor à simples ideia de atravessar o oceano porque ali, na sua terra natal, e próxima de seus pais, sentia-se segura. -Valha-me, Deus Pai Todo Poderoso! Que este dia não chegue nunca, rezava Maria, implorando em desespero.
Por fim, depois de muitas lágrimas, dúvidas e reuniões, os irmãos decidiram que José e sua família ficariam na Ilha cuidando dos negócios, enquanto Antônio e Pedro iriam para o Brasil averiguar a veracidade das maravilhas que lhes contavam os patrícios. E, se tudo corresse como esperavam se estabeleceriam na Nova Terra e, então, os chamariam para que fossem ao seu encontro. E, decidido isso, começaram os preparativos para a tão esperada viagem que deu início a esta real narrativa da Saga dos Cem Anos, a história de uma família de Portugueses emigrados para o Brasil.
CAPÍTULO 1
ISABEL
-O que fazes aí, Isabel, trepada nesse banquinho, tentando lavar os pratos e molhando-se toda, pequena intrometida? Perguntava Ana, em sua eterna pose de açucareiro, com as mãos na cintura e a balançar a cabeça num pequeno sobe e desce característica de quando ralhava com alguém.
-Estou a ajudar-te com a louça para ver se hoje me levas para brincar com Rosita, como há muito tempo vens me prometendo, respondeu a menina com tanta veemência que, distraída, deixou espatifar no chão um dos pratos que lavava.
- Vê lá o que aprontaste, menina! Chispa já daqui, pois que nesse quebra-quebra de pratos que provocas, logo vai chegar o dia em que não os teremos mais para comer, ralhava Ana, descendo-a do banco, a fim de tocá-la de seus domínios.
-Como és exagerada, não, Ana? Até parece que quebro tantos pratos assim. Pois, se queres saber o que penso, fica ciente de que, se eu os quebrasse todos de uma vez, seria um grande favor que estaria fazendo à minha família. Pois que somos obrigados em todas as refeições a encarar estes pratos lascados, trincados e já todos bicados, só porque pertenceram, à minha bisavó, retrucou, sem perceber que Pedro, na porta, ouvia tudo, pasmo com a exaltação da pequena.
-Será que alguém poderia dizer-me o que está ocorrendo por aqui, para todo este estardalhaço?
-Ora, pois, meu tio, não vai adiantar nada contar ao senhor o que aconteceu, porque pressinto que também és daqueles que gostam de preservar todas essas velharias. Respondeu Isabel, saindo à procura da mãe, num menear de cabeça em revolta, gesto que favorecia o balanço de seus longos cabelos pretos e cacheados.
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Pedro, interrompendo sua saída, retrucou: - Ora, ora, pois... Se o problema é este, menina trata de te acalmares, pois que vamos já marcar uma ida até Funchal, para providenciarmos um novo aparelho de jantar.
Voltando-se feliz, Isabel perguntou ansiosa: - Vamos mesmo!... E podemos ir de Comboio, meu tio?
-Mas é lógico que sim e no transporte que tu queiras, minha menina! Pois, não gostaria de presenciar outra discussão por causa das velharias que ainda existem por aqui.
Ao dizer isso, Pedro ganhou um beijo estalado da pequena que pulara em seu pescoço para um apertado abraço.
Ana, que tudo observara, balançando a cabeça em reprovação retrucou com voz firme: - Não vejo necessidade desse gasto agora, sr. Pedro, esses pratos estão em quase perfeito estado e, se certas pessoas tomassem mais cuidado ao lidarem com eles, tenho certeza de que serviriam ainda para umas duas gerações.
Isabel, já ia protestar, quando Pedro contrapôs, indignado: - Realmente, minha velha Ana, como acabaste de dizer, “este aparelho está em quase bom estado”. Portanto, para mim basta esta frase para justificar a compra de algo mais moderno, fazendo assim o gosto da pequena.
-Não tem jeito mesmo, meu tio, eu tento ajudá-la em suas tarefas, mas qual o quê! Ela está sempre a esbravejar, como se eu fosse ainda uma criança, concluiu a menina, encantando o tio com a voz macia e os trejeitos no olhar.
Ana, parada, assistia àquele pequeno melodrama e, preocupada, contestou de forma que Pedro a ouvisse: - Isso ainda vai acabar mal, sr. Pedro! Vai acabar muito mal todo o excesso de mimos que vós dispensais a esta pequena.
Grande para nove anos, Isabel, de traços delicados, tinha um rosto bonito como se esculpido a cinzel. Olhos grandes e negros, salientados pelos longos cílios pretos, curvos e cerrados, nariz arrebitado e boca bonita, de lábios carnudos e bem moldados acrescentavam um charme todo especial à menina, que ainda era agraciada com uma farta cabeleira negra e cheia de cachos que, emoldurando lhe o rosto, caía generosamente pelas costas, em cascata.
Ana, prestando atenção e analisando o modo afetado que a menina tomava com o tio, percebia, com tristeza, que ela não era mais uma criança, pois já tomava conhecimento de sua peculiar beleza e faceirice, como também, a facilidade que tinha de conseguir o que queria, com seu jeitinho especial. Muito intrigada com a descoberta daquela nova faceta na personalidade da menina, Ana, com pesar, deixou escapar em tom deprimido: - Agora sim!... Agora sim, que esta pequena, descobrindo seus atributos, se tornará incontrolável.
Isabel sempre fora uma criança inteligente, de gênio forte, determinada, voluntariosa, impulsiva e muito mimada. Não podia ser repreendida em nada, que logo alguém acorria fazendo-lhe as vontades e, quando por alguma razão era contrariada, sempre dava um jeitinho de as coisas saírem a seu contento.
Ana, ao perceber as habilidades daquela criança, voltando aos afazeres na cozinha, repetia ainda mais preocupada: - Isso ainda vai acabar mal. Muito mal!
-Mamãe, tio Pedro vai levar-me até Funchal para escolher um novo aparelho de jantar, participava Isabel, entrando na sala de mãos dadas com o tio que, orgulhoso do que se propunha a fazer, aproveitava o momento por receber um pouco de atenção de sua menina.
Maria, largando o bastidor do bordado, sem entender a razão para aquele gasto, com olhar aflito, perguntou: - Mas por que a decisão de comprar algo que nós já temos e que nos serve a tanto tempo, querida?
-É tudo culpa de Ana, mamãe. Quebrei um prato, e foi o suficiente para ela soltar as feras sobre mim.
-Pelo que ouvi daqui, pareceu-me que a coisa aconteceu um pouco diferente do que me contas, pequena.
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-Ora, mamãe, está pondo a palavra dela contra a minha?
-Ah, Isabel, apenas gostaria que Pedro ponderasse e procurasse ver a real necessidade desse gasto no momento.
Pedro, entendendo as razões da cunhada, comentou: - O fato de eu me propor a fazê-lo, minha irmã, não é bem pela real necessidade de comprar ou não um novo aparelho de jantar, é, sim, ter oportunidade de fazer um mimo à minha querida sobrinha.
-Pois são esses mimos, o que me deixam tão preocupada, Pedro! O que já há muito tempo me incomoda é a exagerada atenção que vós - tios, avós e o pai - tendes com Isabel. Isso, com certeza, vai interferir em sua educação.
Ana, na cozinha, ao ouvir a observação da patroa, levantando os braços em vitória, gritou com alegria: - Muito bem falado, patroinha! Agora, peço a Deus que lhe dê muita firmeza para ir contra esse capricho de nossa pequena.
Todos na sala ouviram nitidamente o que dissera Ana, e Isabel, rubra de raiva, pensou: "-Essa velhota encrenqueira ainda não sabe com quem está lidando...” E percebendo que o tio e a mãe estavam estupefatos com o comentário da cozinheira, aproveitando a longa pausa, explanou: - Não é atrevida, essa senhora?... Deixem, pois comigo, que vou colocá-la em seu devido lugar.
Maria, chocada, levantando-se da cadeira com rapidez, falou com muita determinação: - Fica exatamente onde estás, Isabel! Não tentes dar um passo sequer em direção à cozinha, pois o que ouvimos cabe-nos perfeitamente bem, uma vez que precisamos ouvir a verdade sendo dita por outros, para tomar conhecimento do quanto temos errado na sua educação.
-Mas, mamãe!... A senhora não vai dar trela ao que diz uma criada, não é? Ela sempre foi muito enxerida nos assuntos da família, disse Isabel, sentindo-se acuada.
-Cala-te, menina, pois pelos anos que ela está conosco e pelo muito que nos quer bem, merece todo o nosso respeito, seja ela uma simples criada ou não. E pelo respeito e carinho que nos tem, jamais vou permitir que uma criança intrometa-se com ela injustamente, nem que seja a minha própria filha. Entendeste bem, Isabel? E, mal acabara de expressar o pensamento, sentindo-se extenuada, atravessava a sala em direção ao quarto quando, surpresa, ouvia de Pedro.
-Maria, eu sinto contrariá-la em tão sábias palavras porque, mesmo que ponderasse o fato, eu não vou perder a oportunidade de fazer este agrado à menina, pois tenho certeza de que, se eu não o fizer, Antônio, sem considerar sua opinião, comprará o aparelho mais luxuoso que encontrar pelos cinco continentes.
Maria, em total impotência, deixando pender a cabeça, vencida pela verdade que ouvia, murmurou:
-Faze, pois, como quiseres, meu irmão. Como quiseres!
Ana, que a essa altura da conversa encontrava-se ouvindo por traz da porta, ao escutar o final daquela prosa, decepcionada e furiosa, murmurou, voltando ao fogão: - Não, patroinha, essa não!... A senhora fraquejou de novo! Procurai ser mais forte, para não permitir que eles vençam sempre.
Antônio, que entrava na cozinha pela porta dos fundos, percebendo que algo não ia bem, com carinho, perguntou: - Diga-me, pois, o que de tão sério aconteceu para deixá-la neste estado?
-Nada, não Sr. Antônio, não é nada não, respondeu Ana, dando-lhe as costas.
Antônio, aproximando-se da pequena criatura e virando-a para observar-lhe o semblante, percebeu as lágrimas que lhe desciam pelas faces e, muito intrigado, insistiu:
-Dize-me, pois o que aconteceu, Ana, para deixá-la neste estado?
-Ahhh!!!... Sr. Antônio podeis desistir que não lhe contarei nada... Pois conheço o senhor de longa data e tenho plena certeza, de qual seria vossa posição neste assunto.
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Apesar de estar muito magoada com o que ouvira da menina, Ana resolveu intervir a favor de Pedro, uma vez que sabia que o fatídico aparelho de jantar seria comprado de um jeito ou outro.
Tomando as mãos do patrão, com humildade, pediu:
-Por favor, sr. Antônio, esse é um assunto entre a menina Isabel e vosso irmão Pedro. Por isso, peço-vos somente uma coisa..., peço-vos que o senhor, deixe desta vez ao sr. Pedro, a oportunidade de estragar um pouco mais essa pequena, já que são tão poucas as chances que lhe sobram para mimá-la.
Antônio, completamente aturdido, afastando-se, murmurou: - Ana, eu não consigo entender nada do que dizes, mulher.
-Isto em parte é muito bom, sr. Antônio, mas tenho comigo que, quando o senhor nem bem cruzar aquela porta, a ferinha irá pular no colo para contar-vos, em detalhes, tudo o que aconteceu por aqui.
João que entrava na cozinha, pendurou o chapéu na chapeleira, e dirigia-se até o fogão para pegar o bule do café, no que foi cortado por Antônio, que, espalmando lhe as mãos no peito, comentou: - João, ainda bem que chegaste, homem, já estou com o lanche dos peões e vou descer contigo para levá-lo até os canteiros, onde lá tomaremos o café, pois, as coisas por aqui não estão nada bem, e o clima lá dentro deve estar fervendo!
-Vamos, então patrão, o que vai ser muito bom, pois Quim pede-vos que desçais na expedição para conferir as sacas de aveia.
João, percebendo que Ana, sua mulher, esquivava-se dele, comentou:
-Pelo visto, é como o senhor, diz, patrão. Hoje as coisas não estão nada bem e, pelo que posso pressentir em minha mulher, é melhor nos mantermos longe da casa grande.
-Pois tens razão de pensar assim, meu marido, e o melhor que os dois podem fazer no momento será manterem-se bem distante daqui por algum tempo, disse Ana, empurrando-os porta afora.
João agora, ainda mais intrigado, quando saíram, comentou:
- Senhor, isto está cheirando a tramoias da pequena Isabel, acreditai no que digo.
-Ora, meu velho! Pois, dize-me cá uma coisa, tu achas que a nossa pequena tem idade para tramoias?
-Nos assuntos que dizem respeito à senhorinha Isabel é melhor que guarde minha opinião para mim mesmo, pois que, se as comentar o senhor não vai gostar e, muito menos, concordar comigo.
-Não consigo entendê-lo, João, por mais que eu faça; amigo.
-O tempo, senhor, só o tempo irá nos revelar a astúcia e a vivacidade dessa pequena, afirmou João, filosofando.
Antônio, muito cismado com o que dissera o empregado, num dar de ombros, acompanhou-o em silêncio na descida pela encosta, porque tinha outras coisas que o preocupavam. Ele precisava pensar com urgência em como tranquilizar Maria, que lhe parecia temerosa de que José os acompanhasse na viagem ao Brasil.
Maria, preocupada, agradecia a Deus pela nova gravidez. Essa gestação era a garantia de que, por enquanto, permaneceria ali em sua Ilha, porque tinha certeza de que o marido, se ela assim não estivesse, acabaria tentando fazê-la aventurar-se com ele no que ela considerava uma tresloucada empreitada.
Angustiava-a o pensamento de que, mesmo no estado em que se encontrava, José resolvesse acompanhá-los. Porém, no fundo, tinha a esperança de que isto não viesse a acontecer, uma vez que reconhecia ser o marido um homem muito apegado à família.
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José, por seu lado, percebia a impossibilidade de aventurar-se no momento e, ao saber da nova gravidez da esposa, percebera que a alegria da notícia vinha mesclada à tristeza de ver adiado seu intento. Sentindo, porém, que a curto ou médio prazo, se tudo ocorresse como esperava, ele iria ao encontro dos irmãos, José percebeu que precisaria ir preparando a esposa para essa possibilidade.
“- Mas, como prepará-la para tão longa travessia, se a simples menção de uma ida ao Continente deixa-a em pânico?” Tentando vencer seus medos, José, pouco a pouco, buscava convencê-la a irem até Lisboa em visita aos pais dela, em retribuição às que por várias vezes lhes fizeram. Mas... Qual o quê! Sempre que José tocava no assunto, Maria afastava-se sorrateiramente.
Em certas manhãs, aquelas em que Maria não se sentia muito bem, após tomarem o café, ficavam ambos a conversar no grande quarto do casal onde, na decoração, via-se o bom gosto dela. Naquela manhã em especial, Celeste, a camareira, retirava o serviço de café e Maria, pegando da mimosa cesta de trabalhos, pôs-se a tricotar, enquanto falavam sobre as estripulias de Isabel.
-Conto com a próxima visita de mamãe para iniciar Isabel nas tarefas manuais, José, pois já é hora dessa menina deixar de brincadeiras e começar a pensar em fazer alguma coisa mais séria.
-Ora, pois, minha Maria, a menina é ainda uma criança para exigires alguma responsabilidade da parte dela.
-Se depender de ti e de teus irmãos, minha filha não será nada prendada, de tanto que a mimam. Não percebeis o quanto a prejudicam fazendo-lhe todas as vontades?
Consciente de que não haveria resposta ao que dissera, Maria, triste, comentou: - Só posso contar com mamãe para ajudar-me nesta tão difícil missão. Não vejo a hora de tê-la aqui comigo novamente, José.
-Não acredito que penses assim, Maria, respondeu José, acompanhando a rapidez do seu tricotar quando, acometido de súbita intuição, com naturalidade, comentou:
-Pois, saibas Maria: que teus pais não são mais tão jovens para se esporem ao incômodo de nos visitarem, atendendo sempre e tão prontamente a nossos frequentes convites. Percebendo que, desta feita, ela o ouvia, mais animado e, rolando o chapéu nas mãos, perguntou: - Não seria, pois de bom alvitre que fôssemos pelo menos uma vez fazer-lhes uma visita?
Maria, surpresa com o que ouvira, acomodando o trabalho na cesta de vime colocada sobre a mesa que, junto às poltronas “bergères” dava um toque aconchegante e romântico àquele ambiente íntimo no quarto do casal, onde os dois se encontravam sempre quando necessitavam de um pouquinho de liberdade e privacidade.
Levantando-se da poltrona, cismando, aproximou-se da janela ajeitando o cortinado em crochê branco, por cujos entremeios viam-se a alameda ladeada de ipês de cores variadas, que levava ao portal principal de entrada da Quinta. Analisando bem o que ouvira, sentiu-se profundamente egoísta. Respirando fundo, tomou coragem e voltando-se, insegura e com voz quase inaudível, respondeu:
-Ora, José, por que nunca me fizeste perceber o quanto tenho sido covarde e egoísta? Pois que, algum dia eu terei que lidar com estes meus fantasmas e traumas. Sendo assim, é melhor que eu comece encarando-os logo nesta travessia, e, após uma pausa, acariciando o próprio ventre concluiu num sussurro. -Pois bem, José, já que percebi o quanto infantilmente tenho me portado, sinto-me na obrigação de confessar-te que há tempos penso rever a casa e o lugar onde nasci e vivi a minha infância.
José, feliz, pasmo, mal acreditando no que ouvira, levantou-se de pronto e abraçou-a com muito carinho, enquanto dizia:
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-Ótimo, querida, sempre soube que eras uma mulher de muita coragem. Jamais me passou pela cabeça considerá-la covarde ou egoísta. E, envolvendo-a ainda mais naquele abraço, continuou: - O que tem acontecido, Maria, é que as gestações deixam-na muito sensível e enfraquecida, além de que o trágico acidente de meus pais muito contribuiu para seus medos se arraigarem. Agora, vou correndo levar a boa notícia a nossa filha, e pedir ao Quim que siga no próximo Comboio até Funchal para fazer nossas reservas para o próximo vapor.
Beijando-a agradecido, virou-se para sair do quarto quando, sem acreditar no que ouvia, voltando-se, incrédulo, perguntou: - Como?... O que disseste, Maria?... Repete, pois que acredito não ter-te ouvido direito.
Maria, olhando-o, com voz determinada, repetiu:
-Tu ouviste, José. E ouviste muito bem quando disse que peço-te que não te enganes. Que não te iludas, pensando que com esta minha ida até Lisboa será mais fácil convenceres-me a acompanhar-te na viagem louca para aquele país de negros e índios. Não contes jamais que algum dia te acompanhes com meus filhos àquela terra selvagem, porque isso nunca irá acontecer, ouviste?
José, chocado com a firmeza daquelas palavras, ainda surpreso, retrucou:
-Tranquiliza-te, mulher, pois que ainda não é momento de falarmos sobre isto. E, não escondendo o quanto ela o havia magoado, continuou, com a voz contrita: - Percebo agora, e com muito pesar, o quanto ainda não me conheces, Maria! Pois jamais, minha pequena... Jamais, eu te obrigaria a fazer alguma coisa para a qual não estivesses disposta. E virando-se, determinado, sempre enrolando a aba do chapéu, bateu em retirada, porta afora, sem esconder o nervosismo.
Maria, parada, e em choque com a constatação do que afirmara o marido, assustou-se quando, José reabriu a porta dizendo furioso e sem preâmbulos:
-Pois, não te preocupes em preparar-te para coisa nenhuma, Maria. Irei até Lisboa em visita a teus pais com Isabel e Antônio. E tu... Tu continuas aqui, presa a teus medos, e envelheças com eles, enjaulada nesta Ilha, se é o que desejas fazer com a tua vida.
Maria, tomada de susto com aquela rispidez, erguendo a cabeça e enfrentando o olhar assustador do marido, respondeu: - Sinto ter-te magoado, José, mas não seria justo deixar brotar-te falsas esperanças no coração, pois, como eu disse há pouco, não pretendo enfrentar uma viagem tão longa e difícil, para acabar em uma terra desconhecida de onde o que se ouve dizer são as barbaridades dos escalpelos feitos por aqueles indígenas selvagens e canibais.
José, enfurecido, voltando-se, saiu batendo a porta.
Maria, meio arrependida da forma com que se expressara, sentou-se e, pediu em prece, muito sentida: - Ajudai-me a ser forte, Meu Deus... Ajudai-me!...
E ali sentada, olhando para o quarto onde vivera tanta felicidade e que ultimamente tinha sido testemunha de tantas preocupações e tristezas, lembrou-se de quando, por ocasião de seu casamento, logo após sua chegada à Quinta, redecorara aquele ambiente.
Lembrava o quanto a ajudara sua sogra Isabel, por quem tivera um carinho muito especial. Também recordava o apoio e a dedicação de seu cunhado Antônio, que lhe trazia do Continente, amostras das mais variadas linhas e tecidos para que ela fizesse daquele cômodo: "O seu canto... O seu refúgio...”.
José, por sua vez, parado do lado de fora e recostado à porta pela qual acabara de sair, respirou fundo como que para apagar o impacto que aquelas palavras haviam causado. Aos poucos, recompondo-se, caminhou para a varanda, e colocando o chapéu afirmou a si próprio, a meia voz:
-Uma coisa de cada vez, José. Uma coisa de cada vez.
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CAPÍTULO 2
A FAMÍLIA
-Mamãe, é verdade o que Ana acabou de me contar? Perguntava Isabel, entrando agitada na saleta para tomar seu desjejum.
Maria, já esperando por esse repente, pousou a xícara e percebendo que Ana vinha atemorizada atrás da pequena, pediu: - Nada receies Ana, e providencie o café da menina que, por mais nervosa que possa estar, seu apetite matinal não será abalado, e voltando-se para a filha, continuou: - Senta-te aí e aquieta-te, Isabel, pois que poderemos falar sobre teus temores, enquanto saboreamos nosso café.
-Mas, mamãe!... Ana contou-me que papai desistiu da viagem e os tios vão sozinhos para o Brasil, falou a pequena, sentando-se e avançando de imediato no pão caseiro.
Maria esperava, enquanto Ana servia-lhe o café, como à procura do melhor jeito para dizer o porquê da decisão do pai em permanecer na Ilha. Resolvida a ganhar tempo, propôs-se a lhe fazer companhia e pegando da xícara, voltou a tomá-lo, alternando-o com torradas, para desespero de Isabel, que ansiava esclarecer o assunto. - Vamos lá, mamãe!... Acabai logo com isso e, dizei-me o porquê, desta mudança de ideia do papai!
Maria, vendo que não conseguiria escapar àquele confronto, aprumou-se e, sabendo que o melhor caminho seria o da verdade, olhando-a nos olhos, falou: - Pois bem, Isabel, era quase certo que teu pai acompanharia teus tios nessa aventura. Acontece que não venho me sentindo bem, e ele, preocupado comigo, resolveu deixá-los irem à frente e, quando estiverem estabelecidos e com moradia por lá, iremos ao encontro deles. Além disto, pequena..., alguém teria de ficar por aqui para cuidar dos negócios e, sendo seu pai o único com família, resolveram que ele ficaria aqui, onde se faz necessário, até as coisas se ajeitarem por lá.
Isabel, que ouvia atentamente, contestou em tom de queixa: - Mas, mamãe, ficarmos aqui sem os tios vai ser terrível!... Depois que perdemos meus avos a casa ficou muito triste e, ninguém, a não serem eles, arruma tempo para passear de barco ou ficar comigo.
Ana, a portuguesinha miúda, mas decidida, que desde o tempo dos avós da menina era quem cuidava da cozinha fazendo e servindo-lhes deliciosas refeições, ao ouvir o que ela dizia, saiu em socorro da patroa com voz firme: - Cala-te, criança, e toma de vez este café sem atormentar tua mãe com esse tipo de queixa, pois não percebes que teu pai, que tanto queria fazer essa viagem, deve ter lá seus motivos para retardá-la?
-Ora, pois, Ana! Estou somente querendo que me digam as razões da mudança de planos. Eu sonhava em fazer essa viagem com minha família, completou a menina, chorosa.
Ana respondia-lhe alguma coisa, mas Maria, sentindo-se impotente naquela confrontação, levantou-se e saiu para o jardim, esperando que o ar puro da manhã amenizasse o mal-estar e amansasse também a mágoa que ainda lhe tomava o coração. Atravessando o alpendre, saiu para o jardim, andando sob os ipês floridos que ladeavam o caminho e cujas copas, entrelaçadas, formavam uma alameda pitoresca e refrescante até o portal da Quinta, o qual, em forma de arco, era ornado por densa trepadeira primavera carregada de cachos de flores púrpuras.
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Maria sentia-se triste, debilitada e ainda chocada com a perda dos sogros com os quais tivera excelente relacionamento. Desde então, o bom humor que sempre tivera e que tanta alegria trazia para as pessoas com as quais convivia, parecia ter-se esvaído e, caminhando sobre o tapete de pétalas coloridas que forrava a alameda até o portal, pensava: “- Só mesmo a mão do artista João para podar e conseguir fazer deste jardim um verdadeiro bálsamo para os olhos de quem o percorre”.
Logo, cansada, voltou para casa, procurando inspirar profundamente o ar puro que parecia restituir-lhe em parte as forças. Sem perceber que outros pensamentos apossavam-se de seu coração, já nem notava a beleza à sua frente, pois do ângulo onde se encontrava, como painel de fundo descortinava-se o mar muito azul, que, batendo de encontro às rochas, enobrecia a beleza da paisagem.
Maria, perdida em cismas, mal percebia por onde andava. Seus pensamentos estavam presos ao problema de como falar à filha sobre a sua nova gestação: “- Como lhe dizer que a razão deste adiamento, além dos meus traumas, é o fato de encontrar-me grávida? Como lhe contar este fato sem tirar-lhe a inocência da infância, despertando-lhe a realidade para os fatos da vida?” Seus conflitos agora estavam pior pela discussão entre ela e o marido. Maria, não o vira mais e, no final do dia quando perguntara a Ana por onde ele estaria, ela contou que o ouvira, muito alterado, pedir para Quim, o capataz:
-Diga a João que prepare o coche, Quim, e te prepares, pois vamos até o centro para umas compras e não se esqueça de avisar Ana de que não temos hora para voltar.
E, à noite, quando José chegou, Maria já se encontrava deitada, fingindo dormir, para evitar qualquer tipo de prosa.
Agora mais calma, caminhando, divagava lembrando-se de sua atitude infantil na noite anterior. Recordava a amargura que vivera ao ouvir do quarto a alegria da filha ao abrir os presentes que o pai lhe trouxera do vilarejo. “- Com certeza, como sempre, a menina desfilara para os tios as roupas e os mimos que ganhara.”
Apesar de reconhecer que fora bem pueril, não se conformava de José ter sido tão ríspido com ela, não entendendo seus medos. Nunca acontecera nada parecido entre eles. Seu casamento, apesar de ter sido arranjado por seus pais desde que ela era uma menina, havia dado certo, porque acabaram se apaixonando quase à primeira vista. Poucos casais que conhecera tiveram a mesma sorte.
Apesar de sentir-se muito magoada, reconhecia que havia dado motivos para José se ressentir com ela. Mas, ela só tocara no assunto, para evitar que ele se iludisse, esperando sua companhia na viagem que ela bem sabia, ele estava entusiasmado a fazer. Será que algum dia ele a perdoaria? Talvez. Talvez, quando conseguisse entender que ela era insegura, em relação a tudo o que lhe era desconhecido. E assim, cismando, seguia de volta para casa.
“-Como falar com José?... Como falar com ele sobre meus receios, fantasmas?... Como falar com Isabel sobre minha gravidez?... Ai, meu Deus!... Como resolver tudo o que está me afligindo tanto?”
Maria, levantando o olhar em desespero para o céu de um azul límpido, onde grandes nuvens enobreciam aquela manhã, elevou o pensamento ao Criador de tantas maravilhas e entregou-lhe suas preocupações. Ela sabia que quando fosse o momento, Ele haveria de orientá-la em como proceder, e, com a mesma certeza, Ele permitiria naquela cabecinha de criança o entendimento de sua gravidez.
Continuando, agora mais confiante, voltou a inspirar o ar puro impregnado daquela mistura de relva e maresia. Fechando os olhos para sentir tanta maravilha, mal percebeu quando José, tomando-lhe o braço como a se desculpar pelo acontecido, percorreu com ela o caminho de volta. Ambos, reconhecendo a alegria de voltarem a estar juntos e envolvidos em seus próprios pensamentos, respeitavam aquele momento de cada um.
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Ao chegarem, foram tomados de susto ao depararem com Isabel, que chorava em pranto solto nos braços de Ana, à qual, tentando consolá-la, passava-lhe a mão pelos longos cabelos.
-Será por pouco tempo a tua espera, criança, logo chegará o dia em que todos estarão juntos naquela terra do Ocidente.
Maria, ouvindo o que dizia Ana, olhou para José e, muito preocupada com o quanto de verdade Ana teria falado a sua menina, sentindo-se sem forças foi para o quarto, deixando a cargo do marido a incumbência de descobrir. Ele aproximando-se, beijou-a, convidando:
-Vem pequena, vem comigo ao encontro de teus tios lá nos canteiros.
Ao receber tão carinhoso convite, de pronto estancou o pranto e, já toda sorridente, pegou o chapéu e saiu em prosa feita com o pai.
-Tio Antônio disse que hoje vai levar-me a passear no pequeno potro que me deu. Não sei que nome eu vou dar àquele potrinho, papai. Balançando a cabeça e sem esperar resposta, continuou: - Talvez Fuzarca seja um bom nome, o que o senhor acha?
José, tentando abrir a boca, foi interrompido pela filha que, ansiosa, continuava:
-Talvez tio Antônio goste desse nome. E, caminhando feliz, ia repetindo, como a convencer a si mesma: - Fuzarca, Fuzarca... É..., talvez tio Antônio goste desse nome.
José, aproveitou o momento de pausa no matraquear da filha, consciente de que sua opinião de pouco valeria porque somente a de Antônio contava para sua menina, contrapôs: - Pois, pergunta a ele.... Pergunta ao seu tio Antônio, pequena.
-É o que eu farei, papai... Afirmou Isabel, rodopiando em volta do pai, usufruindo feliz a oportunidade de estarem juntos. - Papai, por que não vamos mais viajar com os tios? Tio Antônio disse que levará o meu potrinho para o Brasil quando eu for para lá. Percebendo o pai entristecido, num sorriso animador, completou: - A mamãe vai melhorar logo, papai, o senhor verá!... E aí, poderemos ir todos juntos para o Brasil.
Observando o quanto gesticulava a menina enquanto conversava com o pai, Ana, parada na porta da cozinha, com tristeza, pensava com seus botões: “- Isabel ainda vai conseguir convencer o pai a fazer essa viagem, e a patroa Maria nada poderá fazer para impedir. Pobre patroinha!... Nada será considerado, nem a sua fragilidade, sua tristeza, sua gravidez ou mesmo seus medos e traumas”.
Ana viu quando Antônio aproximando-se ela, entusiasmada, pulou logo em seu colo, falando e gesticulando muito. Observando a cena, ficou a cismar no carinho entre aqueles dois, carinho que a preocupava, já há algum tempo.
Já ia voltar a seus afazeres, quando, parou e ficou ali, aparvalhada, vendo que Antônio colocava-a de cavalinho sobre os ombros, sob os gritinhos de alegria da menina e, muito chocada, resmungou: - Ora, pois, diga-me cá se isto é lá jeito de se levar uma menina da idade dela? As meninas de hoje não sabem mais é se portar, dizia, entrando na cozinha, porque já era hora de fazer o almoço para a família.
Celeste, camareira de Maria e que na cozinha providenciava um chá de camomila para sua patroa, ao ouvir o que Ana dizia, fez um comentário que a deixou mais irritada: - Oh, minha Ana, estás mesmo a ficar velha, pois, o que mais fazes é resmungar pelos cantos da casa, minha amiga.
Ana, furiosa, de pronto respondeu: - Pois cá escuta bem o que te digo, menina Celeste, porque velha não estou e longe não está o dia em que entenderás a razão de meus resmungos.
João, que, entrando, ouvira o final daquela prosa, passando o braço pelos ombros da esposa, afirmou com segurança: - Celeste, não tenho ideia sobre o que falavas, menina, mas, pelo pouco que ouvi, uma coisa é certa: - Ana pode não ter tamanho, mas, o que é dito por ela, cedo ou tarde se confirma.
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Assustada com aquela afirmação, Celeste pegou a bandeja para D. Maria e bateu em retirada, murmurando: - Valha-me Deus! O que está a se passar pela cabeça de minha amiga Ana!
João pegou uma broa da assadeira que Ana acabara de retirar do forno, deu-lhe uma bela mordida e sentindo que lhe queimava a boca, atrapalhado em lidar com a situação, e não conseguindo conter a curiosidade, perguntou, dando voltas no bocado e inspirando forte pela boca na tentativa de resfriá-lo.
-Ora, dize-me cá, Ana, dize cá para teu maridinho o que falaste de tão assustador à menina Celeste para fazê-la sair em disparada?
Ana, não querendo partilhar seus temores, fazendo-lhe um agrado, dissimulou: - Ora, pois, João..., estás te revelando um homem curioso como todos os mortais? Pois, te aquietas, marido, e pede a Deus para que meus temores sejam infundados.
Dito isto, pegando uma cesta com o café onde colocara algumas broas, entregando-a a João, completou:
-Uma vez que vieste até aqui e, sabe-se lá o porquê, senhor meu marido, leve, pois, este lanche aos homens nas vindimas. E entregando-lhe um pacote individual continuou: - Este especial é para o nosso amigo Quim. Vê lá se consegues ser bem discreto ao entregá-lo, para que não me cause nenhuma situação de ciumeira entre os peões, João.
Vendo que ele não se mexia do lugar, espalmando lhe as mãos sobre o peito como se estivesse a empurrá-lo, foi dizendo: - Sinto muito não tranquilizar tua curiosidade, meu marido, pois que não posso compartilhar contigo o que me passa pela cabeça. Ora, ora, pois, homem de Deus, anda lá com o lanche dos peões que já estão por chegar os irmãos, para tomarem cá o seu café.
João, a contragosto porque era grande sua curiosidade, atendeu prontamente ao pedido da mulher. Em meio do caminho, cruzou com Pedro e Antônio, e num simples curvar de cabeça, passou direto por eles, porque percebeu pela conversa que se tratava dos planos para a grande viagem ao desconhecido.
-Se tudo correr como esperamos, Pedro, venderemos a Quinta; e um bom administrador irá cuidar de nossas rendas por aqui.
-Bem sabes, Antônio, que vender esta Quinta sempre foi o meu desejo, bem antes do desaparecimento de nossos pais. As atividades de comércio tão distantes uma da outra, é a razão de passarmos muitos dias do mês em travessias. E digo-lhe mais, talvez, se não fossem essas viagens, ainda tivéssemos nossos pais aqui conosco.
-Ora, Pedro, nem sonhe dizer o que pensa à nossa cunhada Maria, pois sempre sofreu muita tensão a cada viagem que fazemos.
João, que ouvira o que diziam, murmurou consigo mesmo: - É bem isto o que tenho ouvido de minha Ana, quando ela faz seus comentários sobre a fatalidade que sofreu esta família: “- O Sr. Fernando, sempre com negócios em lugares distantes, acabou como foi, afogado, e levando com ele para o além, a minha pobre patroa, D. Isabel.”
João, logo cruzou com Isabel que agora, de mãos dadas com o pai, vinha com seu jeitinho dengoso, tentando convencê-lo sobre alguma coisa que estava muito a desejar.
José, vendo João que descia com a merenda, parou, interpelando-o, mais para dar um tempo na tagarelice da filha, do que se tivesse algo importante para lhe falar. - João, já que estás a descer faze-me o favor de pedir ao Quim que venha ter comigo, pois é urgente o que tenho a lhe falar.
Isabel, tentando segurar com as mãos o chapeuzinho que a brisa teimava em tirar-lhe da cabeça, pedia, ao pai, com voz chorosa: - Deixe-me ir com o Quim e tio Antônio, papai. Logo os tios viajarão, e eu vou ficar sem ter esses passeios de Comboio pela Ilha. E, eu quero só saber, quem é que vai levar-me a descer o morro no cesto, quando eles partirem?
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José, extenuado de tanta conversa, indagou: - Pois, não é hoje, minha filha, o dia da D. Lurdes, sua mentora, vir para as aulas? E, sem dar tempo de ela engendrar resposta, continuou: -- Não tens, pois, como ires com os tios, pequena, pois que não seria correto a tua mentora chegar e a menina não estar, e, quanto aos passeios de desceres o morro pelo cesto, isto veremos depois, pequena.
Isabel, sentindo-se vencida porque não tinha como argumentar a vinda de sua mentora, aquietando-se, acompanhou-o até a casa sem dizer uma palavra, mas sempre lutando com aquela brisa desagradável que teimava em tirar-lhe o chapeuzinho.
João, sorrindo ao acompanhar com olhar carinhoso o jeitinho afetado da pequena caminhar exclamou: - Está aí uma menina, que muito vai dar o que falar!
Chegando a casa, eles encontraram Celeste que, preocupada, saía do quarto de Maria com a bandeja nas mãos e o olhar entristecido, dizendo aos tropeções e muito aflita: - Ainda bem que voltaram logo, Sr. José... Vedes lá o que podeis fazer, pois D. Maria está muito deprimida!
Passando a mão pela cabeça da pequena, Celeste pedia-lhe, enquanto abria a porta para eles passarem: - Corre Isabel, faze sua mãezinha sorrir com a tua prosa. E, desacorçoada, caminhou até a cozinha a fim de, com Ana, procurar o que fazer para que sua patroinha se alimentasse melhor e, mais forte, afastasse de vez, aquela tristeza do olhar.
José e Isabel entraram sorrateiramente no quarto e ficaram a contemplar a figura de Maria que, mesmo com os olhos fechados em repouso, deixava transparecer o abatimento. Maria, ao perceber a presença deles, abriu os olhos, sorriu-lhes e tentou sentar-se na cama, no que foi logo impedida pela filha que, segurando-a pelos ombros, pediu, meiga: - Fique deitada, mãezinha, e procure descansar. Estamos aqui e vamos dar um jeito de tudo isto passar e a senhora ficar boa logo, para ir me ver andar com Fuzarca.
Maria, sem entender o que dizia a filha, perguntou enfraquecida: - Fuzarca... Quem é Fuzarca?!...
-Ora, mãezinha, Fuzarca é o nome do potrinho que tio Antônio me deu. Ele falou que, quando eu for para o Brasil, meu potrinho vai comigo. Isto não é maravilhoso? O meu Fuzarca vai comigo para o Brasil!... Vai ser muito bom, poder cavalgar e galopar Fuzarca naqueles planaltos de horizontes distantes, disse num fôlego só, com um profundo suspiro, olhar perdido como se sonhasse, feliz.
Maria ouvia tudo meio atordoada quando José, vindo em seu auxílio, pediu, firme; - Cala-te, Isabel, não vê o estado que deixas tua mãe com tanta tagarelice?
Isabel, pega de surpresa e lembrando-se da debilidade de sua mãe, beijou-a com carinho e murmurou, contrita: - Perdoe-me, mãezinha, até esqueci como a senhora está adoentada, mas estou tão feliz que não consigo lembrar-me de nada triste. Vamos reagir, mamãe!... Sabemos que perdemos vovô e vovó de um modo muito trágico, mas tenho certeza de que eles não gostariam de sabê-la assim tão triste!
José, diante de tanta sabedoria nas palavras da filha, chamou por Maria, dizendo: - Veja o que é dito por esta criança, mulher.... Vamos reagir a todos os males que possam estar a molestá-la indo até Lisboa convidar teus pais para vir passar uns tempos conosco aqui na Quinta.
Isabel, orgulhosa ao sentir que o pai aprovara o que dissera e feliz por ver a possibilidade de enfim, ir a Lisboa, de um salto abraçou-se no pai, beijou-o, enquanto dizia: - Obrigada, paizinho, vamos até Lisboa com mamãe. Vai ser um lindo passeio e tenho certeza de que tanto os ares do mar como a visita a nossos familiares farão muito bem a ela.
Maria, apavorada com o rumo que tomava aquela prosa, foi logo criando forças e, interrompendo a efusão da filha, para espanto da família, determinada, afirmou: - Desejo-vos, uma boa viagem e também espero que consigais trazer meus pais. Será muito bom tê-los aqui comigo, porém..., não conteis comigo para esta viagem!
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José sabia que o que a impedia de acompanhá-los naquele passeio, além do medo da travessia, era também a mágoa que sentia em relação a ele. Tentando lhe vencer os traumas e apagar toda a mágoa que provocara, argumentou: - Ó, Maria, vê lá se não seria de bom-tom convidá-los para virem até a Quinta, pois nós nunca retribuímos tão gratas estadas com pelo menos uma visita. Isso sem dizer que já é hora de procurares vencer esses temores, encarando de vez a viagem até Lisboa, mulher!
Maria, observando os olhos ansiosos que aguardavam sua resposta, vencida, resolveu fazer aquela viagem de uma vez por todas e para surpresa de todos, respirando profundamente como se estivesse tomando coragem, murmurou com um sorriso: - Sendo assim, preparai-vos, pois que estarei convosco nessa travessia e, tenho certeza de que grande será a felicidade de mamãe ao ver-nos chegar a sua casa.
José, feliz, saiu do quarto que agora se enchia de alegria e percebeu que os Anjos estavam a seu favor, porque a sonhada viagem até Lisboa com a família iria acontecer. Encontrando Quim, que o esperava na porta da varanda, chamou-o ao escritório, sentando-se na poltrona atrás da escrivaninha de carvalho, totalmente descontraído.
Quim, vendo-o tão bem, com respeito, perguntou: - A que vem esta felicidade que vejo estampada em vosso rosto, senhor meu patrão?
-Ah!... Eu nem te conto Quim. E, muito feliz, continuou: - Pois não é que as coisas acabam acontecendo, quando menos se espera? Disse José, relatando de imediato o acontecido, sem se esquecer de dar o devido mérito à enorme colaboração de Isabel.
Quim, que tudo ouvia com muita atenção, esboçando um sorriso meigo, comentou: - Essa pequena, quando quer alguma coisa, acaba sempre por consegui-lo, Sr. José. Ainda bem que desta feita está conseguindo tirar D. Maria da apatia que se encontra.
José, feliz, passou a ditar as tarefas do dia com certa ansiedade, pois pretendia marcar logo a ida da família para Lisboa, temendo Maria voltasse atrás na decisão.
Quim, percebendo a aflição do patrão, comunicou: - Patrão, o Sr. Antônio vai até Funchal levar os documentos e marcar o dia da viagem para o Brasil e eles estão programando uma ida até Lisboa para fazerem algumas compras para a grande ocasião.
-Pois que não me é providencial esta coincidência, Quim? Vou pedir-lhes, pois, que me comprem as passagens, porque confesso que hoje muito me atrapalharia tua ida até a Capital. – Pois, sabes, Quim? É ótimo saber que estaremos todos juntos nessa viagem. Desde a morte de meus pais pressinto que isto é o que a nossa família precisa, alguns dias tranquilos; e levantando-se da poltrona, agitado, dirigiu-se a passos largos até a porta dizendo: - Vamos, Quim, vamos rápido atrás de Antônio, pois tenho muito a lhe falar antes que se ponha estrada afora.
Quim, acompanhando-o, ia remoendo pensamentos: “- Bem disse Ana, que, de uma forma ou de outra, as coisas acabariam a gosto de Isabel. Esta menina nasceu com a estrela, pois que o destino acaba lhe favorecendo sempre os mínimos desejos.”
Durante os preparativos para a viagem, muita felicidade aconteceu àquela família. Isabel, sempre atazanando a todos com sua tagarelice, não perdia as poucas oportunidades de estar junto de Antônio, ora sentada em seu colo, ora pendurada ao seu pescoço, sempre a contar planos de passeios para quando estivessem em Lisboa.
-Tio, o senhor me comprará um vestido de Mme. Blanche como me tem prometido, não é? Pediu-lhe a menina, com aquele trejeito no olhar, com o qual a todos rendia.
-Desde que o vestido seja apropriado para a tua idade e tenha lindos laçarotes na cintura para combinarem perfeitamente com as meias soquetes que te trouxe de Coimbra, pequena, tudo bem! Respondeu-lhe o tio, deixando-a furiosa.
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Antônio percebia que gostava muito de arreliar aquela pequena. Não entedia bem as razões da necessidade de contrariá-la. Era como uma comichão que corria pelo sangue, trazendo-lhe imenso prazer quando o fazia. Não sabia se o prazer que sentia era por arreliá-la ou pela espera de suas manifestações de rebeldia que sempre vinham em troca. Sabia apenas de que gostava, e muito, daquelas situações.
Isabel, profundamente magoada com o tom de deboche que percebia nas palavras do tio, chorosa, batia-lhe no peito com as mãos fechadas, tentando dar-lhe milhões de socos até feri-lo profundamente, do mesmo modo que ele conseguia fazer com ela. Nesse interim, Maria se encontrava em boa prosa com Pedro no alpendre, junto a uma das colunas por onde subia uma trepadeira florida que seguia na sequência de arcos ladeando toda a frente e a lateral da varanda. E, para aquele varandão era para onde eram voltadas as janelas dos quartos e a porta-balcão de acesso à sala, onde, sem perceberem que eram ouvidos, Antônio e Isabel conversavam com muita naturalidade.
Pedro sorria-lhe com jeito manso ao perceber que Maria não aprovava o que ouvia. - Devemos todo o prazer de usufruir tão aconchegante e pitoresco alpendre a ti, minha cunhada. Grande ideia foi a tua, ao casar-te com José, de pedir-lhe, em meio à grande reforma de que esta casa estava necessitada, de levantar este varandão, para onde acorremos todos e ficamos em agradável prosa depois da lida de cada dia.
Preocupada com o colóquio na sala, Maria pouco ouvia Pedro, que tentando dar continuidade a seu intento, dizia: - Nos quase dois séculos desta casa, ela foi reformada três vezes; na penúltima, minha avó reformou o madeiramento do telhado e aumentou a cozinha, colocando aquela grande caixa para armazenar água para a bica, o que, acredito, facilitou bem as coisas por aqui, não achas, Maria? Não esperando pela resposta que, sabia, não viria, continuou: - Imagina a cena, Maria, as mulheres da casa subindo por estas escarpas, trazendo as ânforas d‟água para atender as necessidades da família.
Maria, num lampejo, ao ouvir o final da frase de Pedro, foi de imediato replicando: - Pois me causa arrepios, Pedro, imaginar tal cena. Nada melhor que o conforto para facilitar nosso dia a dia. Porém, confesso-te uma coisa, meu cunhado, e pelo qual peço-te absoluto segredo; e abaixando o tom de voz, temendo ser ouvida... Tenho comigo um sonho de dividir aquela imensa cozinha, para fazer um banheiro fechado, dando assim, privacidade para toda a família, pois as enormes tinas para os banhos nos quartos, e a latrina no fundo do quintal, são bem desconfortáveis, não achas, Pedro? E, animada, concluiu. Há muito, ouvi falar que os Alcântaras reformaram a casa da Quinta fazendo um banheiro como também, forraram todo o telhado com madeira, terminou Maria, fitando o cunhado com carinho.
-Minha pequena Maria, isso tenho visto eu muito por aí, nas andanças que faço com Antônio pelas Quintas de toda Europa.
Maria, esperançosa, chegando-se mais a Pedro, perguntou: - Será, Pedro, que se pedisse com jeitinho, José faria outra reforma nesta casa?
Pedro, sorriu-lhe e respondeu, pensando ele mesmo presenteá-la com aquele mimo.
-Quem sabe, Maria..., com jeitinho o consegues.
Maria estancou de repente o que ia dizer, quando ouviu os gritinhos histéricos da filha que tentava, com as mãos fechadas, de novo espancar o tio que lhe negava algum capricho.
Virando-se preocupada para Pedro, retrucou: - Temos que acabar com esses modos da menina lidar com Antônio. Para isso vou precisar de tua ajuda, Pedro. Minha filha aceita sempre e de muito bom grado, tudo o que lhe falas, meu irmão. E sentando-se na cadeira ao lado da grande porta, prestou atenção no que diziam e de como falavam lá dentro, aqueles dois.
Percebendo as brincadeiras de mãos e o rola-rola da menina do chão para o colo do tio e vice-versa, resoluta, adentrando de repente, percebeu num rápido olhar que Ana também viera da cozinha para pôr um fim àquela balbúrdia, trazendo-lhes o antecipado café da tarde.
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Maria, sentando-se, recebeu a xícara de café e, em tom elevado de voz, falou: - Comporta-te Isabel, chega de toda essa brincadeira boba e, tomando o café, percebeu o olhar de apoio de Ana quando lhes servia as bolachinhas. Precisas ter mais modos ao tratar com teu tio, pois bem sabes que não és mais uma criança para ter esse comportamento e, muito tempo há de passar até que possas vestir um traje de Mme. Blanche, minha filha. E olhando firme para o cunhado, falou em tom de censura. E tu, Antônio, para de mimá-la fazendo-lhe as vontades, pois não vês o quanto está difícil de lidar com esta menina, sem dizer que ainda é muito nova para já ter tanta vaidade?
Antônio, entendendo a preocupação da cunhada por quem tinha muita estima, levantou e dirigiu-se a passos largos até ela, dizendo: - Não te preocupes, Maria, esta menina sabe levar-me direitinho e, pelo que já entendi, quando contrariada em seus desejos, revela-se uma leoazinha enjaulada.
Ana, apos tal comentário e sem se controlar exclamou: - Ora, que enfim, ouço algo com razão vindo do sr. Antônio em relação a esta menina!... E, logo tratou de sair, porque já sabia o que viria a seguir. Imitando o jeito de Antônio dizer a famosa frase que seus ouvidos já estavam cansados de ouvir, sempre que se intrometia nos assuntos da família: “- Põe-te em teu lugar, minha Ana... Põe-te em teu lugar.”
Deixando todos a rir da petulante imitação, Ana, em direção à cozinha pensava alto, falando com seus botões: “- Pobre patroinha Maria, que agora, encantada com o carinho que o sr. Antônio lhe dá, esquecerá o tipo de prosa e os modos da filha ainda há pouco. Valha-me, Deus!... O que passa pela minha cabeça ultimamente!...”
José, subindo das vinhas, entrou na cozinha e, ao ouvir Ana em suas lamúrias, logo perguntou: - Ora, minha Ana, que de novo te encontro falando sozinha pelos cantos da casa?
Surpresa por ter sido ouvida, começou logo a lidar com qualquer coisa para esconder a vergonha de ter sido flagrada em tamanho deslize, e, muito sem jeito, rapidamente respondeu: - Não é nada, não, Sr. José. Não é nada de sério!... E como o senhor mesmo disse, estou sempre a falar pelos cantos da casa, não é?
José, intrigado com a portuguesinha, retrucou: - Deixa disso, mulher, e dize-me cá uma coisa. Onde está esse bendito café, e onde se encontram todos, uma vez que muito raramente esta casa fica assim, tão silenciosa?
Ana, rindo sem mais poder, respondeu-lhe, mal conseguindo proferir as palavras: - Ah, patrãozinho, estão todos na sala a tomar o “bendito café” que o senhor procura. E, quanto a este silêncio que vós dizeis estar na casa? É que os Santos atrasaram-no por alguns minutos, pois, se chegásseis um pouco antes, veríeis que silêncio mais barulhento acontecia por aqui, patrão!...
José, não entendendo nada daquela prosa, saiu, encafifado, atrás do café, sempre cismando alto. Ora, pois, silêncio barulhento?... O que vem a ser isto, afinal?...
Ao entrar na sala, deparou-se com a família em silêncio devido ao choque do que tinham ouvido de Ana, aquela senhora pequena e muito querida. À entrada de José, Isabel correu até o pai e queixou-se: - Estão todos contra mim, papai...; até Ana passou-me um raspão.
Maria levantou-se para servir-lhe o café e disse à filha: - Por que não contas a teu pai a razão da pobre Ana chamar-te a atenção? Ao que o pai, intrigado, perguntou:
- Pois, dize-me cá, menina, o que fizeste de tão sério, para causar esta situação, minha filha?
Ana, após recompor-se, retornava à sala, mas, na porta, estancou ao ver a manha e os afagos da menina, aninhada com o pai. Ouvindo o que dizia o patrão, de novo sem conseguir se conter, exclamou: - Ora, pois..., que agora foi que ficou bom!... E percebendo que não era mais necessária sua presença na sala, por que D. Maria servia-lhe o café, voltou para a cozinha, como sempre, a resmungar. - Para estes dengos e mimos acabarem, a esperança que resta será o nascimento dessa criança. Somente essa criança poderá contribuir para que as coisas entrem nos eixos por aqui.
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Maria, em desespero, olhava para José à procura de ajuda. Antônio, percebendo a delicada situação que o infeliz comentário de Ana provocara, saiu em direção à cozinha para pôr aquela senhora, literalmente, em seu lugar, enquanto, Isabel, cismada, perguntava diretamente ao pai: - Criança?... Que criança? O que Ana quis dizer, papai?
José tentou tranquilizar a esposa com o olhar, quando, pegando Isabel e pondo-a de frente para ele de forma que pudesse olhá-la nos olhos, com tranquilidade, falou: - Pois bem, pequena, nós, papai e mamãe, queríamos fazer-te uma surpresa, porque achamos que adorarias ter um irmãozinho ou uma irmã para brincar e, para isto, pedimos ao teu tio Pedro que quando fosse a Lisboa encomendasse por lá um bebê para nós.
Pedro, pego de surpresa, não encontrando palavras para dar continuidade àquela situação na qual tinha sido colocado, percebeu que fora salvo pela própria sobrinha, quando esta, soltando-se das mãos do pai, correu para ele, pedindo: - Escolhe um bebê de olhos bem azuis, iguais aos teus, titio.
Olhando para todos naquela sala que, parados em seus lugares, pareciam paralisados por algum choque, a pequena continuou: - Pois não é que já estou achando que vou adorar ganhar um irmãozinho? Já estou mesmo cansada de brincar com minhas bonecas de pano feitas por vovó Emília. Quero um bebê de verdade, que chora, dá risadinhas, igual à Rosita, quando era neném.
A alegria com que Isabel recebeu a novidade surpreendera a todos. Maria agradecia a Deus, por ter ouvido suas preces e chorou de emoção quando a menina falou:
- Mãezinha, como vai ser bom ter um irmãozinho de olhos azuis. É fato que tio Pedro vai escolher um bebê bem lourinho e de olhos azuis iguais aos dele, não é mesmo?
Em meio a tanta felicidade, Maria, conseguiu dizer: - Não se pode escolher uma criança como se escolhe uma boneca, Isabel. A pessoa encomenda e, quando chegar, será uma menina assim como tu, ou um menino.
-Na verdade, isto não importa muito, mamãe.... Contanto que tenha os olhos azuis!... Menino, ou menina..., contanto que tenha olhos azuis. E, correndo à porta da sala, feliz, participava: - Agora, vou contar a todos que estamos esperando a encomenda do meu irmãozinho. Tenho certeza que o Quim vai ficar tão feliz quanto eu, mamãe. Vou até os vinhedos contar para todo mundo. E parando num repente sua corrida, voltou-se e perguntou. - Mas..., dize-me, tio Pedro, quando eles vão entregar nossa encomenda?
O pobre homem, aturdido, levantou-se a pigarrear como se limpasse a garganta, e olhando em desespero para o irmão: - Rham, rham... Bem... Vai levar ainda algum tempo, querida, talvez uns sete ou oito meses, quem sabe? Talvez até menos...
Isabel, abrindo um largo sorriso enquanto colocava o chapeuzinho de palha, com um profundo suspiro, murmurou: - É bom que demore um pouco, meu tio.... Assim terei tempo de preparar-me para recebê-lo, não é? E saiu em disparada, chamando por Quim, quando, eufórica, deu de encontro com Antônio que entrava e, pulando lhe no colo, aos tropeções, contou a razão de tanta felicidade. Mal terminara de contar e já pegando novamente o chapeuzinho que caíra, correu para contar a novidade aos quatro ventos, atazanando a cabeça de todos com sua prosa atropelada.- Quim, Quim...
-Pois, dize-me cá, José, por que nossa filha chama por Quim? Indagou Maria, intrigada.
-Ora, pois, mulher..., ainda não percebeste que há algum tempo nosso capataz tornou-se confidente da menina? Sempre que as coisas não correm bem para ela aqui em casa, ela corre para desabafar com o amigo Quim.
-E isto é bom, José? Indagou Maria, aflita.
-Claro que sim, mulher, pois que ele, dentro de sua simplicidade, é uma pessoa muito sensata e já por diversas vezes eu o vi fazê-la raciocinar com os seus dizeres. - Aliás, não é só ela que procura por Quim quando precisa de um amigo, tenho a impressão que todos não dispensam o parecer dele, afirmou Pedro com um sorriso.
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-Por favor, Antônio, vá com a pequena para evitar maiores confusões, pediu Maria, preocupada com o comentário do cunhado.
-Se ela procura por Quim, ela estará bem, retrucou Antônio, tardando em atendê-la.
-Talvez sim, talvez não... Pois não vejo como alguém como ele, um simples empregado pode ser útil em certas questões.
-Pois te enganas muito sobre a pessoa de Quim, mulher. A sabedoria de vida que ele traz não se conseguiria com muitos anos de universidade em Coimbra, interveio José, levantando-se e indo até o alpendre, enquanto a esposa repetia. Por favor, Antônio, vá ao encontro da menina, meu irmão.
Antônio, por fim, saiu a passos largos e ao ver que a menina já ia longe, alcançando-a, pegou-a pela mão, indo os dois divulgar a boa nova.
Ana, apoiada na janela da cozinha, chorava pela reprimenda que levara de Antônio e era consolada por Celeste que, com seu jeitinho de menina, lhe dizia: - Às vezes, o mal serve para um grande bem. Vê, pois, por ti mesma, minha Ana... Olha lá como segue feliz e saltitante pela mão do tio, a menina Isabel!.... Vê lá, Ana... Para de chorar e vê por ti mesma o quanto tua ranhetice proporcionou de felicidade e alívio para essa família, disse a pequena Celeste, confortando-a.
Na sala, após a saída de Antônio, o silêncio era diferente, um silêncio de alegria, alívio e prece, pois algo que todos ali tanto temiam havia se resolvido com muita facilidade e de uma forma que jamais algum deles pensara que pudesse vir a acontecer. Pedro, expressando o que todos pensavam, murmurou como se falasse com seus botões: “- Quem diria que os resmungos da velha Ana nos proporcionariam tamanho alívio?”.
Todos, entreolhando-se, começaram a rir, enquanto Pedro censurava o irmão: - Que ideia foi a tua, José!...Falar à menina que havia incumbido a mim para fazer a encomenda da criança? Não imaginas o pavor que senti ao ouvir tal coisa. Só mesmo o desespero em que te encontravas justifica essa ideia.
José, em consequência da grande tensão pela qual passara, começou a rir, e todos, contagiados por ele, riram também, não só do desabafo de Pedro, mas de pura felicidade. E, todos se servindo de um novo café que, com certeza, àquela altura já estava gelado, sentaram-se novamente e, bebericando-o ainda riam aliviado, pouco importando a qualquer um deles a temperatura daquele líquido forte e escuro.
CAPÍTULO 3
A VISITA
No cais, Isabel, com o chapeuzinho em palha creme cuja aba levava uma fita rosa arrematada atrás num grande laço, cujas pontas caíam-lhe sobre os brilhantes cabelos negros e cacheados, mal cabia em si de tanta felicidade. Correndo de um lado a outro, ia travando prosas com todas as pessoas, conhecidas ou não.
Os pais, por mais que fizessem, não conseguiam segurar tamanha euforia. Sempre por perto, percebiam com espanto a facilidade da menina na abordagem para conversar. - Meu nome é Isabel, eu vou até Lisboa visitar meus avós. E vocês, para onde vão? Logo em seguida, como que maravilhada, dizia:
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-Coimbra? Nossa! Como vão para longe. Nunca estive em Coimbra e nem em Lisboa, mas tenho certeza de que meu tio Antônio um dia me levará até Coimbra, sabem por quê? E, baixando o tom de voz, completava: - Papai nunca poderá levar-me porque mamãe tem medo de andar de navio, ainda mais depois que meus avós Fernando e Isabel morreram num acidente, quando vinham do continente para cá, e, desde então... E a menina, olhando para os lados, com medo que pudesse ter sido ouvida pelos pais, continuava, baixinho: - Papai teve o maior trabalho para convencer mamãe a fazer esta viagem!
Maria, temendo que a filha pudesse estar enfadando quem a ouvia, voltando-se para o marido, percebeu certo ar de orgulho naqueles olhos castanhos que tão bem conhecia. Intimidada em tirá-lo de tão grande enlevo, porém preocupada com a prosa da filha, tocando-o de leve no braço, pediu: - Por favor, José, traze-me cá Isabel que deve estar a enfadar com sua tagarelice aquelas pobres pessoas.
José, concordando em parte com a mulher, mas meio a contragosto porque se deleitava com a descoberta da desenvoltura da filha, aproximou-se, apresentou-se cumprimentando-os e, desculpando-se por tão longa prosa da pequena, chamou-a com carinho, como a querer mostrar-lhe algo especial.
Maria, ao conversar com a pequena, tentava passar-lhe um pouco de bons modos, e tão distraídas estavam que mal ouviram quando soou o primeiro apito para o embarque.
Isabel tentou ficar junto dos pais como lhe pedira a mãe, mas... - Papai, mamãe, lá estão Fernando e Amélia, conheci-os há pouco e vou até lá ver se encontraram a filha Antônia, que muito querem me apresentar.
Sem esperar resposta, saiu em disparada ao encontro dos novos amigos. Os pais, encantados, mal continham o orgulho que traziam estampado nos olhos. Observando-a enquanto proseava com o jovem casal, percebiam o jeito como a pequena levava a bolsinha pelo braço esquerdo, enquanto que, com as pontas dos dedos da mão direita, segurava a saia, levantando-a um pouco, em uma elegante postura.
-Vê, José, que figura que é a tua menina!... Exclamava Antônio, totalmente encantado.
-Pois, digo-te, Antônio, que muito me preocupa esta espontaneidade da menina, interveio Maria, cujos olhos não conseguiam dissimular sua apreensão.
-Ora, pois, Maria, eu não vejo razão para tanto, uma vez que isto somente nos vem provar o quanto a nossa menina é inteligente e vivaz, interveio Pedro.
-Pois nunca ouviste dizer que muita inteligência em uma mulher é a causa de sua própria infelicidade, Pedro? Rebateu Maria, levando na voz a preocupação que a tomava.
-Hoje os tempos são outros, Maria! Exclamava Antônio, sempre acompanhando com o olhar o desembaraço da sobrinha quando, extasiado, concluiu: - Pois, digo-te uma coisa, minha irmã, se um dia eu vier a me casar com alguém, haverá de ser com uma mulher muito inteligente, fica certa disto.
Vendo que a filha afastava-se com o casal pelo cais, os pais, deixando os irmãos atônitos com tantos cuidados, foram atrás da filha que, ao vê-los, logo os apresentou: - Estes são meus pais, Maria e José. Eles são Fernando e Amélia. Eles querem levar-me para conhecer Antônia, que irá estudar num colégio interno em Coimbra.
Após as apresentações, com um sorriso agora mais confiante, Maria, pegou o braço do marido e participou: - Isabel, estaremos à tua espera junto de teus tios, próximo à rampa de subida ao vapor, vês, pois, se não demoras minha filha.
-Não fiquem preocupados com a menina, que a traremos de volta logo que tenha conhecido nossa Antônia.
-Obrigado, sr. Fernando, e até mais ver; despediu-se José, fazendo um sinal em mesura com o chapéu ao afastar-se.
Passado não muito tempo, ouviu-se o segundo apito.
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Maria, no atropelo das pessoas que procuravam subir para a embarcação punha-se nas pontas dos pés, para ver se achava a filha em meio à multidão. De repente, deparou-se com Antônio que a trazia pela mão, ouvindo paciente tudo o que a menina lhe contava.
-Ora, pois, vamos rápido, pequena, que corremos o risco de perder a embarcação, dizia Maria, pegando a filha pela mão a introduzi-la rampa acima, agora, tumultuada com as pessoas que subiam e atropelavam-se na correria de tomar um lugar no convés.
E logo, ouviu-se o terceiro apito...
Maria, desesperada, empurrando a filha, tentava subir pela rampa, quando Antônio, em seu auxilio, tomou a menina nos braços e, atravessou com facilidade, como se as pessoas se afastassem abrindo-lhes caminho à simples vista de Antônio.
Já a bordo, José procurava por um lugar onde pudesse acomodar a família. Ele mal ouvia os protestos da filha que tudo o que mais queria, era continuar ali, no convés, contrariando o pai, cuja única preocupação era com o bem-estar da mulher. José e os irmãos, preocupados com os temores de Maria, procuravam um lugar do qual não se tivesse nenhuma visão do mar, como também, não se pudesse acompanhar o movimento das águas quando a embarcação começasse a se afastar. Eles mal ouviam o que exigia Isabel, quase a gritar para se fazer ouvir.
-Papai, pedia Isabel, com voz dengosa e jeitinho afetado, poderíamos ficar só um pouquinho no convés? Seria tão bom ver a proa cortando as águas, como se estas se abrissem em boas-vindas à nossa passagem.
Incrédulos, os familiares, entreolhando-se não tiveram outra opção se não a de seguirem tal sugestão. Caminhando muito lentamente guiados pela pequena, José procurou com o olhar saber como se sentia a esposa, ao que ela de pronto o tranquilizou. - Não te aflijas, José, pois uma hora ou outra, teria de encarar meus medos, porém o que mais me causa espanto, é a constatação de que ou nossa filha é muito bem dotada, ou D. Lurdes é uma exímia mentora.
Os irmãos puseram-se a rir do comentário de Maria e, felizes, se afastaram para deixá-los mais à vontade naqueles momentos especiais que viviam. Rindo por estarem pensando a mesma coisa, Maria e José entreolhavam-se como se fizessem um pacto de não se afligirem com mais nada e simplesmente aproveitarem o fato de estarem juntos, proporcionando aquele passeio tão esperado pela pequena Isabel. Logo depois, toda a família ficou na balaustrada do convés apreciando o sobe e desce das pessoas e a balbúrdia que certos passageiros causavam com suas grandes bagagens de mão. Exatamente como uma senhora que, na rampa, em meio às suas imensas valises e às pessoas que tentavam subir a bordo, dizia:
-Com licença, senhora, pedia a alguém... - Mas que absurdo esse tumulto!... Reclamava a outro. - Por favor!... Por favor, ajudem-me. Corro o risco de perder a embarcação. Deixem-me passar, por favor!... Implorava a senhora, agora entalada, entre alguém que tranquilo descia e outros que, atropelados, subiam. E, em meio a tudo isto..., alguém, muito incomodado...
-Atchim!... Atchim!... - Calma Senhora! Pedia o homem arreliado com a plumagem do vistoso chapéu da intrigante mulher que, alcançando-lhe o nariz, causava espirros.
-Calma o quê, meu senhor? Pois, não vês que... Ahiii..., seu brutamontes!... Ali se vai meu lindo chapéu!... Murmurava a pobre Senhora, agora curvada sobre o corrimão, acompanhando seu nada delicado adereço que boiava na água ladeando o navio.
-Vede o que fizestes!... Pois vou levá-lo ao capitão para um belo corretivo, senhor trapalhão. Ora, pois, onde já se viu!... Exclamava a senhora, furiosa, levantando a mão, golpeando com ela o famigerado passageiro.
Logo apareceu um marinheiro entregando-lhe o agora imprestável chapéu e que ouviu suas lamurias e exigências enquanto ajudava subir a injuriada senhora que agora na mão, entre suas valises, portava aquilo que fora um dia, um belo adorno para sua cabeça.
-Quero que me leves já ao capitão, meu jovem... Pedia a descomposta, senhora.
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Rindo, Isabel e a família continuaram apreciando o rarear do vai e vem das pessoas pela rampa, o abanar dos lencinhos brancos em adeus, e as lágrimas dos que ficavam e as dos que partiam. E logo, muito mansamente, o navio começou a se afastar do Porto do Funchal, indo mar afora, em busca de sua rota. Maria, ao perceber o movimento da embarcação, trêmula, sentia-se tensa e insegura. Procurou com o apoio dos seus afastar de vez seus temores e, com galhardia, encarou o infinito oceano à sua frente com o firme propósito de vencer seus espectros. E, consolidada em seus intentos, para alegria da família, permaneceu no convés, ainda por algum tempo.
Isabel, que nunca havia viajado em um vapor de médio porte, sentia-se como se estivesse fazendo um verdadeiro cruzeiro tal a euforia em que se encontrava, ora engalfinhada nos braços do tio Antônio, ora passeando pelo convés com a nova amiga Antônia.
A viagem transcorreu tranquila, reconheceu Maria. Apesar do pavor que sentiu quando da saída do cais e por outros difíceis momentos durante os dias de travessia no jogar da embarcação pelas correntes marítimas do Golfo, passou muito bem a bordo, e seu sorriso amplo e feliz confirmava isto, quando, já na casa dos pais, D. Emília enchia-a de perguntas. Passadas algumas horas da chegada, e Maria já tendo repousado após o almoço, encontravam-se todos acomodados na sala de estar onde contavam as peripécias de Isabel durante a viagem, enquanto saboreavam um delicioso vinho verde, observando-a brincar feliz com Pluf, o cachorrinho bassé da avó.
José, que tinha vindo até Lisboa com um propósito em mente, feliz vendo a esposa bem, achou que aquele seria o melhor momento para entrar no assunto que o angustiava há tanto tempo. Levantando-se e voltando-se para os familiares foi de imediato dizendo: - Aproveitando o fato de estarmos todos aqui, junto a vós, meus sogros, pessoas que eu tanto amo e respeito, gostaria de fazer-vos um convite muito especial, que, se aceito, virá amainar em muito a solidão e a tristeza em que vive minha Maria, agravada agora ainda mais com a proximidade da viagem de meus irmãos.
-Gostaria, pois, de propor-vos sr. Joaquim e D. Emília, que viésseis morar conosco na Ilha, visando assim não só à companhia como também o auxílio que teria minha esposa, na chegada de nosso filho.
Maria, surpresa diante do convite inesperado, pareceu criar nova vida. Seus olhos, expressivos, pareciam-lhe saltar das órbitas em agradecimento a seu querido companheiro. A resposta, esperada com ansiedade, parecia tardar em acontecer. E, surpreenderam-se com o apoio da pequena Isabel quando, com seu jeitinho, beijando ora um ora outro, pedia com entusiasmo: - Vamos, vovozinhos, vinde conosco para a nossa Ilha!... Estamos lá todos muito tristes desde que morreram meus avós. E mamãe, desde então, só faz chorar pelos cantos da casa e eu não tenho ninguém com quem brincar ou passear. E baixando mais o tom de voz, demonstrando toda a sua tristeza, continuou:
-Além disso, todos sabem que papai quer mandar-me para o colégio interno onde mamãe estudou, coisa que eu não quero, pois o que gosto mesmo é de ficar em nossa Quinta, continuou a falar Isabel de um fôlego só, tropeçando nas palavras como se temesse que os adultos a fizessem se calar. E, voltando-se para os pais, implorando: - Pois, papai, não tenho lá a D. Lurdes, minha mentora, que todos os dias toma-me tanto tempo enquanto ensina-me literatura, poesia, história, geografia, aritmética e até piano, naquele teclado em tecido? E, no mesmo fôlego... Não quero ir para o internato, vovó Emília. Ficar longe de mamãe que está com a barriga inchando mais e mais e que, pelo visto, qualquer dia vai explodir!...
Chorando, correu abraçando-se fortemente a mãe: - Tenho medo, mamãe, tenho medo de perdê-la como perdi meus avós que foram para o céu.
Todos ficaram muito comovidos ao sentirem o desespero da criança e, sem terem como tranquilizá-la, Joaquim e Emília que já estavam há tempos preocupados com o abatimento da filha, concordaram de pronto em mudar-se para a Ilha.
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Foi grande a felicidade que todos sentiram quando perceberam que, por fim, teriam o convívio de seus familiares. Maria, radiante, agradecida profundamente a José e em especial àquela criaturinha fantástica que era sua filha, voltava a sentir-se feliz diante da possibilidade de ter os pais morando com ela.
Isabel não via a hora que chegassem os tios para contar-lhes as novidades. Quando isso aconteceu, mais à noite, a menina sentada no colo de Antônio enquanto tentava equilibrar o pequeno Pluf nos braços, procurava contar aos tropeções as boas novas. Quando finalmente tomaram conhecimento de tudo, levantaram-se, incrédulos e, procurando confirmar com o irmão a verdade de tudo, abraçaram-se, pondo-se todos a rodar por aquela saleta, rindo, cantando e dançando o vira, felizes com as novidades.
Por várias vezes, Antônio e Pedro haviam pensado em desistir da viagem de seus sonhos. Primeiro, pela preocupação de deixar toda a carga de trabalho com José; segundo, porque amavam demais a família e não aceitavam a possibilidade de não estarem com Maria, quando esta lhes desse o segundo sobrinho. E assim, cheios de cuidados com a cunhada, sentiam-se agora mais tranquilos com a ida dos amigos para a Ilha; e muito mais à vontade para conversar e discutir com eles sobre a viagem para a América.
Todos passaram dias maravilhosos em Lisboa junto a Emília e Joaquim, que não sabiam mais o que fazer para proporcionar-lhes momentos inesquecíveis naquela curta estada. Isabel fizera lindos passeios e voltava sempre, carregada de presentes.
Maria aproveitava os momentos para ficar em casa a tocar o saudoso piano.
Para a família, durante aqueles dias de passeio, a felicidade era plena. O que continuava embaçando a felicidade de Maria era a partida dos irmãos para o Brasil, porque para ela os cunhados eram como se fossem seus irmãos de sangue, tal o carinho e entrosamento que havia entre eles. Na véspera do retorno, Isabel implorava que a deixassem ficar com os avós.
-Vamos lá, mamãe, que não é muito, o que eu vos peço, dizia.
-Pois tira isto da cabeça, criança, que os teus avós terão muito que fazer para organizarem sua ida para a Quinta.
-Mas, mamãe, continuava Isabel, como última tentativa.
-Para com isso, menina, eu já expliquei o porquê de não haver condição de ficares com teus avós e não se fala mais nisso. E, olhando-os penalizada, por ter de deixá-los, ultimou: - Já ficamos mais do que poderíamos, meus queridos. Agora, precisamos voltar para a Ilha, pois imagino como estão sobrecarregados de trabalho o pobre Quim e o João, mamãe. Mas será por pouco tempo, não é? Pois que logo os terei comigo em nossa casa, onde teremos todo o tempo do mundo para conversarmos.
Foi dolorosa a separação. De semblante carregado, Isabel parecia a caminho da forca quando se despedia dos avós e subia no coche parado à frente da casa dos Pereira. Antônio, preocupado em desfazer a tal carranca, tentava chamar a atenção da sobrinha.
-José, será que voltaremos com o mesmo vapor?
-Não sei, Antônio, saberemos quando chegarmos ao porto, respondeu José, agradecido ao irmão.
-O vapor em que viemos era bom, mas um pouco pequeno. Talvez agora, quem sabe, tenhamos um retorno majestoso naqueles grandes vapores de que tanto ouvimos falar. E, logo Antônio, pensou, ao ver o olhar feliz da sobrinha. “- Bingo!... A ideia funcionou.”
Isabel, entusiasmada com o que ouvia, desfazendo na hora a cara feia aconchegou-se para perto do tio e, toda sorriso, perguntou, tomando-lhe a mão: - Dize-me, tio, pode acontecer o que estás a dizer? Será que teremos a sorte de voltarmos para a Ilha em um enorme vapor?... Ah, que isto seria maravilhoso! Concluiu sonhando com a possibilidade.
Os irmãos entreolharam-se e sorriram com a doce inocência. - Qualquer coisa é valida para desfazer certas carrancas, não achais? Perguntava Antônio, provocando o riso.
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-Quero que me contes tudo o que fizeste quando não estávamos juntos, Isabel, pediu-lhe Antônio, enquanto iam para o porto.
-Pois tenho muitas coisas a contar-te, fica certo disso, tio.
Não foi nenhum grande vapor que os levou de volta à Ilha, mas outro, pouca coisa maior que o anterior e que, além da sala de estar confortável, tinha também um salão de música e de jogos para atender às necessidades dos jovens e crianças.
Isabel, como era de se esperar, adorou! Fez muitas amizades entre passageiros e tripulação, acabando por ser encontrada pelo pai aflito, em plena prosa com o capitão, na torre de comando.
-Mas, como vieste parar aqui, menina? Deixou-nos a todos muito preocupados.
-Ora, pois, meu senhor, não ralheis desta feita com a pequena, pois cabe a mim a responsabilidade de ela encontrar-se por aqui, interveio o capitão, que se pôs a explicar: - Encontramo-nos no salão de música e ela abalroou-me de perguntas tão inteligentes, que preferi trazê-la até aqui para responder na prática a todas as questões; e voltando-se para o jovem ao seu lado. O meu imediato, como podeis ver, está encantado com a capacidade de assimilação desta pequena, que até no timão já pegou! Minha intenção era levá-la até a casa das máquinas para que conheça as caldeiras e o sistema de propulsão a vapor.
Isabel, muito feliz, demonstrando toda a vontade de conhecer o estranho sistema de navegação, olhando o pai, convidou: - Vinde comigo, papai, tenho certeza de que ides adorar o capitão Teixeira. José interrompeu todo aquele entusiasmo ao afirmar:
- O teu erro, minha filha, foi não avisares tua mãe de que estavas com a intenção de fazer uma verdadeira exploração pelo navio. E voltando-se para o capitão, desculpou-se: - Sinto não poder acompanhá-los, tenho de tranquilizar minha esposa, que está agitada com o desaparecimento da menina.
-Ide, pois, e ficai tranquilo, senhor, que eu mesmo a levarei à cabina quando acabarmos a exploração, respondeu o capitão.
Todos, riram ao saberem o que aprontara a menina, deixando Maria ainda mais nervosa, pois não via graça alguma na falta de consideração da filha, em não avisá-la de seus intentos.
-José, repreendeu Maria em desespero, elevando bem mais a voz.
-Acalma-te, pois Maria, que a nossa pequena, está muito bem, interveio Pedro, com a intenção de tranquilizá-la.
-Vós, homens, não percebeis, mas muito me preocupa o temperamento de minha filha. Pois ficai certos de que essa natureza dela ainda vai fazê-la sofrer muito. Esperai para verdes! Concluiu Maria, andando de um lado a outro da cabina.
Quando chegaram à Ilha, tomaram o carro e foram direto para casa. Maria, em cuja fisionomia transparecia a exaustão que se encontrava, após rápido cumprimento, foi para o quarto descansar e recobrar as energias, enquanto a filha, falando pelos cotovelos, hipnotizava todos os empregados com as grandes novidades e suas aventuras.
-Para, criança, conta de novo, procura falar mais devagar para que possamos entender o que dizes, pediu a pobre Ana, totalmente aturdida com a enxurrada de palavras.
-Certo, Ana, eu vou tentar, dizia Isabel, quando Celeste a interrompeu e perguntou com entusiasmo:
- Pequena, confirma se ouvi direito quando disseste que Sr. Joaquim e D. Emília virão morar aqui.
-Sim, é claro que eles vêm. Isto é, está quase certo de virem, respondeu, sentindo dúvida de repente.
-Que assim seja. Pois que será de muita felicidade para minha patroinha estar na companhia dos pais, disse Celeste.
-E daí, conta-nos como foi a viagem de ida e volta, uma vez que é do conhecimento de todos nós o pavor que tinha D. Maria de fazer essa travessia, pediu-lhe Quim, aflito.
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-Ora, mamãe foi simplesmente maravilhosa!... Mamãe, papai, os tios... E a menina contava e contava, com prosa para horas a fio.
Anoitecia quando José e os irmãos entraram pela sala e presenciaram a palestra que acontecia.
-Então, como é que vai ficar? Pois que com toda esta conversa, não vamos ter nem mesmo o nosso jantar?
Ana levantou-se esbaforida, e foi para a cozinha, dizendo: - Desculpai-me, patrãozinho, que já sirvo o jantar, e resmungando... Essa criança é uma feiticeira, pois que tem um jeito de contar as coisas que nos deixa como que enfeitiçados. Ora, pois, que era só o que me faltava perder a noção do tempo.
Rindo, todos se dispersaram para cumprir as obrigações enquanto Quim, sentindo-a triste por interromperem sua narrativa, fazendo-lhe um carinho no rosto, falou: - À noite, pequena. Esta noite no alpendre nós estaremos esperando para que nos conte tudo, está bem?
-Estarei lá, meu amigo, conte isso como certo. Estarei lá, garantia Isabel, enquanto ia saltitante a caminho do quarto.
Após o banho, quando retornava à sala para o jantar, parou recostada na porta, feliz com o que presenciava.
Todos já à mesa faziam com que o jantar transcorresse de forma incomum, porque pareciam querer falar ao mesmo tempo nos comentários que faziam sobre a viagem.
Ao perceberem a presença dela, voltaram-se quando José pediu à filha: - Vem juntar-te a nós para o jantar, minha pequena, enquanto estamos a lembrar, já com saudades, os pormenores da viagem.
Isabel, atendendo de pronto ao convite do pai, sentou-se à mesa, porém o que menos fez foi comer, tal a alegria que sentia de ver sua família tão feliz. Pedro, vermelho de tanto rir, talvez também devido ao vinho que corria solto pela mesa, mal se continha a cada frase dita por Antônio. José e Maria, gozando da mesma emoção, participavam com os irmãos da mesma felicidade. Para Isabel tudo estava maravilhoso, porque não se recordava de ter visto os pais assim tão contentes; e muito menos se lembrava de sua família permanecer à mesa por tanto tempo quanto naquela noite.
Ana, que pela terceira vez, chegava à sala participando que o café estava servido na sala de estar, sobressaltou-se, quando ouviu o comentário de Pedro:
-Café, minha querida Ana?... Pois que esteja quente, forte e totalmente sem açúcar, para trazer de volta a sanidade a todos nós e levantando-se, no que foi acompanhado por todos, dirigiu-se à sala de estar, enquanto pedia, estatelando-se em uma poltrona... Pois que venha o café com a bagaceira, minha velha Ana.
Isabel, enquanto esperava que fosse servido o licor à sua mãe, do qual, sempre dava uma bebericada, inquiriu, feliz: - Foi bom não é, mamãe?
Maria, entendendo o que queria dizer a menina, retesando-se na cadeira, exclamou em bom tom: - Apesar dos pesares foi muito boa esta nossa viagem, minha filha, mas nem por isso esperes ver-me em alguma outra embarcação pelo resto de minha vida.
Atônitos pela convicção daquela afirmativa, todos olhavam para ela que, altiva, dirigiu-se para o quarto, após terminar o licor.
José murchou como as miúdas flores das onze horas, entristecido e acabrunhado, ao perceber que de nada valera para seus intentos, aquela viagem até Lisboa.
Antônio, querendo reanimá-lo pediu: - Ora, pois, não fica assim, meu irmão, bem sabes que não terá sido de todo uma verdade, esta afirmação de Maria.
-Pois, conto com isso, Antônio. Conto com isso, meu irmão! Repetia José, como a convencer a si próprio.
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-Papai, não dês trela ao que foi dito por mamãe, pois que não a conseguimos levar até Lisboa? E, muito confiante, continuou: - Quem poderá nos garantir que um dia não a levaremos ao encontro dos tios, no Ocidente?
Com a observação da filha, José reanimou-se um pouco, porque o espírito aventureiro lhe era muito forte e, vencidos os momentos de fragilidade, parecia que voltava com mais força ainda seu desejo de ir ao encontro dos irmãos, rumo ao desconhecido.
Mudando radicalmente de assunto, eles começaram a planejar a grande viagem, porque, pelo menos para isso, fora de grande valia aquela viagem, pelo simples fato de terem conseguido a concordância dos parentes de vir morar na Quinta. Assim, mais tranquilos, todos podiam programar aquela nova e arriscada experiência.
Isabel, percebendo que o assunto seria somente sobre a tal aventura, retirou-se da sala a caminho do alpendre, onde todos já a esperavam, inclusive, Rosita e Felipinho.
-Senta-te aqui, pedia o amigo Quim, fazendo-lhe um gesto com a mão, quando todos, apertando-se uns aos outros, sentaram-se a sua volta para ouvirem as novidades.
Passaram-se as horas, a noite já ia longe, e a menina contava e contava, tirando risos dos que a ouviam. A certa altura, o cansaço foi mais forte e todos saíram para seus aposentos, pois, como dissera a velha Ana ao levantar-se daquele degrau incômodo. - Amanhã é outro dia, e a lida será grande, deixemos o restante dessa prosa para outra hora. Concordas, minha menina?
-Vamos, pois recolher-nos, antes que D. Maria chegue para ralhar com todos nós, completou Celeste, levantando-se também.
Isabel deitou-se eufórica, a relembrar aquela maravilhosa viagem. “-Como estarão vovô e vovó neste momento? Estarão dormindo, ou inquietos em suas camas, como eu?”
Mal sabia a pequena que, em Lisboa, o mesmo acontecia com seus avós. Emília e Joaquim discutiam até onde seria bom a mudança deles para a Ilha, uma vez que sempre tiveram receio de se envolverem na vida do casal que, percebiam, vivia muito bem.
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O que pesava muito, no conflito da dúvida de aceitarem ou não o convite do genro, era a solidão que sabiam viver a filha desde a trágica perda dos sogros. E também a preocupação com a debilidade física que Maria apresentava no semblante triste e cansado, pela gravidez difícil que passava. Tudo isso eles tinham presenciado e testemunhado, quando da recente visita. Depois de muito conversarem, eles chegaram à conclusão de que não só Emília seria útil à Maria com o novo bebê, como também Joaquim poderia, e muito, ajudar o genro José, uma vez que já anteviam a sobrecarga de responsabilidades na administração dos negócios da família e as dificuldades pelas quais ele passaria, com a partida dos irmãos. Portanto, sem mais pensar, decidiram fechar a residência no continente e partirem em direção à Ilha, felizes com a possibilidade de poder ajudar, além de conviver com a filha muito amada e sua maravilhosa família. E assim, numa manhã de Outono, chegavam eles à Ilha com seus pertences, e claro, como não poderia deixar de ser, com o cachorrinho Pluf, para maior alegria de Isabel.
Depois da chegada do casal e de Pluf, tudo pareceu criar vida nova naquela casa.
-Pluf, Pluf, mas o que fazes aí, roendo o pé do sofá, seu arteiro? Pois safa já daí, que se te pegam, com toda certeza vais acabar preso no quartinho das ferramentas, ralhava Isabel, tomando no colo o cãozinho e levando-o para o alpendre, onde se pôs a brincar com uma bola de pano que Ana havia feito.
Com a presença dos avós, Isabel superou quase todos os conflitos, principalmente em relação à próxima chegada do irmãozinho. O medo de dividir o carinho, atenção e mimos com alguém, mesmo que fosse seu irmão, afligia-a muito, porque, sem perceber, estava sempre a manifestar o ciúme de que já era acometida. Certo dia, enquanto Emília fazia tricô, ouvia as lamentações que já se tornavam costumeiras para ela.
-Os bebês costumam ser tão bonitinhos e engraçadinhos, não é vovó?
-Com certeza, sim, minha netinha.
-Lembro-me de Rosita, que de tantos mimos ficou muito mal acostumada, querendo só ficar no colo. E com todos os marmanjos ao redor dela..., eles pareciam tão encantados que esqueciam até mesmo de seus afazeres, concluiu Isabel, em ciúme.
Emília largou o trabalho e olhou para a neta que, sentada a seu lado, brigava com a agulha e o fio de linha, na tentativa de fazer aquela famosa toalhinha de bandeja, que há meses parecia encantada, pois não saía, por mais que a pequena se empenhasse.
-Vede vovó, parece que agora estou com mais prática, pois que há um bom tempo não desfaço nenhum ponto do trabalho. Vede, vovó..., vede por vós mesma, pedia a menina, orgulhosa.
Pegando o trabalho já todo abolado de tanto ser desfeito, Emília admirou-se com a perfeição dos pontos que por fim a neta apresentava.
-Pois não é que está mesmo ótimo, minha criança? Os pontos estão perfeitos, pois agora você está respeitando a tensão do fio.
-Arre?!....Até que enfim!... Mas dize-me cá, vovó, que agora existe isto de tensão de linha, também, é? Perguntava Isabel, achando tudo aquilo muito estranho e complicado.
Emília, com a paciência de sempre, explicou: - Vem ver o que te digo, minha menina, os pontos do teu trabalho agora se encontram não só perfeitos na contagem dos fios como também na tensão da linha, pois estão todos uniformes, não tendo nem um mais apertado que o outro.
-É mesmo, vovó! Não está lindo, como a senhora diz? - Pois sabeis de uma coisa, eu vou agora mesmo ensinar para Rosita esse truque de deixar a linha meio solta, isso que a senhora chama de tensão. Pois não é que ultimamente, ela teima em fazer tudo o que eu faço? Mamãe riscou uma toalhinha para ela bordar, mas ela me atazana para desfazer os nós que dá na linha, mais do que borda.
Emília, rindo do comentário da neta, retrucou: - Ela, com seis anos, é bem nova para bordar, Isabel.
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-Mas como, vovó! Se mamãe diz que pega num bastidor desde os cinco anos. Isso é verdade?
-Lógico que sim, minha pequena. Como Maria estava sempre comigo, só de olhar o que eu fazia, aprendeu rapidinho.
-Pois vos conto aqui um segredo, vovó. Por favor, não espalhes a ninguém; pedia abaixando o tom de voz, enquanto aproximava a boca ao ouvido da bondosa senhora: - Eu não gosto lá muito dessa história de passar as tardes inteiras com trabalhos manuais ou com os livros nas mãos, principalmente com a cansativa e chatérrima grande obra de Camões, sabeis? E voltando a sentar-se ereta, na cadeira, e não esqueçais que prometestes guardar este segredinho, pois que, se ele cair nos ouvidos de Ana, ai sim, meu Deus, o que não vou ter de ouvir, pois ela vive me dizendo que não tenho modos de menina fina. Ora, pois, modos de menina fina, vovó!... Pois que eu nem sei lá o que vem a ser isso!....
-Minha menina, fica sabendo...
-Não, vovó, a senhora não, por favor... Não me venha também a senhora com aqueles mesmos sermões, pois tio Antônio não diz sempre que tudo a gente aprende com a vida? Pois esta é uma das coisas que vou esperar aprender com a vida e, lógico, com a azucrinante da D. Lurdes, que não passa um diazinho sequer, que não me venha com ensinamentos de boa postura e outras coisas.
Largou novamente o trabalho, aproximou a cabeça mais perto da avó e murmurou com o olhar divagando além da janela próxima ao canto da grande sala: - Sabeis, vovó, o que gosto mesmo de fazer?... Pois o que mais gosto mesmo, é... Ah!... Eu gosto mesmo é de andar pela Quinta vendo os homens na catação e no pisotear das uvas. Também adoro degustar nossos vinhos, sentindo-lhes o real teor em seu odor e no peculiar sabor. Tudo isso aprendi com meu bom mestre, vovô Fernando; e agora, desde que vocês chegaram, com vovô Joaquim. Disse a menina de um fôlego só, voltando a pegar o trabalho, à espera da reprimenda da avó. Porém, como esta não veio e, concentração era uma qualidade que lhe faltava, a avó assustou-se quando a ouviu dizer: - Ficai, pois, sabendo, vovó, que quando crescer quero me casar com um homem muito rico para não precisar fazer nada. Somente mandar e ordenar!... Pois, é isso aí, vou casar-me com um homem muito rico e ter muitos criados.
Emília, pensativa e meio chocada com a determinação da neta, retrucou: - Mas para mandar e ordenar é preciso saber fazer, minha menina. Portanto, esta fase de aprendizado de que não gostas muito é fundamental para ti, minha filha, se um dia chegares a ser uma grande dama, casando-se com um homem muito rico.
Isabel pareceu não gostar muito do rumo daquela prosa. E tentando fugir daquela situação doméstica, levantou-se e, num repente, falou, enquanto esticava de um lado a outro o amarfanhado trabalho: - Para melhorar o aspecto deplorável em que se encontra meu trabalho, vou já pedir que Ana dê uma boa passada nele, e pedir-lhe que não o queime com as brasas do ferro, como aconteceu com uma camisa de tio Pedro. E, com afetação... -O titio é muito bonzinho, vovó, pois eu, no lugar dele, faria com que ela fizesse ou mandasse fazer outra, igual à que ela estragou. Mas como a pobre Ana mal sabe pegar em uma agulha, e dinheiro que é bom, para ela não lhe sobra, com os gastos de sua família numerosa... A coisa ficou como ficou; e titio, sem a sua camisa.
Não esperando resposta, levantou-se e saiu em direção à cozinha, com o pequeno Pluf no seu encalço. Emília pasma, chocada com a grande prepotência da neta e, pensando alto, como, aliás, tornara-se um hábito de todos naquela casa, murmurou: ”- Pobre menina, quanto terá de aprender com a vida. Quanto!...” E voltando com os olhos marejados para o xale que fazia para o novo neto, concluiu “- Quanto ela vai sofrer, com o gênio forte que apresenta!”
Maria, entrando na sala, perguntou: - Por que estes resmungos e a fisionomia tão carregada de preocupação, mamãe? E olhando para os lados, antes de sentar-se. - Onde está Isabel, que há pouco vi bordando em alta prosa com a senhora?
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Emília, escondendo as cismas para não preocupar ainda mais a filha, respondeu: - Pois não é que a menina finalmente conseguiu apresentar um bordado razoável, Maria? Pois ela correu pedir a Ana que o passe a ferro, para ter uma apresentação melhor.
Maria, sentando-se ao lado da mãe, pôs-se a dizer: - Ora, pois, mamãe!... Como se a senhora ainda não soubesse, que tudo é motivo para ela largar seus trabalhos, como também, os estudos e leituras... Ela é muito irrequieta, não consegue se concentrar em nada, e isso me preocupa demais.
-Ora, deixa disso, que tudo vem no seu tempo... Tudo vem no seu tempo, repetiu Emília, como a convencer a si mesma.
Maria suspirou e, com um largo sorriso, disse: - É tão bom ter-vos aqui conosco, mamãe; a casa ficou mais alegre e movimentada depois da vossa chegada.
-E por acaso precisavas de nós, para movimentar esta casa, minha filha? Ou a presença de Isabel não bastava para isto?
-Ora, mamãe, a senhora entende do que estou falando, não é? Para mim, é simplesmente maravilhoso acordar todas as manhãs sabendo que estarão comigo já logo no desjejum, e não mais me preocupar com a possibilidade de vê-los voltar para o continente.
-Para nós também é maravilhoso estarmos aqui convosco, nesta Ilha paradisíaca. Portanto, estamos quites e, vamos ao trabalho, finalizou, com olhos expressivos.
Maria sorrindo, olhou para a mãe, pegou o trabalho na cesta ao lado da cadeira e pôs-se a bordar o lençol que fazia para o bebê.
E assim elas passavam os dias: sempre juntas, conversavam enquanto trabalhavam, passeavam pela Quinta; ou simplesmente desfrutavam do ar puro e da quietude do alpendre, onde ainda se podia encontrar aqui e ali uma folha verde da linda trepadeira. Era outono, uma das estações preferidas de sua mãe, que adorava andar pelas alamedas forradas pelas centenas de milhares de folhas secas no dégradé do vermelho ao sépia que atapetavam o caminho. "-Os estalidos das folhas sob meus pés causam-me uma sensação de relaxamento e muita paz, minha filha...", dizia sua mãe, quando a forçava a caminhar todos os dias pela manhã, para que fizesse exercícios a fim de facilitar-lhe a hora do parto. Mãe e filha sempre foram unidas e, desde o casamento dela, Emília sentia falta de sua companhia. Agora, vivendo junto dela e seus familiares, estavam tão felizes ela e Joaquim, que já pensavam em vender a casa de Lisboa, para morarem de vez na Ilha.
Só relutavam porque achavam ainda muito cedo para tomarem uma decisão tão radical. Assim, entre alegrias e preocupações, o tempo ia passando. Todos esperavam a chegada do novo bebê e também se dedicavam ao próximo aniversário de Isabel, que aconteceria pouco antes da partida dos irmãos.
Certa tarde, Maria e Emília estavam entretidas nos bordados quando Isabel entrou na sala, agitada e inquieta. - Mamãe, D. Lurdes deixa-me furiosa com suas exigências. Imaginai que ela teve o desplante de não aprovar o resumo da obra do Padre Vieira que lhe apresentei, dizendo que meu trabalho estava muito vago? Ora, pois...
Maria repousou o trabalho no colo, já bem curto pelo avantajado ventre, olhou para a filha e, reprovando sua falta de decoro ao sentar, disse: - Uma dama jamais se senta de maneira tão desleixada por mais que se encontre aborrecida, minha filha. E, quanto à tarefa não aceita, recomendo que leias novamente e com muita atenção o Sermão que lhe foi pedido e o resuma de forma adequada.
-Ora, mamãe, não existe nada pior que a leitura daqueles Sermões, com todas aquelas frases em Latim em meio a seu texto.
-Pois, traduze-as de acordo que verás que não é assim, uma leitura tão desagradável.
-Ah, mamãe, como pode afirmar tal coisa? Pois fico a pensar em que poderá ser-me útil toda essa literatura! Ora, pois...
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-Senta-te direito e age como uma donzela educada, pequena, pois que me chocas muito toda esta tua descompostura, concluiu Maria, voltando ao bordado.
-Causa-me muita inveja Rosita, pois que ninguém fica exigindo que ela se sente ereta na ponta da cadeira, traga os joelhos e pés juntos, dura como um dois de paus e, muito menos, vejo-a por ai intoxicando-se de pura literatura, lendo Camões ou o famigerado Padre Vieira. Como é feliz, aquela pequena!... Ah! Deus! Como ela é feliz!... Exclamava num suspiro, aprumando-se no assento.
As mulheres entreolharam-se e riam de maneira camuflada ao perceberem a menina ajeitar sua ampla saia, e sentar-se de maneira conveniente, atendendo ao pedido da mãe. Passados alguns minutos, Isabel, ainda tamborilando os dedos nos braços da poltrona pelas tantas exigências, voltou-se num repente e afirmou: - Meu aniversário está chegando. Penso em aproveitar a data para fazer uma festa de despedida surpresa para os tios. O que achais, mamãe?
Maria, olhando a mãe como a lhe pedir socorro, retrucou: - Sinto-me tão cansada ultimamente que pensava em pedir a teu pai que fizesse algum passeio contigo, ao invés de organizar uma festa de aniversário, minha filha.
Levantando-se, Isabel achegou-se a ela e, abaixando-se ao lado da cadeira, com um sorriso e olhar brilhante, murmurou: - Pois esta viagem eu deixaria para outra ocasião, mamãe... Mas gostaria de fazer uma reunião de despedida aos tios, e nada melhor que a data de meu aniversário para proporcionar-lhes uma surpresa, sem que eles desconfiassem, não é?
-Mas eu lhe disse que me sinto muito indisposta para organizar tal evento.
-Ora mamãe, não precisais vos preocupar. Ana, Celeste e eu trataremos de tudo.
Emília, que assistira àquele colóquio, largando o trabalho, veio em socorro à filha, que percebia já fatigada com o assunto.
-E tu tens lá idade para organizar alguma coisa, Isabel?
Levantando-se ofendida, a menina retrucou: - Ora, pois, vovó, mas é lógico que consigo organizar uma festa, vos não confiais e ainda me subestimais em minha capacidade, vovó!...
-Não é o fato de confiarmos ou não em ti, Isabel, é sim, que tens nos demonstrando tanta irreverência e infantilidade, que não te achamos à altura de preparar sequer uma simples reunião, quanto mais uma festa.
-Pois estais muito enganadas, posso parecer a menina infantil e irreverente pelo que todos me tomam, mas sei que tenho capacidade de organizar uma grande recepção e que vós ficaríeis muito surpresas com o meu potencial.
-Tu és ainda uma menina, não tens idade para tanto, retrucava Maria, desalentada.
-Idade? Ora, pois, já estou com quase dez anos e me falais de idade? Vede Irene, Toninha e até mesmo a pequena Madalena, que casaram quase com minha idade e já se encontram às voltas com filhos, casa, marido e tudo o mais.
-Toninha tem doze anos, Isabel, e sempre foi muito amadurecida não é, mamãe? Perguntava Maria, interpelando a mãe, que fazia todo o possível para manter-se fora daquele confronto. Mas sentindo o olhar suplicante da filha, afirmou:
- Toninha e as outras não só eram maduras para se casarem como também jamais foram tão mimadas quanto tu, pequena.
-Pois tenho eu culpa de ser mimada? Isto não quer dizer que não seja matura, posso até aparentar certa infantilidade quando me seja conveniente, mas garanto-vos que estou preparada para tudo.
Maria, exaurida como estava com aquela prosa, levantou-se. Pensava em bater em retirada para o quarto quando se sentiu presa pelo braço e, voltando-se, pasma, ouviu o que dizia aquela que considerava sua criança.
-Não fujais agora, mamãe. Não antes de permitir que vos prove minha capacidade organizando essa reunião de despedida!
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Vencida e meio transtornada, enquanto soltava-se daquelas mãos, murmurou: - Pois faze como quiseres minha filha. E tente provar esse potencial que afirmas ter.
-Obrigada, mãezinha, obrigada. Não vos arrependereis!
Feliz, dando uma pirueta, que fez abrir em larga copa a ampla saia que vestia, voltou-se para a avó, que trazia os olhos desmesuradamente abertos pelo espanto daquele colóquio, e disse: - Não fiqueis assim tão aparvalhada, vovó, pois que a senhora se surpreenderá ainda mais ao ver a grande festa que organizarei.
-Mas, e os Sermões, pequena?!...
-D. Lurdes que espere, vovó, pois que vai também se surpreender com o trabalho que vou lhe apresentar.
-Assim espero, minha querida, assim espero... - E vê lá se também não arrumas, como tuas amigas, um bom casamento nessa grande festa, minha menina, murmurava Emília ao acompanhar a neta, que saía em disparada com Pluf atrás dela.
-Casar-me!!!... Pois não vos preocupeis com isso, vovó. Pois que isso jamais acontecerá! Não nesta ilha, minha avó. Não em meio a todos esses lavradores!
-Ana..., Ana..., onde estás que não ouves meu chamado, mulher!?
A partir daquele dia, a casa ficou muito movimentada. Isabel, feliz, causava uma verdadeira arruaça na grande moradia, pedindo que Celeste e Ana lustrassem os móveis, o chão, limpassem as paredes e os quadros, enquanto ela preparava a lista dos convidados que, pela quantidade, mais parecia lista para casamento.
-Mas que grande confusão está a arrumar nossa pequena? Perguntou Pedro, estranhando toda aquela preparação.
-Ora, tio, eu estou preparando e organizando a casa para a festa do meu aniversário.
-Outros já aconteceram e nenhum precisou de tantos preparos, minha pequena, retrucou Antônio, cismado.
-Pois há sempre uma primeira vez para tudo, não é? Retrucou a menina, no seu vai e vem pela casa.
Outra coisa que causava espanto aos familiares era quando, entre uma tarefa e outra, Isabel sentava-se num banco do jardim pondo-se a ler, concentrada por horas a fio. Percebendo todo o assombro nas pessoas que amava, com certa tristeza notou: “- Meu Deus!... Com todo o corre-corre, o tempo passou rápido, sem fazer-me lembrar do quão rápido chega também o dia da partida dos tios para tão longe”.
De todos da casa, Quim e João eram os mais perturbados com a tagarelice e os planos para a tão esperada festa surpresa. Como haviam dado a palavra que nem José seria comunicado de tal evento, com muita paciência eles ouviam os planos da pequena e se propunham a fazer o que lhes fosse pedido.
-Olha, Quim, já que haverá poucas flores nesta época do ano, pedi a João que cortasse folhagens e galhos secos para fazermos um belo arranjo no canto da sala. E, voltando-se para João... Eu gostaria que providenciasses dois longos bancos para serem colocados no alpendre, como também outros mais rústicos, para serem dispostos no jardim em frente da casa. Assim todos ficarão mais bem acomodados, porque, pela lista de convidados que tenho em mãos, se aprovada por mamãe, seremos muitos.
-Mas, menina as pessoas vão querer passear pela propriedade, que possui lugares maravilhosos e já com bancos espalhados por todos os lados, disse Quim com certo cuidado, pois longe dele contrariar uma ordem da pequena patroinha.
-Mesmo assim, Quim, nós faremos o que pudermos para oferecer o maior conforto possível aos convidados, certo?
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Na cozinha, Ana, já louca com a menina querendo se intrometer em sua seara, e vendo-a chegar ali já matraqueando sobre o que queria, não pensou duas vezes ao levantar na mão a grande colher de pau enquanto enxotando-a, retrucava: - Pois, safa-se já, daqui, menina, porque muito antes de nasceres eu já preparava os comes e bebes para as enormes reuniões oferecidas por seus avós. E, de forma ameaçadora, literalmente tocava a pirralha de seus domínios, ainda resmungando. - Ora, ora, pois, que agora quer pôr o bedelho em minha cozinha, é? Pois que esta pimentinha fique sabendo que não sou João e muito menos o pobre Quim, que se desdobram para fazer o que lhes pede esta ferinha... Hum!... Vê lá, se isto é educação que se dê a uma menina. Ora, pois..., rezingava com seus botões a boa criatura que, como todos da casa, acabava sempre por fazer tudo o que a menina quisesse.
Izabel saiu da cozinha aborrecida com Ana. Rezingava impropérios olhando para trás quando, surpresa, trombou com Antônio que chegava com os irmãos. - Ora, pois, quem nós encontramos a maldizer nossa querida Ana! Disse Antônio, segurando-a para não cair, tal era a fúria com que ela vinha da cozinha.
-Deixa-me, tio, pois que estou mesmo muito furiosa! E, abraçando-se ao pai, ouviu-o perguntar com calma habitual: - Diga-me, pois, pequena, o que de tão sério pode ter dito nossa velha Ana para deixar-te neste estado de agitação?
Procurando o que falar para não se contradizer, Isabel retrucou: - Ficais vós sabendo, meu tio, que essa senhora enxotou-me da cozinha, só porque eu estava a dar palpites em meu bolo de aniversário.
Antônio, penalizado, procurou consolá-la e, abaixando-se pediu para que ela subisse de cavalinho nos ombros, como sempre fazia, queixando-se quando a sentiu mais pesada.
-Estás a pesar cada vez mais, minha menina. E logo a prevenindo antes de atravessarem a larga porta que dava entrada no recinto que exalava um cheiro gostoso de broas de fubá. Olha a cabeça, pequena, que agora já estás bem mais crescida também. E tu, minha velha Ana, dize-me, pois, porque não queres fazer as vontades da minha pequena?
Ana, vendo a menina de novo de cavalinho nos ombros do tio, furiosa, respondeu: - Ficai, pois, o senhor sabendo que esta abelhuda vive dando palpites aqui em minha cozinha. É verdade que eu a tenha posto para fora daqui, porque não há condições de se trabalhar com alguém zumbindo na orelha o tempo todo. Ora, pois!... E olhando com maus olhos para José, exclamou, juntando as mãos em oração: - Valha-me Deus, Sr. José!... O senhor presenciar o jeito como é levada esta sua menina pelo tio e nada fazer, e meneando a cabeça, concluiu. Não existe mesmo mais compostura nas meninas de hoje em dia. Se minha Rosita um dia subir nos ombros de um homem, fiquem certos, de que vou matá-la de pancadas.
-Ora, ora, Ana, como podes dizer tal coisa, se já cansamos de vê-la de cavalinho com o tio pela Quinta? Disse Pedro, em socorro da sobrinha.
-Aquieta-te, minha Ana, que perto está o dia de nossa partida, pois até lá, deixa-me desfrutar enquanto estamos juntos desta graciosa companhia, pediu Antônio, entristecido, enquanto continuava: - Nessas noites que antecedem a nossa partida, Pedro, eu acordo e me vejo já longe daqui, morto em saudades de tudo e de todos.
-Eu também, tio..., não gosto nem de imaginar como será depois que partirem. Eu, sim, é que vou morrer de saudades, balbuciou Isabel, com voz chorosa.
José, que chegara com fome, para cortar o rumo daquela prosa, sentou-se logo à mesa para o breve lanche, porque tinha que aproveitar o máximo dos irmãos, que o ajudavam sobremaneira. Convidando os outros para que fizessem o mesmo, logo pegou uma broa quentinha e serviu-se de café, no que foi acompanhado de Pedro, enquanto Antônio, sentando-se, acomodava a sobrinha no colo, para maior espanto de Ana. Esta, apesar da carranca, atendia a família no lanche, enquanto ouvia Isabel, que falava sem parar: - Sábado é meu aniversário e gostaria de saber o que vão me dar de presente.
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Virando-se no colo de Antônio a fim de olhá-lo nos olhos, pediu: - Compra-me um vestido, titio, um bem bonito. Mas nada de laçarotes e nem aquelas golinhas infantis, pedia-lhe com carinho, enquanto fazia-lhe um carinho nos lábios e colocava-lhe um pedaço de broa na boca.
Celeste, que entrava na cozinha para preparar o lanche das senhoras, foi abordada abruptamente por Ana que, pegando-a pelas mãos, puxava-a enquanto dizia: - Vem comigo, pequena, que depois, com calma, preparamos o café de nossas patroinhas, mas, por favor, vem comigo agora, pois que, o que estes meus olhos já viram hoje, por hoje já me basta. E, saiu da cozinha acompanhada de Celeste ainda reclamando. Gostaria de saber onde esta pouca vergonha vai chegar!... Gostaria muito de saber, minha Celeste, juro que gostaria.
José, ouvindo e achando que já estava demais a implicância que percebia em Ana, resoluto, abandonou o café, saindo atrás dela.
-Bem feito para Ana..., bem feito, disse Isabel, no que foi contrariada por Pedro.
-Pois tenho cá comigo uma opinião diferente, minha menina, será que não está coberta de razão a pobre Ana, quando te vê sempre no colo e nos ombros de Antônio? Vês que não és mais uma garotinha para andar por aí no colo dos rapazes?
Antônio, ouvindo isto, pôs a menina no chão e reclamou com rispidez: - Até tu, Pedro... Até tu!... E, levantando-se sem terminar o café, aborrecido, saiu.
-Por que, tio Pedro, por que todos implicam com o fato de eu gostar de estar sempre com tio Antônio? Será que não seria um pouco de ciúme, pois todos são mais fracos e com certeza, não aguentariam o meu peso?
Pedro, ao ouvir tamanho despautério, levantou-se para sair, mas não antes de, com uma carranca fechada, preparar uma cesta com o café dos homens, que sempre era preparada por Ana. E saindo da cozinha, resmungava baixinho: - Ana tem razão. Está demais o que acontece entre esses dois. A pequena já é uma jovem donzela para ter esse comportamento. Só José e a pobre Maria é que não percebem o que está a gritar aos olhos de todo o mundo.
De repente, estancando os passos, meio chocado com o que acabara de falar, murmurou: ”- Cala-te boca, que como ouvi ainda há pouco, vão pensar que o que tenho, é ciúme da pequena. Ora, pois, vejam só, se lá isso seria possível!... Ciúme?... Euuuu!?...”.
E ainda mais surpreso ouviu-se falando. “- Ora, ora, que peguei também a mania de todos da casa, pois que, por nada, percebo-me falando sozinho. E isso era só o que me faltava, ter ciúme da menina... Falar sozinho... Ora, pois, onde já se viu?...”.
CAPÍTULO 4
A TRISTE PARTIDA
Enfim, para Isabel, o tão esperado sábado chegou. Levantando-se antes que de costume, entrou na cozinha e pegou Ana que, muito afobada, preparava o desjejum.
-Ora, ora, pois que minha querida Ana está atrasada bem hoje, um dia tão importante para mim?
-Ora, pois... Olha quem caiu da cama tão cedo!... Vem cá, minha menina, que quero ser eu a primeira a cumprimentar-te pelo aniversário. Feliz Aniversário!... Isabel atravessou a cozinha para receber aquele abraço, enquanto Ana, abaixando-se sob a mesa grande, levantou-se com um pequeno embrulho nas mãos, oferecendo-o com um sorriso e os braços bem abertos para abraçá-la.
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-Por favor, não repara, é uma coisinha simples, mas espero que gostes, pois que o encomendei ao Sr. Pedro quando foi a Sintra.
Abraçando bem forte aquela portuguesinha miúda, Isabel retribuía-lhe os beijos, dizendo: - Ora, pois, que não devias te incomodar, minha Ana, principalmente tu, a quem tanto tenho arreliado, murmurava, abrindo sofregamente o pacote e deparando-se com um mimoso porta-joias em madrepérola, que devia ter custado pequena fortuna.
-Obrigada, Ana, é lindo! Estava louquinha por um destes, acertaste em cheio!
-Espero que tenhas gostado. Foi sugestão do Sr. Pedro.
-Pois eu adorei, Ana!... Exclamava a menina, feliz.
Aprontavam a mesa para o café, quando entraram os avós carregados de pacotes.
-Vem, pequena, vem ver o que te trouxemos de Lisboa.
-Ora, ora, vovó, não era preciso vos incomodar com tanto, dizia Isabel, já pegando uma grande caixa e pondo-se logo, impaciente, a rasgar o lindo papel que a envolvia.
Abrindo um a um os presentes, não conseguia no final esconder a grande desilusão estampada no rosto. Os avôs eram os únicos que não perceberam que crescera. Deram-lhe a famosa boneca de pano, um vestido que, como não podia deixar de ser para uma menininha, tinha enormes laçarotes na cintura, meias soquetes e, o pior, o horrendo par de sapatinhos com os famosos lacinhos no peito do pé e as famigeradas tirinhas de abotoamento. Olhando para aquelas peças esparramadas a sua volta, enquanto tentava colocar os horrorosos sapatinhos nos pés já bem maiores, pensava com tristeza. “- Pois isto era tudo o que eu jamais gostaria de ter ganhado neste meu aniversário!”
Emília, decepcionada com o desprazer que transparecia no semblante da neta ao presenciar a luta que enfrentava para calçar os sapatos que lhe dera, comentou: - Mas como que estes sapatos não te servem?
-Ora, vovó!... Eles não me servem porque eu cresci. Estou completando dez anos e não sou mais a menininha que vocês pensam!
-Não me diga que a minha netinha cresceu tanto assim, exclamou Joaquim, decepcionado. Não te preocupes que trocaremos tudo por algo que te sirva e, bem a teu gosto, minha pequena, prometeu com um sorriso desenxabido.
Depois do tumultuado café da manhã, Isabel, feliz com a proposta do avô, pôs-se a preparar a recepção tão esperada, deixando todos atordoados com suas exigências.
-Não, Celeste, as cadeiras devem ficar mais afastadas, deixando livre a passagem para a circulação das pessoas.
-Quim, coloca este arranjo no centro daquele canto.
-Centro do canto? Perguntava o homem, a girar com a grande ânfora numa belíssima decoração de galhos, folhagens e flores.
-Sim, homem de Deus!!!... Bem no centro. Toma como base o ângulo das paredes. Cuidado para não quebrar-lhe os galhos, recomendava.
-Ana, as jarras...
-Pois podes ir abaixando esse tom de voz, mocinha, que das jarras e tudo o mais de minha cozinha cuido eu. Seria muito bom que a menina começasse a se arrumar, deixando-nos assim em paz para pormos um término de vez nesta arrumação, pois as horas passam e já chegarão os convidados, respondeu Ana, já meio estonteada.
-Mas, Ana...
-Vamos, vamos, pequena, vá te safando rápido daqui, antes que nos enlouqueça, disse, empurrando-a corredor adentro.
-Mas Ana, o vinho...
-Do vinho cuida João, mocinha, não foi assim que a menina determinou? Ande, pois daqui que sabemos as nossas funções.
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E assim, apesar dos atropelos, a manhã passou rápida, e o resultado final foi uma exclamação de admiração por todos da casa.
-Que linda ficou a sala!.... O alpendre!... O jardim!... Exclamavam em coro os familiares, em uníssono.
Maria, orgulhosa, comentou:
-É que não vistes a organização na cozinha. As bandejas já preparadas com copos, pratos e garfinhos para o bolo, tudo já disposto e pronto para servir. Como também o vinho branco, desde ontem, já suspenso nos cestos colocados na fresca fonte natural para estar em temperatura ideal ao ser servido.
-Isto tudo sem mencionar as jarras de cristal para servir o suco de uva e tudo o mais, pois esta menina não se esqueceu de nada. Não se esqueceu de nenhum detalhe, afirmou Maria, orgulhosa.
-Espero que não mesmo, mamãe, pois me fartei de acompanhá-la na organização das reuniões que já ofereceu. Espero tê-la deixado feliz com o meu trabalho. Tomando a mão da mãe e voltando-se para Celeste e Ana, murmurou: - Sabes, mamãe, cada um dos nossos colaboradores já está com a função definida e não quero, de forma alguma, atropelos de última hora. A senhora e vovó hoje sereis visitas e gostaríamos que não vos preocupásseis com nada. Não é mesmo, Ana?
-É lógico que sim, pequena, se sair tudo como organizaste, esta será a festa do ano em nossa Ilha e, ficaremos orgulhosos de ti.
José entrou na sala com Celeste, que trazia várias caixas de presentes. Feliz e colocando-as no chão, dizia: - Já que estamos reunidos, vê aqui, o que temos para ti, minha filha.
Isabel, que ansiara por aqueles momentos a manhã toda, sentando-se no chão, detonava as embalagens.
-Que lindo sapato, papai!... Nossa!... Este vestido é maravilhoso! Enquanto abria os pacotes, mais pacotes apareciam, vindos de Pedro, Antônio e mais outros dos pais e dos avôs.
Entre exclamações, gritos e beijos efusivos, Isabel percebia que ali, encontrava-se quase tudo com que poderia sonhar uma menina da idade dela. Adornos, como uma correntinha em ouro com um lindo pingente de Nossa Sra. de Fátima, brincos de ouro com pedrinhas de rubi, chapéus, vestidos de várias cores e modelos; inclusive um que Antônio havia encomendado a Mme. Rosée, especialmente para ela. Perfumes franceses, livros variados e, como não poderia deixar de ser, várias peças de enxoval da avó Emília.
Ditosa com os presentes, Isabel, agradecida, beijou a todos e pôs-se a juntar montes de papéis e caixas com o auxilio de Celeste, de quem tinha ganhado um lindo lenço. - Vamos, Celeste, vamos pôr ordem em toda esta bagunça, pois que nossos convidados estão para chegar.
Num vai e vem rápido, logo ficou tudo na mais perfeita ordem, justamente quando chegava sua mentora D. Lurdes, acompanhada pelas filhas. Isabel, correndo a cumprimentá-las, aceitou e agradeceu a lembrança que lhe traziam. D. Lurdes, observando-a com um sorriso já meio enrugado pela idade e o rosto muito empoado, foi logo dizendo: - Espero que faça bom uso desta leitura, minha querida.
Surpresa quando abriu, longe de serem os Sermões do Padre Vieira ou alguma outra obra literária, viu que era um exemplar de “O grande livro de Boas Maneiras”.
-Vede, mamãe, que gentileza D. Lurdes lembrar-se de mim.
Maria, ao ler o título, com um sorriso, respondeu: - Será de muito proveito para ela tão boa leitura, D. Lurdes. E olhou com firmeza para a filha, como a dizer: “- Não te atrevas a dizer o que estás pensando.”.
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Isabel, entendendo o que a mãe lhe pedia, respondeu, com muita afetação: - Muito obrigada, D. Lurdes. E, como disse mamãe, será de muito bom proveito para mim, tão boa leitura. E disfarçando a decepção, com um sorriso amorfo, pediu licença e pôs-se a correr para o casal Alcântara que chegava, acompanhado dos três filhos. - Ora, pois, vejam quem chegou!
Maria, colocando o livro junto aos presentes da filha, antes de afastar-se, murmurou: - Fico-lhe muito grata, D. Lurdes, pois nós sabemos o quanto as meninas desta idade necessitam de um livro como este, não é? E, afastando-se com elegância, voltou-se para cumprimentar Mercedes, sua amiga de infância.
Todos chegavam com presentes para Isabel e muitas lembranças, cartas e cartões que eram entregues a Antônio e Pedro. Os dois, rodeados por pessoas que os cumprimentavam, entontecidos, não entendiam o porquê daqueles presentes e de toda aquela atenção. Isabel, percebendo o quanto as pessoas encabulavam os tios, abriu caminho até eles com a “sua” lembrança nas mãos e, entregando-a, foi dizendo: - Para os meus queridos tios, esperando que nunca se esqueçam de nós.
Pedro e Antônio, abriram com relutância o pequeno pacote e ficaram surpresos quando surgiu um retrato da sobrinha e seus pais, enquadrado numa linda moldura. Chorando, os dois homenzarrões abraçaram a família, com grande emoção.
-Que ideia foi esta de nos fazer tamanha surpresa? Perguntava Antônio com os olhos marejados, abraçando-a muito apertado em meio a meias, pijamas, ceroulas, camisas, lavandas e vinhos das mais variadas espécies e safras, que haviam ganhado.
Pedro, rubro de vergonha, perguntava: - Que grande ideia teve a menina de nos presentear com o retrato da família, não é?
-Realmente, Pedro, respondeu Antônio, abraçando-a, emocionado. - Nada que ela pudesse nos dar dar-nos-ia tanto prazer quanto este singelo retrato com as pessoas que mais amamos. E para os familiares, com a voz embargada: Assim, vós estareis conosco em todos os momentos de nossa viagem. Isabel, feliz, e vendo a felicidade dos tios, sentia-se ainda mais emocionada em ser tão efusivamente abraçada por Antônio, sob o olhar carinhoso e complacente de Pedro.
-Ora, vede que família linda e unida tem aqui, exclamou alguém na sala de estar, comovida com a cena que presenciava.
Pedro, surpreso, atrapalhava-se ao abrir os presentes acumulados a sua volta.
-Vamos, tio Pedro, estou curiosa para ver o restante de seus presentes, dizia Isabel, cochichando ao ouvido do tio que ainda a mantinha abraçada.
Todos reunidos à volta de Pedro faziam coro: - Abra, abra... e mais e mais encabulado, Pedro abria-os, surpreendendo-se a cada um deles. - Ora, pois, que linda camisa!..., exclamava
-Veste, veste, gritavam todos, a fim de arreliá-lo ainda mais.
De repente, o vozerio de Ana em meio aquele rebuliço foi ouvido por Isabel: - Vamos, acabai com estas brincadeiras, pois o pobre homem está muito envergonhado, uma vez que nunca foi do seu feitio estar assim tão exposto. Deixai, pois, o homem em paz e voltai a divertir-vos com outras coisas nesta alegre reunião.
Ana, com o intuito de parar com as brincadeiras com o pobre patrão, tentava passar com uma bandeja repleta de quitutes, entre as pessoas que o cercavam, conseguindo assim dispersar os jovens inconvenientes. Para Isabel, a festa transcorria bem e só era toldada pelas cismas em que as pessoas a deixavam, quando murmuravam à sua passagem: -Ela agora está crescida!... Sorte de Maria, que terá o auxílio dela quando chegar a criança.
Sem ligar aos comentários, Isabel aproveitava a festa proseando sorridente com todos, porém, como sempre, dispensando maior atenção ao tio Antônio. Este, feliz com todo aquele carinho, não cansava de fazê-la rir com suas folganças, causando assim certa estranheza aos convidados. Pedro, sempre por perto, entrava nas brincadeiras mais para dissimular a atenção que os dois chamavam para si, com o coração um pouco apertado pelo ciúme.
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Ana, que passava de lá para cá, servindo iguarias, não aprovava o comportamento dos dois e aproximando-se, disse baixinho: - Vede lá se vós vos comportais com essas brincadeiras, pois que estão deixando todos meio constrangidos, ora, pois. Entreolhando-se enquanto comiam o delicioso bolinho de bacalhau, sem entenderem bem o que lhes dizia Ana, resolveram separar-se.
Pedro, que tudo presenciara, percebendo o intento da jovem em afastar-se, tomando-lhe a mão pediu:
-Vamos até lá fora onde brincam de cabra-cega Rosita e todas as crianças. Vem comigo, pequena, vem...
Atendendo-o, Isabel saiu, não sem antes olhar para Antônio que, com sinais imperceptíveis, pedia-lhe que acompanhasse Pedro.
Lá fora, adultos e crianças, brincavam com muita alegria, correndo de um lado para outro, tentando esquivar-se de Fernandinho, filho de D. Antônia, amiga de sua mãe. Isabel entrou na brincadeira, esquecendo o incidente de ainda há pouco. Quando todos, cansados de correr, sugeriram brincar de roda, Isabel voltou à sala para averiguar se tudo estava correndo bem. Andando de um lado a outro, e dando atenção a todos, ela era a felicidade em pessoa.
Todos admiravam sua graciosidade e comentavam com os anfitriões que, orgulhosos, diziam: - Pois ficais sabendo que esta reunião foi toda organizada por ela, desde a decoração, até o cardápio e o serviço.
-Vossa filha está, pois, de parabéns, pela capacidade e bom gosto, comentava Mercedes, que aproveitando o momento, insinuou: - Faríamos muito gosto que nossas famílias convivessem mais miudamente para assim, nossos filhos terem a oportunidade de se conhecerem melhor. Hermínio, nosso filho mais velho é um excelente rapaz e está cursando a faculdade de direito em Coimbra. Seria ótimo se eles...
José, olhando para a esposa com um sorriso cúmplice, desculpando-se, afastou-se, levando-a consigo pela sala a conversarem com os outros convidados. Porém, quando num repente se encontraram a sós, Maria, com olhos insinuantes tocou-lhe o braço: - Pois não é que ótimos partidos estão presentes hoje, em nossa festa? João, filho dos Alcântara, Hermínio, Felipinho, que não perdem uma oportunidade de estar com nossa filha, como todos os outros rapazes presentes. Considero esta uma excelente ocasião, José, vou dar uma palavrinha com nossa filha sobre isto.
-Não o façais, Maria, pois que ela ainda é uma criança para ficar comprometida com alguém, pediu-lhe o marido, relutante.
-Ora, vê quem faz este comentário, pois que, não foi em uma recepção assim que nossos pais firmaram nosso compromisso?
-Eram outros tempos, Maria... Aqueles eram outros tempos, mulher!
Rindo, Maria afastou-se do marido para ter com Guilhermina, que a chamava.
“-Este meu marido não aceita o fato de ver nossa filha comprometida, esta é a pura verdade. Espero, para o bem dela, que, com o tempo e a chegada de nosso filho, a coisa mude”. E, ao perceber Guilhermina com um olhar intrigado, foi ao encontro da amiga, pensando: “-Com certeza, ela vai comentar sobre o seu filho Guilherme.”.
A festa corria tranquila, todos comiam e bebiam à vontade e os elogios a Isabel eram constantes. Antônio, rodeado de jovens moçoilas, que, a rirem por nada, disputavam maiores atenções daquele belo rapagão, enquanto Isabel, furiosa, não sabendo bem o porquê, pegou uma bandeja de sucos, aproximou-se do grupo e exclamou com voz sarcástica: - Ora, pois, que vos trago aqui um suco para poder fazer parte do grupo e rir-me das piadas que correm por aqui, haja vista as gargalhadas que se ouvem por toda a sala.
Pegas de surpresa, as moças, ruborizadas, quase em uníssono responderam: - Em boa hora traze-nos este suco, Isabel e, se rimos em exagero como dizes, com certeza, não seria das piadas, mas pela graciosidade de teu tio em seus galanteios.
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Isabel, de uma maneira coquete e com um olhar fulminante para o tio, retrucou: - Realmente, meu tio é muito famoso pelos galanteios. Haja vista a quantidade de cartas e presentes que ele recebe quase que diariamente. Eu me atreveria a dizer que ele não só é um grande galanteador como também um mestre em saber levar as moçoilas casadoiras, pois que nunca se decide por nenhuma.
Chocadas, as pobres meninas, sem graça e procurando levar na brincadeira o comentário da aniversariante, de pouco em pouco, foram se afastando com as desculpas mais variadas. Antônio, surpreso com a atitude inesperada da sobrinha, murmurou: - Tu és uma pequena muito complexa. Pois, dize-me cá uma coisa, que não consegui entender até agora. E a que veio toda esta encenação junto às raparigas, hein?
-Ora, pois, meu tio, hoje é o dia do meu aniversário e as atenções devem ser dirigidas a mim. Vendo-te desmanchar-se em gentilezas por estes rabos de saia, não sei o que me deu, senti que precisava fazer alguma coisa e, com muita urgência, antes que o senhor acabasse comprometido com uma delas.
Antônio, tentando alcançá-la para dar-lhe um belo safanão, viu-se correndo pela sala até alcançá-la no portal da entrada e, esbaforido pelo esforço, balbuciou: - Peguei-te... E agora, me explica direitinho, o que quiseste dizer com aquela enxurrada de palavras, Isabel?
Tentando escapulir, a menina acabou entre seus braços, presa num abraço apertado, sem poder locomover-se.
-Rham, rham..., pigarreava Ana, para chamar-lhes a atenção antes de aproximar-se e, com o permanente sorriso nos lábios, dizer entre dentes: - Vamos lá os dois, vede se conseguis comportar-vos pelo menos na frente dos convidados. E vede se bebeis alguma coisa para esfriar esses ânimos exaltados. E, sarcástica, continuou: - Minha patroinha está aprovando o nosso trabalho, ou está tão preocupada com outras coisas, que de nada serviram todas as recomendações?
Separando-se com pesar daquele abraço, Isabel retrucou no mesmo tom de voz, para completar a provocação: - Muito pelo contrário, Ana, eu estou acompanhando tudo de perto e comprovo o que sempre soube, minha cara senhora: que eu podia contar, com a tua competência em administrar uma recepção e, fica certa, que é por isto que tenho estado tão tranquila.
-Ora, ora, que nada me apraz essa tua tranquilidade, menina. Vamos, pois, evitar estar perto um do outro para impedir vexames na frente dos amigos.
-O que está querendo dizer essa velha rabugenta, tio Antônio? Ou a intenção dela é apenas estragar a nossa festa?
Antônio, achando que fora merecida a censura, tocando-a nos ombros, comentou: - Pois que ela tem razões para o comentário, minha menina, em uma próxima oportunidade eu te explico; disse o tio, empurrando-a e desejando-lhe uma boa festa.
Isabel, não entendendo o porquê de tudo aquilo, num bater de ombros resolveu deixar de lado o assunto e aproveitar a reunião. Percebendo que a bebida não estava sendo servida, dirigiu-se até a cozinha para falar com Celeste. Ana, que lá estava tirando do forno os biscoitos de polvilho, retrucou, ao vê-la entrar:
-Ora, ora, pois que se a pequena não está pelos cantos a engalfinhar-se com o tio, está por aqui, para azucrinar-me a cabeça, ó menina de Deus!
-Para com isso, Ana, pois que não estou aqui para arreliar-te, mas, sim, para ajudar Celeste com as bebidas, ora, pois...
-Anda já daqui, menina, porque tua presença poderá prejudicar o andamento das coisas em vez de ajudar em algo.
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Vendo-se enxotada, Isabel resolveu voltar e ajudar a mãe e a avó a fazerem sala aos convidados, enquanto acompanhava seu tio Antônio com um olhar cismado, pois que, para ela, o único senão da festa, estava sendo o assédio das moçoilas casadoiras aos tios. Antônio parecia apreciar aquelas longas prosas, o que deixava Isabel profundamente irritada. Pedro, porém, ficava todo ruborizado com o assédio. A faceirice das raparigas parecia deixá-lo transtornado e, por várias vezes, sentindo no olhar do tio um pedido de socorro, lá corria ela a salvá-lo, convidando, com seu trejeito especial, que as donzelas a acompanhassem até o jardim para apreciar a bela paisagem que veriam ali.
Algumas, para fazer um agrado ao tio, a acompanhavam, aproveitando o momento para assolá-la com perguntas, o que a deixava simplesmente enfurecida.
-Pedro é um encanto de pessoa, mas é tão tímido, murmurava Maria Emília, uma forte candidata dele.
-Será que ele é tímido por natureza ou existe alguém com quem já esteja comprometido? Perguntava, a moça, de modo direto.
Ao que Isabel, irritada, respondia de modo grosseiro: - Ora, pois, não estavas neste minuto com ele? Por que não o inquiriste sobre tuas dúvidas? Ora, pois...
Fernanda, toda faceira segurando a saia do longo e belíssimo vestido, abrindo-a em leque num vai e vem, fazendo aparecer as maravilhosas rendas de seus saiotes farfalhantes, afirmou, com risinho afetado: -Pois eu prefiro Antônio, elegante, fino, galanteador e nada tímido, isso eu posso garantir.
Isabel, mesmo não sabendo o porquê, nunca gostara daquela filha de D. Guilhermina. Achava-a muito saliente e, depois desse comentário, passara a detestá-la.
A bela paisagem com a arrebentação das águas junto às rochas, tendo como fundo o céu azul límpido, maravilhoso, que naquele dia parecia especial de tão belo, para ela era como se Deus a estivesse presenteando com aquele lindo entardecer.
Voltando de seu rápido devaneio e percebendo que de nada valia o passeio, pois toda aquela beleza nada significava para as coquetes moçoilas, Isabel resolveu voltar, começando a subir a caminho de casa, enquanto dizia: - Fiquem à vontade neste passeio, que preciso voltar, pois Celeste deve estar à minha procura.
Subia furiosa e apressada, levantando a saia sem nenhuma compostura, enquanto resmungava: ”-Haja paciência para aguentar tamanha chatice e afetação! Será que todas as moças são assim tão fracas, afetadas, chatas, enfadonhas e sem personalidade, uma vez que parecem precisar de um pombo correio para conquistar os homens que almejam? Pois que me ouçam os anjos: Quando chegar a minha vez, lutarei com minhas próprias armas para conquistar o homem que quiser, sem precisar do auxílio de ninguém. E que ninguém tente se interpor em meu caminho. Ninguém!”
Quim, que descia a encosta, ouvindo em parte o que dizia a pequena, chamando-a, perguntou: - Patroinha, o que pode ter acontecido para deixá-la assim tão exaltada?
Sem parar em seu trajeto e parecendo ainda mais irritada, ela retrucou: - Agora não, Quim... Por favor, agora não... Depois conversamos, meu amigo, pois que, se ficar por aqui mais um segundo, sou capaz de cometer uma loucura! Podes crer!
Olhando-o de soslaio, continuou muito envolvida em suas novas convicções. Quim observou-a meio penalizado com o pouco que conseguiu entender, do muito que fora dito e, tirando suas conclusões, murmurou, com o semblante entristecido: “- Pois não lhe disseram ainda, criança, que a vida nunca é como pensamos ou gostaríamos que fosse? Existe algo chamado Destino, minha pequena... Destino...”
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Isabel, já em casa, balançou vigorosamente a cabeça a fim de espantar os pensamentos desconcertantes que lhe acorriam e, com um profundo suspiro, colocou-se em postura ereta e formal como exigia a ocasião. Abrindo um sorriso afetado e puramente social, começou a vagar pelas salas, dirigindo-se ao jardim. Já no alpendre, vendo que adultos e crianças brincavam novamente de cabra-cega, resolveu entrar naqueles folguedos para reencontrar a segurança que naquele dia parecia-lhe muito instável.
Percebendo estarem por ali as jovens Mariana e Alice, filhas dos Figueiredo que residiam em Funchal, ambas vestidas com as roupas de missa de domingo, com sorriso resignado e jeitinho matreiro, convidou:
-O que achais de entrarmos na brincadeira? Até que poderia ser divertido, não?
Chocadas com tão descabido convite, empinando seus narizes com desdém, responderam indignadas: - Imaginem se eu, com este vestido, poderia propor-me a tal coisa, disse Mariana.
-Isto é coisa de criança, completou Alice, com o endosso de Fernanda, também da Capital, e que se aproximava das amigas.
-Ora, onde já se viu? Pois, sinta-te à vontade, Isabel, para entrares neste folguedo. Iremos atrás de algo refrescante para beber.
-Como quiserdes, meninas e, por favor, senti-vos como em vossa própria casa, respondeu Isabel, tirando o mimoso chapeuzinho e levantando os fartos cabelos prendeu-os no alto da cabeça.
Vendo-se por fim livre das três esnobes, chamou por Rosita e, pediu-lhe para participar da brincadeira. Todos, felizes com a entrada da aniversariante, resolveram brincar de esconde-esconde. Sueli, filha caçula de D. Lurdes, ficou no canto do alpendre a contar. Isabel olhava de um lado a outro, procurando algum lugar onde se esconder. Preocupada, vendo findar a contagem, sentiu-se repentinamente puxada para um enorme arbusto. Assustada, procurava ver quem a puxara de modo tão brusco e deparou-se com o tio Antônio que, fazendo-lhe sinal para manter-se calada, puxava-a mais para si, para, com a mão, recolher o amplo vestido da menina cuja saia aparecia rente ao chão, por baixo do cipreste.
Apertando-se ao tio com o intuito de se esconder, olhando-o sob a pouca luz daquele final de tarde. Exclamou: - Ah!... Que agora entendo o que faziam no alpendre as jovens casadoiras da Capital! Não sabia que estavas a brincar por aqui, meu tio, pensei que estivesses a beber com os homens na sala onde se encontram todos a degustar os nossos vinhos, ou ainda, às voltas com essas bonecas empalhadas que borboleteiam por ai, atrás de um belo gajo.
-Psiu! Fazia-lhe em sinal de silêncio Antônio que, rindo ao ouvir o que a menina dizia, sussurrou: - Pois a única forma de me ver livre de tanto assédio foi a razão de me fazer entrar nestas folganças, pequena.
Rindo aliviada do que lhe dizia o tio, tentando arreliá-lo, comentou com displicência: - Pois eu diria que, nesta nossa festa, encontram-se algumas donzelas até que muito interessantes, meu tio.
-Olha, pois, quem me diz tal coisa! Justamente quem me importunou o dia todo, quando feliz, entretinha-me com alguém interessante, respondeu Antônio, tapando-lhe a boca para fazê-la calar-se, enquanto murmurava-lhe ao ouvido, divertido com aquela zanga: - Deixa dessa prosa, pequena, se não a Sueli vai nos encontrar aqui com facilidade.
Por ela, o tio que ficasse sossegado, porque não sairia daquele lugar tão cedo. Estar com ele assim tão próximo dava-lhe uma sensação gostosa de tranquilidade e segurança, ainda mais, após presenciar as grandes investidas que sofrera das ditas raparigas.
Sueli, que achara quase todos com seus gritinhos de alegria, agora procurava Isabel e Antônio por todos os lados.
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Antônio, vendo que não poderia prorrogar seu esconderijo, participou: - Eu vou sair por trás, enquanto tu aguardas que ela te ache aqui, pois que, se formos encontrados juntos, aí é que todos vão ter muito do que falar, pequena!... E dizendo isto, quase rastejando pelo chão, Antônio saiu sorrateiramente, escondendo-se atrás de um banco do jardim.
Ao ver que Sueli cansava-se de procurá-la, pôs uma ponta da saia sob o arbusto e ficou a esperar o que logo veio a acontecer. - Achei, achei Isabel, dizia com alegria Sueli, já em busca de Antônio, que estava difícil de encontrar.
Assim, continuaram em brincadeiras até que foram chamados para comerem o bolo. Isabel, feliz como nunca estivera, de um sopro apagou as dez velinhas, sendo aplaudida por todos que lhe cantavam novamente “Parabéns”. Depois de comerem o bolo, aos poucos, todos foram se retirando, agradecidos pelo convite e parabenizando-a pelo aniversário e pela bela festa. A casa, de hora para outra, ficou em silêncio e numa desordem geral.
Tentando escapulir da faxina que já acontecia, Isabel, pé ante pé, dirigia-se para o quarto quando foi interrompida pela mãe que, com firmeza, lhe disse: - Não tentes safar-te de tuas obrigações, minha filha, pois que, se demonstraste tanta competência ao preparar esta reunião, serás capaz de concluir o trabalho pondo ordem nessa balbúrdia.
-Mas, mamãe! Temos Ana, Celeste, João e Quim, para cuidar de tudo isso.
-Sabemos disso, menina, porém a tua ajuda será de grande valia para todos que, como tu, se encontram também muito cansados.
-Deixa de lado esse semblante surpreso e, se é fato que te fartaste de me acompanhar nas recepções que organizei, sabes que jamais me recolhi sem antes acompanhar toda a limpeza e guardar a louça da família que foi usada. Portanto, mãos à obra, menina, que tens muito que fazer, concluiu Maria.
Olhando para a avó como a lhe pedir socorro, começou: - Vovó, mamãe não fala sério, pois não?
-Eu não diria isso, Isabel, pois acho-a carregada de razão, uma vez que a organização de qualquer evento implica em começo, meio e fim. Tenho certeza de que a finalização será tão bem sucedida quanto a maravilhosa reunião que tão bravamente empenhaste-te em realizar, pequena, concluiu Emília, afastando-se.
Aturdida porque jamais esperara aquela reação da avó, girou sobre si mesma em meio a copos e pratos solitários espalhados sobre móveis, parapeitos das janelas e pelo chão entre os papéis jogados por todos os lados. Voltando-se para Ana, sem ideia de por onde começar, murmurou: - Ana...
-Vamos lá, pequena, trata, pois de ir recolhendo toda a louça, trazendo-a para a cozinha, pois que, pelos giros como se dançasse que começas a dar pela sala, se assim continuares, não teremos hora para pôr um fim a toda esta confusão, ó menina...
Celeste, condoída, estendeu-lhe uma travessa e, com um sorriso, sugeriu: - Pega-a, Isabel, e vá depositando nela os pratos e copos.
-Celeste..., murmurava ainda a menina, com a bandeja perdida nas mãos.
-Anda lá, pequena, e verás que vai ser divertida esta situação.
-Divertida!?... Só mesmo uma pessoa simplória como tu poderia dizer-me tal coisa, Celeste. E Ana, ouvindo o comentário, retrucou, em uma reverência: - Pois, anda lá logo com isso, nossa “Pequena Alteza”, que ainda tens que vasculhar o alpendre e o jardim, atrás de toda a louça que se encontra espalhada por ali.
Sem nada responder àquele comentário debochado, Isabel pôs-se a juntar a louça e a limpar toda a casa, logo percebendo que era divertida aquela atividade, porque riam muito, a cada dito de Celeste sobre os convidados.
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Todos, muito cansados, terminaram por fim a limpeza. Surpresa, ao perceber que se sentia satisfeita ao ver a casa em ordem e as louças da mãe nos devidos lugares, Isabel emocionou a todos quando, antes de retirar-se, agradeceu o apoio que tinha recebido para que a festa fosse bem sucedida. Encontrando-se finalmente no quarto, pôde, com toda a calma, apreciar tudo o que havia ganhado de presente, e também se lembrar de tudo que havia vivenciado naquele extasiante dia de seu aniversário. Sentindo-se cansada, deitou-se, caindo de imediato num sono profundo.
A noite já ia bem alta, quando acordou e, sentando-se na cama de um salto, lembrou: “- Duas semanas!... Em duas semanas meus tios partirão. Ah! meu Deus, o tão temido dia está para chegar!”.
Chorando ao constatar tão triste verdade, mal conseguiu dormir o final de noite. Na manhã seguinte, levantou-se a muito custo e, ao perceber o adiantado da hora, rapidamente concluiu a toalete. Pensava chegar à sala para tomar seu desjejum na esperança de encontrar os tios ainda à mesa quando, saindo do quarto, foi abordada por Pluf que, latindo feliz, saltava a sua volta. Tomando-o no colo e a correr, continuou, dizendo:
-Pluf, meu pequeno Pluf, perdoa-me por ontem ter-te deixado trancado na casa de João e Ana, pois que, se eu não o fizesse, imagino o estrago que fariam teus dentinhos pontiagudos nas maravilhosas rendas de adornos dos saiotes, sempre farfalhantes de várias donzelas que aqui estiveram em minha festa.
-Ora, ora, disse Maria, descansando o trabalho no colo ainda mais curto pelo ventre avantajado, ao ver a filha esbaforida, irrompendo sala adentro com os olhos inchados e Pluf nos braços.
-Mamãe, onde estão todos?
-Pois que não tens noção das horas, pequena? Perguntou a avó, que tricotava em companhia de Maria.
-Ora, vovó, se as horas estão me importando agora! Gostaria é de saber onde estão meus tios.
-Isabel, isto são modos de falar com tua avó?
-Ah!... Mamãe, vos não percebestes que temos só duas semanas para eles partirem?
-De nada vai adiantar este nervosismo, pois sabes muito bem que esta viagem é uma realidade e que nada poderá interferir agora. Deixa, pois, disso e vá até a cozinha para comer alguma coisa, que logo estará saindo o almoço, minha filha.
“-Ninguém me entende nesta casa, ninguém..., resmungou a caminho da cozinha.”
-Mamãe, nós vamos ter um período difícil com a partida dos irmãos, afirmou Maria.
-Concordo, serão tempos difíceis que teremos pela frente, mas tudo vai passar, minha filha. E tu não deves acrescentar mais preocupações às que já tens, Maria, pois bem sabes que, com o tempo, tudo se ajeita.
Olhando para a mãe, Maria, num sorriso confiante, murmurou: - O que seria de mim sem a senhora nesta casa, mamãe? Como sou agradecida a José por proporcionar-me vossa companhia aqui na Quinta.
Enquanto falavam, ouvia-se, na cozinha, a discussão de Ana com a menina: - Pois, safa-te já daqui, pequena, que não vou assar broa nenhuma para teu café tão tardio, tomes lá teu copo de leite, que já está muito bom, menina preguiçosa.
Emília não conseguiu segurar um sorriso ao constatar o confronto verbal que ouvia, e, virando-se para a filha, comentou: - Essas duas, longe estão de se darem bem, Maria... De duas uma: ou nossa menina é voluntariosa demais, ou este antagonismo é recíproco.
Maria, ouvindo isso, com tristeza respondeu: - Acho mais viável a primeira hipótese, mamãe..., a primeira, pois o que é certo, e não cabe a mim esconder: gênio forte é o que não falta em minha filha.
-Sou, infelizmente, obrigada a concordar contigo.
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-Voluntariosa..., geniosa..., e mais algumas outras qualificações nada positivas formam a personalidade de minha Isabel, mamãe. Juro que não sei a quem ela puxou!
-Ora, pois, não fiques assim, uma vez que a forte personalidade da menina é amainada com uma doce meiguice, astúcia e graciosidade imensa, minha filha.
-Pois são exatamente essas qualidades que me preocupam sobremaneira.
Naquele dia, o almoço transcorreu num clima incomum, porque o assunto durante a refeição foi a grande festa de Isabel.
-Mamãe, foi uma pena que a Fátima não pudesse vir para meu aniversário, não é?
-Realmente, Isabel, nossos compadres de Sintra e a pequena Fátima, não compareceram. Além da distancia, algum motivo muito sério impediu-os de virem. Até pedi a Ana que deixasse preparado os quartos para hospedá-los! Mas tenho certeza de que, quando menos esperarmos, eles aparecerão por aqui e tu e a pequena Fátima tereis, muito que conversar, minha filha.
-Vai ser muito bom falar de minha festa e mostrar a ela todos os presentes que ganhei.
-Pois, eu... Eu não sei o que fazer com tudo que ganhei, dizia Pedro, encabulado.
-Ora, pois, meu tio, leva-os em tua bagagem, para barganhar por vossas vidas com os selvagens, replicou Isabel, agora, irritada.
-Mas, menina, a linda camisa que lhe fez Guilhermina ficaria ridícula vestindo os pele-vermelhas, retrucou a mãe, sem atinar com o que dizia.
Todos riram, mas em seguida o silêncio caiu de forma pungente porque lembraram os riscos que os irmãos estariam correndo naquela louca aventura.
-Vós tereis mesmo que barganhar com os índios, meus tios? Perguntava Isabel, com o semblante apavorado.
-Só se nos fizerem prisioneiros para algum lauto jantar, minha pequena, respondeu-lhe Antônio, tentando desanuviar, sem sucesso, o clima de apreensão.
-Por Deus, senhor, isto poderá vos acontecer? Perguntava Ana, muito aflita.
-Quem sabe, minha velha!... Quem sabe?...
-Tio Antônio, deixa de nos assustar, pois não li nas cartas de nossos conterrâneos nada parecido ao que falas.
Terminada a refeição, Isabel voltando-se aos pais, declarou: - Pois, de agora em diante, não vou ficar um minuto sequer longe de meus tios, vou acompanhá-los em tudo o que fizerem. E, chorando, pegou o inseparável chapeuzinho, correndo ao encalço dos tios que já saíam para o alpendre.
-Para mim, será muito bom termos tua companhia, minha querida, disse Antônio, pegando-a logo pela mão, no que foi seguido por Pedro, pondo-se os três a caminharem até as vindimas sob a prosa feita da menina.
Desse dia em diante, aconteceu de malas irem de cá para lá, roupas que iam e vinham, e Isabel era quem mais sofria com todo aquele vai e vem dos preparativos.
Menina mimada que fora, vivia a chorar, pois percebeu que ficaria sem os tios, por quem tinha muita afeição e por mais que fizessem, não havia palavras que a consolassem.
Antônio se sentiu emocionado com tão grande carinho e, com lágrimas nos olhos negros e profundos, prometia vir visitá-la muito em breve, trazendo-lhe lindos presentes. Os avós tentavam a seu modo consolá-la, mas, qual o quê, nada que não fosse o colo e os mimos daquele tio querido fazia-lhe parar as lágrimas.
Pedro sentia-se totalmente enciumado diante de tanta afeição e ficava cismando pelos cantos da casa, bastante entristecido. “- Ora, pois, que eu sempre tive adoração por esta menina e, para ela, eu pouco importo, pois que só agora percebo o carinho especial que tem por Antônio. Ora, pois, vamos nós, homens, querer entender as mulheres que, desde pequenas são imprevisíveis.”
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Maria e José, preocupados com a filha, esperavam com ansiedade o dia da partida dos irmãos para que, sem a presença deles e aos poucos, conseguissem acalmar Isabel. Joaquim, avô amoroso, diante de tamanho sofrimento, certo dia, propôs: - Seria bom que tu, José, te comprometesses com a menina de levá-la até o Brasil para visitar os tios, não achas?
Olhando com receio para Maria que, ao lado da mãe, mostrava-se tensa, respondeu: - Na medida do possível, é o que pretendo fazer, meu sogro.
-Verdade, papai? Algum dia poderá levar-me como dizes, ao encontro de meus tios?
- Minha filha, um dia, quem sabe... Talvez!...
-Prometei-me, papai.
Olhando novamente para Maria, esperando sua compreensão de que fazia tal promessa para acalmar a filha, angustiado, mas esperançoso, respondeu: - Prometo, pequena, eu prometo.
Somente após essa promessa Isabel conseguiu acalmar-se um pouco, ficando-lhe, porém, nos olhos, a profunda tristeza.
Joaquim, condoído com o sofrimento da neta, de forma tranquila, disse:
-Minha pequena, vovô precisa ir até Lisboa ver uns negócios pendentes e gostaria muito de ter a tua companhia na viagem.
Isabel, encantada com a possibilidade de voltar a Lisboa e também com a grande possibilidade de ir ao Brasil em visita aos tios, sentia-se feliz, porque era mais do que ela almejara.
-Que bom, vovô, eu vou viajar com o senhor, disse a menina, quando num repente parou, entristecendo o avô, que perguntou: - O que acontece agora nessa tua cabecinha para toldar-te assim o semblante?
-É uma pena, vovô, mas mamãe não vai deixar-me acompanhá-lo nesta viagem.
-Ë isto então o que te preocupa? Deixa o assunto comigo, pequena. Deixa comigo!
Isabel, feliz e confiante no avô, ia ao encontro de Quim para contar-lhe as boas novas, quando saindo para o alpendre, em sua correria, deu de encontro com Antônio que entrava, a fim de trocar ideias sobre a nova colheita com José.
Segurando a menina para que não caísse, Antônio não conseguia entender o que ela lhe dizia aos turbilhões. Pondo-a no chão, com calma, lhe pediu: - Para... Para e começa a me contar de novo, para que eu possa entender-te.
Sentando-se em uma das cadeiras do alpendre, Antônio esperava para ouvir as novidades que deveriam ser muito boas, haja vista o estado de excitação da menina.
Isabel, pulando em seu colo, contou-lhe sobre a promessa do pai de levá-la ao Brasil, e a viagem a Lisboa com o avô.
-Logo, tio, logo nos iremos ao vosso encontro, não é maravilhoso?
Antônio, sentindo-se feliz com tudo o que ouvia, abraçava-a, e, preocupado com as sensações que lhe acorriam pelo corpo ao sentir o roçar leve do corpo da menina de encontro ao seu, ele mal conseguia ouvir o que lhe era dito, pois que, perturbado como estava, os ouvidos começavam a zumbir e a cabeça a rodar em vertigens. Assustado e tentando refazer-se, começou a arreliá-la na tentativa de recuperar-se, enquanto dizia: - Pois fica certa, minha menina, que prepararei uma tribo de índios inteira, para receber-te quando lá chegares.
Furiosa com o que dizia o tio pôs-se a lhe dar socos no peito e, com palavras entrecortadas pelo esforço, murmurava: - Não acredito que quando eu chegar ao Brasil tenhas coragem de fazer tal coisa comigo. Imagina, meu tio, um só índio matar-me-ia de susto, quanto mais uma tribo inteira. Pois saibas que tenho ganas de matar-te só por me dizeres uma coisa dessas.
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Antônio, tentando imobilizá-la para que deixasse de lhe bater, apertava-a contra si e percebia, assombrado, o quanto apreciava a sensação de tê-la assim, tão próxima. Isabel, em sua fúria, tentava puxar-lhe as orelhas, beliscar lhe os braços, lhe arranhar o rosto, mordê-lo onde fosse, na tentativa de evitar que o tio a imobilizasse. Todos viam aquela brincadeira como que uma despedida. Ana, porém, conseguia ver muito mais do que aparentava e, preocupada, sem conseguir conter-se, olhando para a patroa como a desculpar-se pela intromissão, desabafou: - Isabel, precisas entender que não és mais nenhuma menina para andar assim tão apegada a teu tio. Não vês, pois, que deixas a nós todos muito encabulados com essas brincadeiras? Precisas tomar jeito, ó menina. Ora, pois.... E, não satisfeita, ainda continuou: - Uma mocinha tem que se prezar mais e ter muita compostura quando se encontrar em face de algum rapaz. Quando a menina está junto do tio, vejo-te sempre sentada em seu colo, em seus ombros, com brincadeiras de mãos e outras posturas, que nem vale aqui mencionar, completou Ana, saindo da sala levando o serviço do café da tarde.
Antônio, percebendo que tinha um fundo de razão o que ouvira de Ana, e o pior, com aquela reprimenda, tomou conhecimento do quanto encabulava seus familiares com aquelas brincadeiras, pondo-a no chão, a meia voz, murmurou em seu ouvido: - Precisamos ter uma conversa séria, minha pequena. Espero-a no portal da Quinta para falarmos. E, sem mais dizer, saiu para o jardim, deixando todos muito cismados.
Isabel percebeu que o pai e Pedro, não deram maior importância ao ocorrido e entraram no escritório, falando sobre documentos para emigrar.
Maria, não disposta àquele confronto, tomou um livro e pôs-se a folheá-lo sem dar tempo para que a filha fizesse algum comentário. Isabel o que mais queria era ir ter com o tio e vendo com surpresa que não haveria reprimendas, saiu em disparada porta afora, deixando a impressão de que saía assim por estar muito magoada com o que Ana dissera.
Antônio, já no portal, andava de um lado a outro com o semblante preocupado. Procurava em meio a seus pensamentos uma maneira de falar com a menina, sem toldar-lhe a infância ou despertar-lhe a libido. “ -Ora, pois, o que continham aquelas palavras proferidas pela ignorante Ana, para deixar-me assim tão alterado e conscientizar-me de algo, que jamais me passara pela cabeça?” Acompanhando com o olhar a chegada da pequena que não fazia ideia de quanto o perturbava, sentindo o coração em disparada ficou a contemplar com carinho a frágil figura, para levar na lembrança aquela imagem quando partisse.
“- Isabel, minha pequena, o que estás há fazer comigo? Isso tem de acabar, isso precisa acabar...” Pensava ainda Antônio, enquanto, surpreso, sentia o corpo dela que se atirava de encontro ao seu num abraço apertado.
Antônio, sem conseguir controlar-se, abraçava-a também, sabendo que aquela talvez fosse a ultima vez que poderia fazê-lo assim, inocentemente. - Isa..., Isa..., murmurava-lhe o tio no ouvido, abraçando-a muito apertado.
Isabel, surpresa por ele chamá-la de Isa, sem entender direito o que acontecia, deixava-se abraçar e aproveitava feliz aquele momento, desejando que durasse para sempre.
-Tio! Disse com voz embargada, enquanto, impulsivamente, beijava-o no pescoço.
Antônio, ao sentir a brandura daqueles lábios, apertou-a ainda mais naquele abraço, enquanto as mãos experientes percorriam-na pelas costas, acariciando-a. Num grande esforço, foi recuperando o autocontrole, afrouxando com pesar aquele abraço e, colocando-a no chão e, afastando-se, deu-lhe as costas para que ela não percebesse o quanto o deixava alterado. Isabel, ainda atordoada, ainda sem entender o que lhe acontecia, temendo que o tio se fosse, pegou-o pela mão, dizendo:
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-Tio... Alguma coisa está acontecendo e eu não consigo atinar o quê poderá ser. Sinto coisas estranhas, tenho arrepios injustificados, e meu corpo traz-me sensações que nunca conheci. Dize-me, pois, querido tio, o que poderá ser tudo isso? E cruzando os braços à frente do corpo ao passar-lhe um arrepio, continuou: - Acho que estou com frio... É, estou mesmo com muito frio, continuou a menina, cismando.
Antônio ouvia tudo muito enternecido e também profundamente angustiado. Triste, porque o que menos desejava na vida seria afligir aquela menina por quem, percebia agora, tinha um sentimento que longe estava de ser um carinho simples de tio para sobrinha. Com muita angústia, atropelando-se um pouco nas palavras, procurou, na medida do possível, tranquilizá-la. Chegou a uma grande pedra rochosa que mostrava erosão natural em alguns pontos, formando um contorno de bancos muito originais, os quais, pintados de branco, davam uma beleza peculiar àquele Portal. Sentando-se, chamou por ela: - Isa...
Isabel, vendo que o tio a chamava, foi ao seu encontro, procurando logo o seu colo para sentar. Antônio, sentindo que a menina novamente aconchegava-se, tentando evitar novo contato, procurou afastá-la se surpreendendo com seu olhar espantado.
-O que acontece, meu tio? Não quer...
Antônio, em desespero, sem conseguir se dominar, puxou-a para ele, aconchegando-a bem junto de si e, num abraço apertado, sentiu-a estremecer. Emocionado e profundamente preocupado, com voz ensurdecida, murmurou:
-Minha pequena... Minha Isa... É o frio, minha menina, é o frio...
Apertava-a em seus braços como a protegê-la do frio que dizia sentir, enquanto pensava: “- Esta será a última vez, a última vez que a terei assim tão junto de mim.” E apertava-a contra si, beijando-lhe com efusão os lindos cabelos negros.
A emoção entre eles crescia. Temeroso, e meio a contragosto, Antônio procurou afastá-la, evitando perder o controle.
-Senta-te aqui, minha menina, pediu Antônio, batendo com a mão no assento a seu lado e tentando com esforço parecer o mais natural possível.
-Vê, Isabel, sempre fomos muito chegados um ao outro, pequena, e agora, em vias de partir para o Ocidente, sinto-me entristecido por deixá-la aqui, pois penso que é do teu conhecimento que és para mim como se fosses minha filha, da mesma forma que tu me tens como um pai, concluiu Antônio, extenuado.
A pequena, olhando-o surpresa, revelava no olhar as inquietudes que lhe ocorriam na cabeça e no coração; e, com lágrimas descendo pelo rosto, retrucou:
-Pode ser que tenhas razão, meu tio, pois eu sinto muito a partida de meus tios, e o que mais desejo na vida é ir ter convosco no Brasil. Porém, continuou, ressentida, eu não sei o motivo do senhor dizer que te sou como uma filha. Ouvir-te afirmar tal coisa dá-me uma tristeza profunda e uma vontade muito forte de chorar.
Antônio, aturdido, passou-lhe o braço pelos ombros, trazendo-a para junto do peito. E acariciava-a no rosto, dizia: - Precisas entender que as pessoas podem levar a mal essa nossa postura, Isabel.
-Mas tio, sempre estive assim com o senhor.... Sempre procurei o teu colo, sempre pulei em teus ombros, sempre me sentei ao teu lado. Por que agora as pessoas me pedem que não me porte mais assim? Só por que já tenho dez anos? E que meninas nessa idade precisam ter mais decoro? Não quero mais crescer... Não quero mais crescer, se com isto não puder estar mais com o senhor, disse aos tropeções Isabel, num choro compulsivo.
Antônio, abraçando-a ainda mais, pedia-lhe: - Isabel, não chores. Vamos combinar o seguinte, pequena, quando estivermos longe das pessoas, faremos o que sempre fizemos, criança, e, quando estivermos na companhia de alguém, ficaremos distante um do outro para evitar comentários, certo?
Isabel, enxugando as lágrimas, abraçou-o pelo pescoço.
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-Como vou conseguir ficar sem o senhor quando partires?
Antônio, comovido, apertando-a..., apertando-a ainda mais contra si, confirmava, para seu completo desespero, o quanto gostava de tê-la assim tão perto.
-Eu vou, Isabel, e tu vais ficar aqui enquanto cresces mais um pouquinho, minha querida. Depois, quando nos encontrarmos novamente, se ainda te sentires assim, prometo que ficaremos juntos. Não importando o que eles digam ou pensem, minha pequena.
Isabel, levantando o rosto ainda recostado naquele peito, enxugou os olhos com a mão e, sem afastar-se dele, afirmou com veemência, sem ter ideia do que dizia, enquanto num forte abraço mais parecia querer fundir seu corpo ao dele:
-Eu vou querer, meu tio... Eu vou querer.
Antônio mal acreditava no que ouvia, porque aquilo lhe parecia um sonho, do qual ultimamente era sempre acometido.
Enquanto apertava a pequena nos braços, reconhecia, muito assustado: “- Meu Deus! Eu amo esta menina. Eu a amo como um homem ama uma mulher. Meu Deus, como pôde acontecer isto!... Eu a amo, eu a quero. Eu a quero como jamais quis alguém em toda a minha vida!” E, na tentativa de reagir à forte constatação do que lhe acontecia, rezava: “- Ajudai-me, Senhor!... Afastai esses pensamentos de minha cabeça, esse sentimento do meu coração e esse desejo que começa a me consumir.” E, procurando controlar-se, foi afastando-a de seu corpo e com muito pesar, percebeu que aquela pequena, tão menina ainda, conseguia despertar o que havia de pior em sua natureza.
-Isa..., Isa, temos que parar com isso antes que algo aconteça e passes a me odiar, criança.
Afastando-se dele, assustada, interpelou-o: - Odiá-lo?!... Como poderia, tio, como poderia eu odiá-lo?
- Com o tempo entenderás, minha menina. Com o tempo.
Beijando-a no rosto, na testa, um beijo que pedia outro e outro, com dificuldade tentava levantar-se a fim de pôr termo de vez, ao que ocorria. Num esforço supremo, afastando-a de seus braços, levantou-se e, pegando-a pela mão, caminharam juntos e em silêncio, perdidos como estavam nas próprias cismas e pensamentos até que, em determinado trecho do caminho, Antônio falou:
-Desse ponto em diante alguém poderá nos ver, Isabel. Daqui segues para casa, e eu vou descer até as vindimas, entendes? E, com o dorso da mão fez um carinho no rosto miúdo, e, afastando-se dela, ia em direção aos vinhedos quando ouviu: - Então, nunca mais estaremos juntos, meu tio?
Voltando-se lentamente, olhou-a e não contendo o desespero que lhe tomava o coração, afirmou:
-Enquanto eu aqui estiver, será impossível manter-me longe de ti, minha querida, porém, precisamos evitar certas situações, vamos, pois, sustentar o que combinamos. E, com um sorriso trêmulo, concluiu: - Certo, pequena?
-Vou tentar, meu tio...
-Eu também, Isa..., eu também.
Isabel, muito aturdida e sem entender a confusão de sentimentos que a invadiam, viu-o afastar-se. Ao dirigir-se para casa, percebeu que alguma coisa havia mudado com ela. Não conseguia entender bem o que seria, mas percebia, sentia isso....E, Deus, como sentia!... Uma tristeza tomava conta de seu semblante sem que ela percebesse e logo ao chegar, Ana, que passava pela sala, olhando-a com seu jeito perspicaz, procurou descobrir a resposta no olhar da sua menina e interpelou-a:
-O que aconteceu, Isabel! Dize-me o que andaste aprontando agora, pequena?
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-Nada, Ana... Nada aconteceu, ora, pois! O que poderia ter acontecido que tu já não soubesses? Respondeu Isabel a caminho do quarto, sem conseguir segurar as lágrimas, o que deixou Ana mais cismada.
Daquele dia em diante, Antônio a evitou de todos os modos possíveis. Não parava mais em casa, e quando Isabel o procurava diziam sempre que ele estava no continente, tratando da viagem. Quando em casa, estava sempre com Pedro, esquivando-se quando a menina tentava se aproximar.
Um dia, Isabel, ao olhar no espelho, descobriu ali o reflexo de uma menina pálida e de semblante muito entristecido. Não gostando nada do que via, percebeu que tinha um problema. Passando a mão pelo rosto pálido e mais miúdo do que lembrava, pensou: - Ora, ora, pois... Vejam como estou!... Pois não é que fui arrumar um problema que está toldando a felicidade de algo pelo qual eu tanto esperei? “Ora, ora, que isto não é justo.” E, falando alto, como a convencer-se a si própria, continuou: “- Que tio Antônio e suas esquisitices fiquem para lá, pois vou aproveitar os preparativos de minha viagem para Lisboa com vovô.”
E com a capacidade que somente uma criança consegue ter, pôs de lado aquilo que de repente pareceu-lhe um problema, e voltou à sua tagarelice, atazanando a todos, no que era interpelada: - Mas que bicho te mordeu, Isabel? Nos últimos dias andavas tão calada, cismando pelos cantos da casa, sem comer direito e sempre trancada no quarto e vejam, agora, voltas a apoquentar todo mundo com tua prosa desenfreada? Perguntou Ana, estranhando aquela modificação repentina da pequena.
Isabel pouco se importava com o que pensasse Ana, contanto que ela continuasse a fazer-lhe os quitutes preferidos.
Ana, porém, preocupava-se com o que teria acontecido com a sua menina e, lá no fundo, podia adivinhar o que seria. “- Ora, pois, se não serão coisas do coração. Meu Deus!... Imagina se contasse a alguém o que pressinto.” E balançando fortemente a cabeça, preocupada, murmurou: “- Ainda bem que está a chegar o dia dessa viagem para a Terra Nova! Ainda bem!...”.
Como que desperta para a vida, Isabel, entre um passeio e outro, entre a vinícola e a casa, ora ajudava na cozinha, como também, num repente, todos surpresos, viam-na lendo, bordando, fazendo companhia à mãe e à avó, o que causava estranheza a todos.
-Dizei-me, pois, mamãe, o que está a acontecer com esta pequena que vejo ajudando Celeste ou Ana em seus afazeres ou a percebo prestativa e aplicada?!
-É verdade, Maria. Tenho notado mutações em nossa menina; e o que mais estranho é não termos tido mais as discussões costumeiras, comentou Emília, preocupada com a neta, e, com os óculos, a lhe escorregarem para a ponta do nariz.
-Ora, mamãe, a senhora exagera um pouco. Isabel parece-me mais amadurecida, mas dizer que não temos mais as famosas discussões!... Mal acabara de formular esta frase, e eis que...
-Mamãe!... Era Isabel que entrava da cozinha, toda espaventada, de avental e o pano de pratos nas mãos, perguntando, afoita: - Pois, dizei-me, mamãe, no cozido eu não poderia pôr um pouco de carne suína para dar mais sabor ao caldo? Pois que teima Ana em dizer que não se usa mais carne suína aqui em casa!
Maria, olhando para a mãe, com um sorriso, explicou: - Bem, minha filha, isto é um fato, pois que cortamos a carne suína, uma vez que ela me provoca mal-estares terríveis.
-Mamãe, se é por isso, eu posso entender, mas, então, por que aquela velha rabugenta não me falou logo que o motivo era esse? Resmungou a menina, ao voltar para a cozinha batendo os pés em contestação ao ouvir Ana retrucar, vitoriosa:
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-Eu não disse que não era para pôr a costela defumada no cozido? Tira, pois toda esta carne da panela usando uma escumadeira, menina, e vê se cais fora daqui, uma vez que sempre dei conta de minhas tarefas sem a ajuda de ninguém, quanto mais a de uma pirralha mandona, como tu!
Na sala, as mulheres trocavam olhares quando Maria, com um sorriso e olhar matreiro, perguntou: - Era sobre isto que conversávamos mamãe?
Emília balançou a cabeça e colocando os óculos, retrucou: - É, filha, maturidade está longe de acontecer à nossa menina, nisso tens razão. E a discussão na cozinha continuava e era ouvida na sala.
-Sai já daqui, menina teimosa, pois não ouviste tua mãe dizer sobre a carne suína? Ora, pois, disse Ana, já meio desacorçoada.
Isabel, muito furiosa, contestava: - Pois será que, além de velha, estás ficando cega e não enxergas que estou a preparar dois tipos de cozidos, minha Ana?
Na sala, as mulheres ainda se entreolhando, sorriram.
-Esta casa ficará triste quando essas divergências domésticas começarem a acabar, minha filha, afirmava Emília, que, com certa nostalgia, continuou: - Lembra-te do quanto nos deixavas em polvorosa com tuas birras? Pois fica sabendo que tua filha, em questão de teimosia, tem a quem puxar, pois que é igual a ti.
E, divagando o olhar pela sala, perdido em velhas lembranças num sentido de profunda saudade, continuou: - Nossa casa tinha vida simplesmente com tua presença, Maria. Depois que te casaste passou a ser uma casa fria, sem vida e muito triste.
Emília, olhando para a filha que continuava o bordado, soltando um profundo suspiro de conformação, continuou: - Ainda bem que estás para ter este novo filho, pois, do contrário, logo saberias do que estou falando. Ainda bem que serão dois, minha filha. Um filho é mesmo muito pouco!
-Ora, mamãe, eu vos dou toda razão quanto a termos uma família maior, mas a respeito de teimosia: “Filho de peixe, peixinho é.” Não era isso o que a senhora dizia a papai, nas poucas vezes que discutiam?
-Pois, as razões daquelas discussões eram sempre a tua teimosia!
Rindo, voltaram ao trabalho, percebendo que o bate-boca nos bastidores da cozinha ia longe.
-Mas, Ana...
-Que, mas, que Ana, que coisa nenhuma, menina! Passa-te daqui já, pois que sou bem capaz de sair eu, e aí quero ver, tu resolveres este almoço, que longe está de ser apenas este cozido.
-Mas, Ana..., teimava Isabel.
-Que confusão é essa que minhas meninas estão aprontando, que lá da adega se pode ouvir? Perguntou João, que entrava.
-Ah! Ainda bem que chegaste, João, a cesta para os homens já está pronta e, por favor, leva também contigo a menina, que hoje se levantou da cama para me tirar do sério.
-Pois bem, minha Ana, eu vou. Hoje, está muito difícil de trabalhar contigo, mas quero comer deste cozido com carnes de porco, acompanhado do pão de toucinho.
-Ora, ora. Vejam como me sai mandona, esta pequena, murmurou Ana, seguindo o marido até a porta. Quando desciam a encosta em prosa feita, na sala logo se ouviu o resmungo de alívio de Ana voltando ao trabalho: “- Enfim, que paz, meu Deus!... Que paz!!!...”
As mulheres riam a mais não poder, só de imaginar o que a pobre Ana passara para se expressar de tal maneira.
- Isabel é terrível, mamãe.
-Concordo plenamente, minha filha. Ela é terrível!...
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E assim se passavam aqueles dias que antecediam à partida dos irmãos Gonçalves. Antônio sempre correndo para deixar os negócios em ordem; enquanto Pedro ajudava nos trabalhos da Quinta. Ambos procuravam não fazer qualquer comentário sobre a partida, porque percebiam a tristeza de seus familiares e, no dia em que começaram a fechar-lhes as malas, as mulheres mal se falavam.
Maria, preocupada com o marido que tudo acompanhava taciturno, percebia que dizia frases que deixavam escapar a intenção de ir ter com eles o mais rápido possível.
-Estas coisas maiores eu levarei, Antônio, quando for visitá-los, dizia José, quando se deparava com caixas de azulejos acumuladas no depósito e que o irmão teimava em levar para a casa que um dia haveria de construir onde se estabelecesse.
-Só as malas já estão de bom tamanho, para te movimentares de um lado a outro, até achares o lugar ideal, argumentava, para ter, então, uma razão que justificasse sua visita em curto prazo. Essas falas deixavam Maria em completo desespero.
Na véspera da partida, estavam à mesa do almoço quando Antônio, chamando por Ana, que lhes servia o bacalhau, pediu: - Gostaria que preparasses um jantar especial para esta noite, pois pretendo chamar Quim, João, Felipinho, Celeste, Rosita e tu, minha cara Ana, para jantardes todos conosco nesta refeição de despedida. O que achas, Pedro?
-Ora, Antônio, que ideia maravilhosa! Vou já até os canteiros para convidá-los.
-Pois, faze-o por nós, meu irmão, que no momento estarei muito ocupado com José, no escritório. E diga ao Quim que logo o chamarei para passar os novos clientes que conseguimos ao longo desses corridos dias.
Pedro, levantando-se da mesa, chegou à chapeleira, pegou o chapéu e, feliz, a rodopiá-lo entre as mãos, pensou: “-Só mesmo Antônio para pôr fim a este almoço tenso. Todos nós, nesta silenciosa refeição, mal conseguíamos comer, sufocados pela tristeza que trazemos no coração, e, rodando a comida pelos pratos esperávamos que alguém conseguisse pôr um término em tão grande sofrimento. Antônio convidando nossos amigos para o jantar vai nos poupar de uma tortura ainda maior, que seria este nosso último jantar”
No alpendre, surpreso, percebeu Isabel também rodopiando nas mãos seu lindo chapeuzinho que, tímida, esperava por ele.
-Posso ir com o senhor meu tio?
-Será um grande prazer, minha pequena.
Colocando o chapéu, começaram os dois a caminhar lado a lado. Percebendo-a calada, o que muito estranhou, perguntou, tentando entabular uma prosinha:
-O dia hoje está quente, não achas, Isabel?
Esta, que ia triste, com a mão livre segurando na cabeça o chapéu, simplesmente retrucou, evasiva: - É mesmo?... Achas mesmo, meu tio?
Pedro, cismado, percebendo que a menina estava em seus momentos raros de reflexão, ou ainda sob a tristeza que abatera a todos durante a refeição, apertando-lhe a mão, seguiu com ela em silêncio, rumo aos canteiros.
A tarde passou numa lentidão incomum. Todos da casa andando de um lado a outro não conseguiam concentrar-se no que faziam. O silêncio perdurou pelas horas que se arrastavam, até que os amigos, ao cair da noite, começaram a chegar.
Durante o jantar especial preparado por Ana, o clima no início parecera tenso e triste. Aos poucos, porém, graças à Rosita, ao pequeno Pluf que não parava de saltitar fazendo graça, e também ao vinho, pois todos faziam questão de manter seus copos cheios, a fim de dissiparem o mal-estar de saberem ser aquela a última refeição que fariam junto aos familiares e amigos. Aos poucos e devagar, muito devagar, o líquido forte e abençoado foi surtindo seu efeito e, assim, em largas prosas, todos riam e faziam piadas.
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Na sala de estar, após o jantar, os homens bebiam e batiam seus copos em brindes de boa sorte aos irmãos aventureiros, rindo e fazendo planos para o futuro, enquanto as mulheres, com cálices de um bom vinho do porto, conversavam sobre trivialidades, para espantar a tristeza e as apreensões que levavam nos corações. Todos ficaram ali até altas horas da noite e Isabel, deixando de lado os propósitos de manter-se longe do tio, não suportando a ideia de sua partida, colocou-se em seu colo, fazendo-lhe prometer milhões de coisas.
Antônio, que muito sofrera com o afastamento que ele próprio impusera, agora, feliz, apertava-a contra o peito, prometendo-lhe tudo o que lhe era pedido, enquanto, em pensamento, rogava a Deus que lhe desse força para conseguir sobreviver àquela separação e, bem longe dali, Ele o ajudasse a encontrar, por fim, a paz e a tranquilidade para o coração.
A tristeza e a ansiedade da partida faziam com que os familiares e os amigos nem percebessem os arroubos de carinho que vez por outra acontecia entre os dois. Até Ana fazia olhos duros sem nenhum comentário, pois há tempos, com tristeza, percebera o que se passava com o patrão. Penalizada com aquele sentimento, só sabia agradecer a Deus a oportunidade daquela viagem, esperando e pedindo a Ele que, entre as lindas mulheres que encontrasse no novo continente, ele achasse alguma que o conquistasse totalmente, fazendo cair no esquecimento o sentimento torturante que provara por aquela menina de olhos grandes, negros e tão expressivos.
Ana observava que Isabel, apesar de trazer os olhos marejados, tentava esconder com seu jeitinho de prosear a dor que sentia pela separação. "- A menina levará algum tempo para superar a falta dos tios, mas, como desde seu aniversário acontece de estarem borboleteando pela propriedade alguns dos mais belos gajos das Ilhas e do continente, não levará muito tempo para ocorrer o interesse da pequena por algum deles".
Sentada junto às mulheres no canto da sala, Ana saboreava o vinho e com um sorriso complacente acompanhava de longe o que conversavam a menina e o tio, concluindo com seus botões: “- Esta menina, casar-se-á com bem pouca idade. Seu temperamento ardente e efusivo prova-me isto.”
Celeste, só chorava, no que era acalmada por Emília:
-Não te aflijas, mulher, pois que nenhum deles será devorado por nenhum índio canibal como temes. Quanto à saudade, isso sentiremos muita, pois que a presença deles empresta a esta casa um clima de alegria e movimento.
-Vamos todos ter de aprender a viver sem eles, sem seu companheirismo, que é o que eu mais sinto perder, murmurava Maria, entristecida.
Ficaram assim ali, sem se preocuparem com o adiantado das horas, a rir de alegria com as piadas de Pedro e João, que as contavam para amenizar a tristeza que reinava no coração de todos até que, Joaquim, levantando-se, com pesar, falou: - Bem, a conversa está boa, mas, logo teremos que enfrentar uma viagem longa para acompanhá-los até o porto. O melhor a fazer é irmos todos descansar, pois que amanhã teremos um dia bem agitado.
Os amigos, levantando-se, despediram-se com um ensurdecido "boa-noite". Antônio e Pedro os acompanharam até o alpendre, percebendo-os muito sentidos pela perda dos patrões e amigos. Suspirando, e com olhar triste, observaram que desciam cabisbaixos e a passos lentos.
-São pessoas muito especiais, Pedro. Não sei se por este mundo afora, teremos amigos e colaboradores tão dedicados.
-Como eles?... Ah, que isto será difícil, Antônio, muito difícil! Passamos por tantas situações juntos que, para mim, são mais amigos que empregados, afirmou Pedro, quando, voltando-se para o irmão, com os olhos marejados, concluiu: - Confesso-te que acho que pagamos um preço muito alto por nossa aventura, Antônio. Pois sinto que estamos perdendo o que temos de mais precioso em nossas vidas.
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Antônio, passando o braço pelos ombros de Pedro, triste, murmurou: - Quanta razão tens em tudo o que falas. É um preço imensamente alto o que pagamos por esta nossa aventura.
Silêncio... - Pedro, se estiver muito difícil para deixares nossos parentes e amigos, fica, meu irmão. Não tens razão tu me acompanhares em tão tresloucada viagem.
-E deixar-te ir sozinho conferir as maravilhas que nos relatam nossos conterrâneos? Pois desiste, meu irmão. Sempre estivemos juntos, e não será agora, por puro sentimentalismo, que eu te deixarei.
-Ah! Pedro, que grande companheiro tu és!
-Meio bonachão, mas, sempre companheiro, Antônio... Tenhas tu, a certeza disso.
-Eu tenho, Pedro, eu tenho. E por isso temi tanto quando te dei a opção de ficares aqui, deixando-me partir sozinho. Pois que, infelizmente, por mais que me doesse o coração deixar-te aqui, eu jamais poderia ficar, pois, confesso-te que tenho que partir. Preciso partir daqui, para o mais longe que conseguir, entendes, meu irmão?
Pedro voltou-se e, apercebendo-lhe os olhos marejados, sussurrou: - Entendo, Antônio...
-Será que me entendes mesmo, meu irmão? Ah! ..., se pudesse falar-te de meus temores!
Pedro, penalizado, mas silenciando a resposta para não constrangê-lo, murmurou: - Seria bom que seguíssemos o conselho do sr. Joaquim, recolhendo-nos e procurando dormir o restante da noite, pois teremos um dia fatigante, meu irmão.
-Realmente, Pedro. Vamos entrar, e uma boa noite para ti.
-Boa noite para ti também, Antônio.
E dando-lhe as costas enquanto entrava na sala, pensava: “- Não te preocupes, Antônio, que, longe, irás superar todo este mal que te aflige."
Os parentes, num silêncio condoído, rumaram tristes para seus aposentos, enquanto Ana e Celeste, chorosas, punham ordem na sala. Antônio permanecia no alpendre, quando, surpreso, foi abordado por Isabel que, aproximando-se, fez uma observação sobre a noite com o céu totalmente limpo e pontilhado de estrelas:
-As estrelas que vemos aqui serão vistas lá para onde o senhor vai, meu tio? Perguntou a menina, com os olhos rasos de lágrimas.
-Sim, minha pequena, o planeta Terra é tão pequeno frente ao firmamento, que as estrelas podem ser vistas de qualquer lugar do mundo.
-Pois me promete que, se conseguires ver a constelação das Três Marias, vai te lembrar de mim?
-Sempre. Todas as noites eu procurarei localizá-la, e ficarei lembrando-me de minha menina, aqui, tão longe, respondeu o tio, sentando-se no banco onde logo a pequena aconchegou-se lhe ao colo.
-Isa, minha Isa, como eu sentirei a tua falta! Afirmava Antônio, apertando-a mais e mais.
-Eu também, meu tio, eu também, respondeu Isabel, deixando-se abraçar, enquanto ele a beijava nos cabelos.
-Isa..., minha Isa...
-Hrum, hrum, pigarreava Ana, na porta, enquanto enxugava um cálice de vinho.
-É hora de te recolheres, menina. Aliás, já é hora de ambos se recolherem.
Com pesar, Antônio colocou-a no chão e, pouco se importando com a presença de Ana, que insistia em ficar onde estava, beijou-a na face e, a muito custo, interrompeu o beijo, para dizer: - Fica combinado, minha pequena, nosso ponto de encontro todas as noites será a constelação das Três Maria. E puxando-a para si num último abraço, beijou-a.
-Hrum, hrum..., continuava a pigarrear, a velha Ana.
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Afastando-se do tio, Isabel, ficou segurando-lhe a mão enquanto se afastava, até senti-la escapulir-lhe pelos dedos e, com lágrimas nos olhos, passou por Ana, deu-lhe um beijo rápido na face corada e disse:
-Tu és rabugenta, mas eu gosto muito de ti, minha Ana e, voltando-se para o tio, lançou lhe um olhar lagrimado em despedida, adentrando o corredor.
-Cuida da minha pequena, amiga Ana, cuida de minha menina, pediu Antônio, com os olhos marejados, enquanto entrava e beijava-a no rosto, como fizera antes, Isabel.
-Cuidarei, senhor, mas, cuidai-vos também, e procurai superar o que vos traz este sofrimento, uma vez que nós dois bem sabemos que isto não poderá acabar em coisa alguma.
-Oh, minha amiga! Não me digas isso, por favor, não me digas!
-Valha-me, Deus, que a coisa é tão séria quanto eu pressentia? Perguntou Ana, temendo a triste verdade.
-Tu tens ideia do que é viver num inferno, minha Ana? Pois é como tem sido minha vida, desde que descobri este fogo que me devora a alma. Falou Antônio, desolado.
Ana, com lágrimas a correr pelas faces ante tão profundo sofrimento, comentou: - Pois, então, é bom que partais, sr. Antônio, é bom que partais. E que partais para bem longe daqui, senhor...
Despedindo-se de Ana com olhar triste, fez-lhe um carinho no rosto miúdo e dirigia-se para o quarto com andar vagaroso, quando, voltando-se, murmurou: - Vou ao encontro de Quim, minha Ana, pois pressinto que esta noite, não conseguirei pregar os olhos.
-Ele vos espera, senhor. Conhecendo-o como o conheço, Quim estará à vossa espera, patrão...
-Boa noite, Ana. E obrigado por tudo. Fica certa de que sentirei muito tua falta.
-Mais que a de Quim, meu patrão? Perguntou a mulher, demonstrando o ciúme.
-Talvez tanto quanto, minha Ana, porque tua perspicácia tem me surpreendido, e tua compreensão muito me comove. Sou-te muito grato por tudo, Ana. Mas Quim... Quim tem sido meu amigo, conselheiro e confidente por todos esses anos, desde que eu era ainda quase um menino.
Ana, com um sorriso, falou: - Pois ele, para mim, é um sábio, senhor, sempre pronto a nos ouvir em nossas lamúrias, fazendo-nos pensar com suas frases simples e diretas.
Antônio, surpreso, saindo pela porta da sala, comentou: - Disseste bem, minha Ana, ele é um sábio.
Ana, acabando de fechar tudo, saiu em direção a sua casa. Descendo a encosta, pensativa, viu que Quim e o patrão conversavam, sentados na soleira da porta da adega.
Lamentando todo o sofrimento que pressentira no pobre homem, seguiu seu caminho, inconformada com a crueldade do destino para certas pessoas. - Eu sabia que ia dar n isso!... Bem que eu avisei! Agora, fica essa coisa absurda pairando no ar, que não tem condições de ter futuro algum! E, andando, continuava a resmungar, com profunda preocupação: “- Onde já se viu, tio e sobrinha!... Ora, ora, pois, que maior absurdo e despudor. Isso é coisa do capeta.” E desceu o final da encosta até sua casa, falando e falando, com seus botões.
-Vamos lá, mulher, que estás a andar como um bicho preguiça, enquanto eu aqui espero-te há horas.
-Ah! João, não digas nada, homem, que hoje eu estou mesmo é muito furiosa.
-Pois, dize-me quando não o estás, mulher?
-As crianças estão dormindo, João?
-Há muito tempo, Ana. Filipinho contou que Rosita chorou muito antes de dormir.
-Imagino, João, respondeu Ana, enquanto entrava e o marido fechava a porta.
Na manhã seguinte, tomavam todos o desjejum em meio à tristeza geral, quando Isabel apareceu na porta da sala com os olhos inchados, que denunciavam a péssima noite que tivera.
Maria levantou-se de um salto para ver o que acontecia com a filha.
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-Algum inseto me picou, mamãe, tentava explicar a pequena, indo sentar-se à mesa, para tomar seu café.
Ana, que voltava da cozinha já com uma compressa de ervas especiais que preparara ao prever o estado em que a menina iria acordar, com carinho, disse: - Vamos, vamos lá dentro pôr uma compressa nesses olhos bonitos, pois que não gostarás de acompanhar teus tios ao porto com esses olhos que mal consegues abrir, não é?
Tomando-a pela mão e levando-a para o quarto, colocou-a deitada, enquanto segurava-lhe sobre os olhos a compressa de algodão.
-Conte-me agora o porquê destes olhos amanhecerem deste jeito, menina.
-Algum inseto picou-me durante a noite.
-Sei bem o inseto que te picou, disse Ana com sarcasmo. Vê se tira essas minhocas da cabeça e procura viver tua juventude intensamente, Isabel, pois que ela passa rapidamente, minha menina, continuou Ana, enquanto com carinho passava-lhe a mão livre pelos os cabelos para confortá-la.
-O que quer dizer a minha amiga chata, com essas coisas de minhocas na cabeça? Pois fica sabendo que quem tem minhocas na cabeça és tu, Ana, para ficares aí dizendo coisas que não se entende; respondia-lhe Isabel, tentando sair da cama.
-Pois, aquieta-se aí, menina, para que eu possa cuidar desta picada de inseto como dizes, se não, vais deixar tua mãe muito preocupada, e isto, eu não vou permitir, pois que já basta o sofrimento que vens causando às pessoas, com teu jeitinho safado.
E, fazendo-lhe carinhos enquanto trocava as compressas, continuou: - Não brinques com fogo, minha criança, pois a queimadura poderá ser feia.
-Ana, eu não entendo o que queres dizer. Por Deus, que não entendo a tua zanga.
-Dia chegará que tudo vais entender, minha menina. Aí, saberás tudo o que a velha e rabugenta Ana quer hoje te dizer, mas, até lá, viva tua juventude e aquieta esse teu coração.
Após levantarem-se da mesa, os irmãos, entristecidos, puseram-se a se despedir de todos que não iriam acompanhá-los até o porto, deixando que as lágrimas rolassem soltas.
Abraçando-se a Ana, os dois disseram a mesma coisa, como se tivessem combinado: - Ah, minha Ana, quantas saudades teremos de ti e de tua comida, pois sabe-se lá o que vamos comer daqui por diante.
Ana, sem conseguir responder, só sabia chorar nos ombros daqueles futuros viageiros.
Separando-se dela com pesar, os irmãos voltaram-se para a chorosa camareira.
-Celeste, cuida bem de nossa irmã Maria e de Isabel. Sentiremos saudades de nossas camas bem feitas e das roupas tão bem cuidadas por ti.
Lamuriando-se do futuro incerto, com muita tristeza, iam se despedindo de um por um. Acompanhados até o portal, os irmãos subiram no carro que os esperava. Aos gritos de boa sorte e que Deus os acompanhasse sempre, foram se afastando, dando adeus com as mãos trêmulas, a todos que deixavam. Quim afastava-se conduzindo o carro, enquanto João e Filipinho levavam a charrete com a bagagem.
Isabel, que como sempre ia ao lado de Antônio, não parou de tagarelar o caminho inteiro, enquanto todos os outros, mal lhe respondiam as perguntas, perdidos como estavam nos próprios pensamentos. No ancoradouro, despediram-se, chorando a dor da separação. Antônio que se abraçava à sua menina pela última vez, disse: - Logo viremos buscá-los, minha pequena; e logo estaremos todos juntos novamente, verás.
-Prometes, meu tio? Perguntava Isabel, resistindo em afastar-se dele.
-E eu não mereço despedida nenhuma? Perguntava Pedro, demonstrando o ciúme que lhe ia no coração.
-Ora, meu querido tio Pedro, falou a pequena, abraçando-o carinhosamente.
-Ora, pois, vede que agora sou merecedor de um abraço desta pequena, disse Pedro, para disfarçar a emoção.
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-Não chores, querida, pois que assim será muito mais difícil partirmos e deixar todos aqui, pediu-lhe Pedro, que, ao olhar os outros que igualmente não continham a tristeza, disse: - Prometo que viremos visitar-vos em breve, não é Antônio?
-Lógico, confirmou o irmão. Não aguentaremos ficar tanto tempo longe de todos. Viremos visitar-vos em breve e, logo que estivermos estabelecidos, vós ireis nos visitar como combinamos.
Assim, com muita dor, aconteceu a separação da família no cais do Porto do Funchal. A pequena Isabel chorava inconformada, enquanto observava-os subir a rampa do vapor e, depois, colocarem-se recostados à balaustrada do convés, de onde podiam ter melhor visão da família que deixavam com pesar.
“- Tio Antônio... Ele não vai cumprir a promessa de vir nos visitar. Com certeza, não terá tempo para isso!” De repente, olhando para o pai que, triste, abraçava-a pela cintura, pensou, com muita convicção: “-Porém, papai!... Este, sim, vai levar-me ao Brasil, cumprindo o que me prometeu. Ah!... Ele sim vai levar-me. Ainda não sei como, mas que ele vai me levar, vai, ora, se vai!” E ali, naquele momento, vendo o navio afastar-se em meio às águas agitadas, lentamente, muito lentamente, como se tivesse receio de enfrentar o imenso oceano que teria de atravessar até o Ocidente, Isabel percebeu que tudo faria para que a promessa do pai fosse cumprida.
E, gritava o mais alto que conseguia: - Esperai por mim..., esperai por mim, que irei ter convosco muito antes do que esperais.
E gritava, gritava, repetindo e repetindo: - Esperai por mim... Esperai por mim que irei ter convosco muito antes do que pensais.
Eram tão altos os seus gritos, que nem os avós ou mesmo os pais conseguiam entender o que ela dizia, preocupados que estavam em abanarem seus lencinhos brancos em adeus aos que partiam. Mas Isabel, ao perceber que muito vagarosamente o navio se afastava do cais, abanando o lencinho vermelho que trouxera, para ser vista com facilidade, gritava: - Esperai por mim, esperai por mim.... Eu vos amo, eu vos amo... Amo-vos demais, demaaaaiiisss...
E ficaram ali, acompanhando com o olhar triste aquele transatlântico que se afastava levando Antônio e Pedro definitivamente para longe, muito longe de suas vidas.
E ficaram ali, silenciosos, a esperar sumir na linha do horizonte a embarcação que, lentamente, muito lentamente, foi sumindo, sumindo, até que desapareceu por completo, num repente, como que tragado por aquela confluência do céu azul claro e límpido com a imensidão de água, por vezes, impiedosa.
E tristes, muito tristes, voltaram cabisbaixos à procura de Quim, que os levaria de volta à Quinta.
CAPÍTULO 5
A PEQUENA AMÉLIA
À volta para casa após a partida dos parentes foi triste, e o silêncio que reinava entre eles, era consternador. Cada um, preso nos próprios pensamentos, se perdia nas lembranças.
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Isabel ficou a recordar o quanto fora bom conviver com os queridos tios que, sempre zelosos, nunca a deixavam sem um passeio, uma brincadeira, um presente. “- Quanta falta vou sentir deles, de nossos passeios tão divertidos! Conviver com eles era simplesmente maravilhoso! Apesar do pavor que mamãe tinha de barcos, os tios sempre davam um jeitinho de convencê-la a deixar levar-me para um passeio. Tio Antônio sempre tinha um jeito diferente e especial de conseguir a permissão dela, como acontecera no dia que eles queriam levar-me até Sintra, para o casamento de uns amigos:” - Minha irmã, Isabel é apenas uma criança, e toda criança gosta de passear de barco. Pois, diga-me cá, ó Maria, tu, por ventura, eras uma exceção quando pequena?” E assim ele vencera. Como vencera sempre, toda e qualquer resistência de mamãe. É por isto que eu adoro meu tio Antônio e não me conformo com esta loucura de ele ir para esse país tão distante. E o tio Pedro. Tão calmo, tão bonzinho, estava sempre a defender-me de papai, quando era pega fazendo alguma arte. Quantas saudades vou sentir deles!” E com essas lembranças, Isabel se deixava embalar pelo sacolejar do carro, subindo as encostas a caminho da Quinta.
José, por sua vez, com muita tristeza, ficava rezando e pedindo a Deus que acompanhasse os irmãos na viagem, abençoando-os e protegendo-os de todos os perigos.
Maria, determinada a não se deixar tomar pela saudade que já sentia dos cunhados, e para afastar a tristeza, ficou relembrando o quanto ela havia sido bem recebida por eles, por ocasião de seu casamento. Ela - ainda menina - e José se conheceram numa certa manhã, por ocasião de uma visita à gruta de Fátima, santa de grande devoção das duas famílias. E, durante um lanche ao ar livre naquela mesma tarde, seus pais, que eram muito amigos do sr. Fernando e de D. Isabel, firmaram o compromisso de bodas entre seus filhos. Desde então, eles pouco se viram até o casamento, que aconteceu em Lisboa. Depois da cerimônia, eles vieram residir na Ilha, na “Quinta da Bela Vista".
Maria encantou-se com a beleza do lugar, desde o momento em que ali chegou.
A Quinta era localizada no litoral da Ilha da Madeira, com as escarpas rochosas entremeadas de terras cultivadas, tendo, como painel de fundo, as águas do Oceano Atlântico de um azul profundo, cujas ondas, dependendo das marés, arrebentavam de encontro aos rochedos, levantando espuma. Lembrava-se do quanto gostava de ficar ali, apreciando a paisagem, ouvindo o som murmurante das águas.
Naquele chacoalhar do carro pelas ruas pedregosas por onde passavam, Maria mal sentia o desconforto da viagem, recordando-se em pormenores duma outra que fizera por aquele mesmo caminho, em um maravilhoso e temido dia, o dia do seu casamento.
Exatamente como agora, naquele não tão longínquo dia, Maria vinha de olhos semicerrados, sentindo o mesmo ar úmido no rosto, enlevada com o doce perfume que vinha não sabia de onde, quando foi abordada daquele devaneio pelo jovem esposo, que lhe tocava delicadamente o braço. Abrindo os olhos, percebeu que haviam chegado ao destino. Virou-se devagar e, ao olhar nos olhos daquele quase estranho homem que, desde poucas horas, era seu marido, notou que se sentia muito bem ao lado dele e que faria de tudo para que aquele casamento fosse feliz para ambos.
Dando-lhe o braço com um sorriso muito meigo, gentilmente seguiu-o até a moradia, onde era esperada pelos cunhados, dos quais muito ouvira falar. Entrando na casa, Maria surpreendeu-se ao perceber todos os criados enfileirados em duas alas, e encabeçadas por cada um de seus cunhados, que, a meio sorriso, e cada um por sua vez, após beijar-lhe a mão dando-lhe as boas vindas, foi fazendo a apresentação dos serviçais, dizendo-lhe, além do nome, a função de cada um na propriedade. Maria, de braços dados com José, estendendo a mão para cumprimentar a todos, mantinha o sorriso aberto e muito franco, enquanto agradecia a cada um a singela acolhida.
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Sorrindo de suas lembranças, naquele sacolejar incessante do carro, Maria lembrava-se o quanto fora difícil para ela segurar o riso à saída dos empregados, após as formais apresentações. Ela achara muito engraçado os criados saírem dando meia volta e mantendo-se em fila por ordem de altura, com a cabeça ereta, fazendo lembrar mais uma apresentação militar a um general, faltando para isto, apenas o marchar do pelotão, a continência e o apito do capitão, que percebera de imediato que, se houvesse um, este seria Antônio. Fora muito cômica aquela retirada. Talvez se seus sogros estivessem ali, as coisas acontecessem mais leves, sem tanta formalidade, mas eles haviam optado em passar uns dias em Lisboa, obviamente para deixar o jovem casal mais à vontade.
Lembrava-se que agradecera emocionada a seus cunhados pela acolhida, quando, de repente, ouviu o som de uma voz abafada pela respiração descompassada, pedindo licença para entrar. Voltando-se, Maria viu que Celeste, a mais nova das criadas, a que seria sua camareira particular, retornava à sala com um mal ajeitado ramalhete de flores, o qual percebia-se ter sido providenciado de última hora, dizendo em voz arfante, que mal se podia ouvir.
“-Com a licença dos meus senhores, isto é para a minha nova patroinha.”
Esticando os braços, entregou-lhe as flores e, cheia de mesuras, aquela portuguesinha de estatura muito miúda, ainda menina, foi afastando-se de costas em direção à porta, nunca deixando de repetir: “- Para a minha nova patroinha.” E repetia, repetia a frase como se fosse o refrão de algum hino, curvando-se sempre, até desaparecer pela porta em arco.
Quando Maria conseguiu voltar-se para o marido, os olhos estavam marejados pela emoção e, com a voz embargada, murmurou: “- Jamais pensei ser merecedora de tal recepção, José.” E, dirigindo-se aos cunhados, pôs-se nas pontas dos pés, levantou o rosto para beijar Antônio, enquanto lhe dizia baixinho, pois que não tinha na época muita segurança de sua afirmação: “-Isso, pelo jeito, foi arte tua, meu cunhado Antônio. Obrigada, muito obrigada.” E, lembrava que, virando-se para Pedro, cuja estatura não exigira grandes esforços, agradeceu da mesma forma, com um beijo no rosto.
Estavam enrubescidos e muito emocionados. Antônio, olhando para o irmão José, tomou a iniciativa porque percebeu que Pedro não conseguiria articular palavra alguma. Passando o braço num gesto carinhoso pelos ombros da jovem cunhada, foi logo dizendo, lembrou Maria: “- Aqui está nosso afortunado irmão José, que até há pouco tempo percebemos muito preocupado com o casamento arranjado por nossos pais, e eis que chega nos apresentando esta adorável criatura. Se fosse certo encontrar em Cecília, a mulher a mim prometida por nosso pai, as qualidades e a beleza interior que se nota em tua esposa, José, correndo eu iria casar-me com ela, pois tenho absoluta certeza de que em poucos minutos estaria perdidamente apaixonado. És um homem de sorte, meu irmão José!. E na voz dele notava-se uma ponta de inveja, mas muita convicção.”
E as lembranças continuavam: “- Pedro, que até então não conseguira dizer uma única palavra, aproximando-se de Maria e dirigindo-se a José, falou: - Faço minhas as palavras de Antônio e acrescento mais essas: José é um homem de sorte em tê-la como esposa, mas nós, Antônio e eu, somos afortunados em tê-la como cunhada e irmã”.
Maria, que era por natureza sempre alegre, percebeu naquele momento, o quanto seria fácil e agradável conviver com eles e, surpresa, compreendia o quanto se sentia feliz por ter se casado com José. Aquele casamento planejado pelos pais também a ela muito havia preocupado, pelo simples fato de ser mulher e ter sido criada e educada para servir ao homem, literalmente, quando casada. Mas via agora que seus temores eram infundados, pois já lhe agradava o fato de vir a se tornar mulher de José, desde a saída de Lisboa, porque notara o quanto era bom e carinhoso o homem com quem passaria o resto da vida, assim como seus irmãos, que tão bem a receberam.
Maria recordava-se, ruborizada, que naquele momento pensara: “-Tenho certeza de que será muito bom pertencer a este homem tão meigo e tornar-me sua mulher”.
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Emocionada com a nitidez de suas lembranças, de repente, percebeu que, como ela, todos ali naquele carro estavam presos aos pensamentos, e dava graças a Deus por nenhum deles ter a capacidade de ler o que se passava em sua cabeça.
Com um profundo suspiro, sem perceber, voltou às recordações, lembrando que, no dia de seu casamento, após seus ousados pensamentos sobre a ansiedade que sentia em consumar rápido aquele enlace, recordou que José a chamara, e ela, tomada de susto e muito corada, atendeu, desculpando-se com ele pela dispersão de seus pensamentos, alegando ao movimentado e cansativo dia que tivera.
Antônio e Pedro, aceitando e respeitando seu argumento, porque de fato haviam tido todos, um dia exaustivo, desculparam-se por estar atrasando o descanso de ambos e se despediram, mas não sem antes darem uma piscadela maliciosa a José, fato notado por Maria e que a deixou com o rosto em brasa. Mesmo assim envergonhada, ao despedir-se, agradeceu novamente a carinhosa acolhida e, como era muito sincera, não conseguiu afastar-se sem antes lhes dizer:
-Folgo em ter-vos como cunhados e alegro-me ainda mais em ter-vos como irmãos, pois sendo filha única, foi uma das coisas que mais senti falta em minha vida, e agora, com meu casamento, ganhei logo dois. De fato, tenho que agradecer muito a Deus e aos nossos pais, José, por terem me presenteado te escolhendo para marido, como também, o fato de casando-me contigo, ter ganhado estes dois rapagões como irmãos. Espero que Deus me ajude a fazê-los muito felizes. Se mamãe estivesse aqui teria dito: „ Maria, não é de bom-tom que se comporte assim, deixando suas emoções tão expostas. ‟ Disse Maria, sentindo-se um pouco inibida por extravasar tão claramente as emoções, quebrando assim, todo e qualquer protocolo ou normas sob as quais havia sido educada.
Antônio, naquele momento, aproximara-se e olhando-a com carinho, dissera:
-Pois aqui em nossa casa, que a partir de hoje também é tua, não levamos muito a sério o que é, ou não é, de bom-tom para a sociedade, pois que aqui, sempre embasados no respeito somos livres para nos expressarmos com sinceridade e agir com naturalidade, sem nenhum tipo de pressão social.
-Ora, pois, isso é muito bom! Entrei em uma família que pensa como eu. Nossa Senhora de Fátima ouviu minhas preces.
Antônio e Pedro, felizes com a sinceridade da cunhada e não conseguindo esconder tudo o que lhes passava pelo coração, abraçando-se a José, despediram-se e se afastaram em direção a seus aposentos.
Maria, percebendo José muito emocionado e meio vexado aproximar-se do cordão do sinete, num repente, perguntou com voz sumida: - Por que, José?
- Estou chamando Celeste, que aguarda com ansiedade a oportunidade de ajudar-te a ajeitar as coisas da mala e tudo o mais que tu possas precisar.
Mal conseguiu Maria externar sua resposta, que ali já se encontrava Celeste, pronta para seguir a nova patroinha.
Maria, percebendo que ambos precisariam de um tempo para recompor-se, despediu-se dele com um beijo no rosto, deixando-o totalmente perturbado.
Celeste vibrou ao presenciar aquele beijo e pensou consigo mesma, enquanto guiava a nova patroinha pelos corredores da casa: “- Atrevida esta, minha senhorinha! Imagine se contar o que vi para o Quim, ou à enciumada Ana! Ah! Ela vai dizer que a patroinha não é uma moça fina, que moça fina não faz isto, não faz aquilo.” E, sem perceber que era ouvida por Maria, falou: - Ah! E lá quero eu saber o que faz certo ou errado uma moça fina? Ah! Pois que fique para lá essa prosa de moça fina ou não. O que tenho é muita certeza é que esta jovem, com seu jeito espontâneo de ser, irá trazer muita felicidade para esta casa!
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Maria, que a tudo ouvia, imaginou os pensamentos que passavam pela cabeça daquela inocente criatura que já lhe era muito querida. “- Um dia esta menina vai me conhecer e entender que sou como sou, uma pessoa espontânea, que faço tudo o que me vem do coração, pouco me importando com as regras ou normas da sociedade.”
"-Quanta felicidade vivemos desde aquele dia. Como foi bom tornar-me mulher daquele homem, gentil. Como foi bom conviver com essa família. Acordar de manhã sempre foi muito prazeroso, pois que rotina aquela casa não tinha, sempre com as novidades que inventava meu cunhado e irmão Antônio. Como era bom! Que tempos bons vivemos todos até que a fatalidade da perda do Sr. Fernando e de D. Isabel veio afetar profundamente o paraíso em que vivíamos. E, para completar, agora acontece esta viagem. A viagem que leva para muito longe, os irmãos que tanto sonhei. Novamente voltei a ser filha única, pois que acabo de perder os irmãos que tive por tão pouco tempo.”
Chegando à Quinta, todos os esperavam no alpendre, desde Joaquim, Emília e os empregados. Ana, percebendo logo a tristeza estampada no rosto de toda a família, saiu na dianteira para recebê-los. Acolhidos pelo carinho de Ana, que, instigando-os a superarem aquele momento de tristeza, foi logo dizendo: - Ora, pois, valha-me Deus, e que caras são essas? Parece-me que estão chegando de um funeral e não de uma despedida para uma viagem que eles tanto queriam fazer. Vamos, pois, abrindo um sorriso para poderem compartilhar a mesa de lanche que todos preparamos com muito carinho, esperando o retorno da família.
Isabel, contagiada por aquela recepção, depois de cumprimentar e beijar todos, abraçada à querida Ana, contava, aos tropeções, a tristeza mista de alegria que tinha sido o seu dia.
- Imagina Ana, era um transatlântico luxuoso, enorme, contava a menina, usando a fértil imaginação.
Falando, falando, Isabel conseguiu que aquele lanche, a primeira refeição da família sem os tios, acontecesse de uma forma mais descontraída e alegre.
-Agora, vovô, nós podemos planejar nossa viagem até Lisboa, não é? Perguntava a menina, para desespero de Maria.
-Tudo a seu tempo, minha querida, tudo ao seu tempo.
O tempo voava para Maria, que, preocupada com o nascimento do filho no verão, não imaginava como seria a reação de Isabel.
Para a menina, porém, o tempo parecia parado, pois seus dias eram longos e as noites intermináveis.
D. Lurdes, sua mentora, fazia o possível para que ela entendesse que não era mais uma menininha, e reconhecia que uma boa reprimenda seria de muita valia para a educação daquela pequena insubordinada. Isabel chegava até a entender o que lhe pediam, mas parecia-lhe demais, ficar em casa bordando ou a ler "Os Lusíadas", a grande obra de Camões.
Uma vez que o avô, a cada semana, adiava a viagem deles até o continente, o que gostava mesmo era de estar junto a Quim, seu grande amigo que, aliás, não era tão grande assim, uma vez que até ele, ultimamente, vinha ralhando com ela, dando-lhe conselhos: “- Pequena, isso não fica bem para uma donzela”, e outras coisas mais.
Porém o tempo passava e, numa certa manhã, foi tirada da cama por Ana que, parecendo meio aflita, lhe pedia: - Levanta-te, minha pequena, pois que terás de ir para a minha casa, uma vez que meu pobre João, não passa muito bem.
-Ora, ora, pois, Ana! Levantar-me assim tão cedo, para cuidar de um homem adoentado? Valha-me Deus! Exclamou a menina, esfregando os olhos com as costas das mãos.
-Vamos e sem muita prosa. Levanta logo e veste-te, Rosita está lá fora a esperar.
-Mas, Ana, tentou lamuriar-se a menina que, puxada da cama, era vestida às pressas.
-Anda logo, pequena, pois que, se pudesse, ficaria eu cuidando de meu marido, porém, tenho de cuidar de tua mãe, não é?
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-Não te preocupes, Ana, pois que cuidarei de João o melhor que puder, como também tomarei conta de Rosita, para trabalhares sossegada.
Virada de um lado a outro pela agitada Ana, Isabel, comentou: - João deve estar mesmo bem adoentado, haja vista a pressa com que me arrumas.
Ana, procurando não passar preocupação para a pequena, ia fazendo recomendações que Isabel procurava ouvir com atenção, apesar de ainda estar muito sonolenta.
-Anda lá, pois, a lavar esse rosto, menina, enquanto ponho-te o café da manhã, ordenava Ana, saindo esbaforida do quarto em direção à cozinha.
Isabel, que pouco ou nada entendia do que acontecia, caminhou para o lavatório a fim de lavar-se para talvez melhor entender o que lhe era pedido àquela hora da manhã.
Tomava o café ouvindo Ana, que lhe dizia: - Não te preocupes com o almoço, pois o deixei pronto sobre o fogão onde permanecerá quentinho até a hora de servi-lo.
-Mas Ana, eu...
-Cala-te e come rápido, pois que Rosita está a congelar, lá na varanda.
-Dize-me, por que não a faz entrar para que tome café comigo? Continuava a menina, falando de boca cheia, tentando fazer que com a entrada de Rosita ela pudesse ter um pouco de sossego, pelo menos para tomar o desjejum.
-Nada disso, menina. João está lá febril, e tu me pedes companhia para este teu lauto café? Ora, pois, vejam só! E não fales de boca cheia, pois bem sabes que isto não é de bom-tom, como sempre diz tua mentora, falou esbaforida.
-Ah! Não, Ana, até tu?!... E levantando-se da mesa, nervosa, saiu porta afora comprovando a presença de Rosita que, tremendo de frio, mal conseguiu cumprimentá-la.
Abraçadas, puseram-se as duas morro abaixo a caminho da casa de Ana, para ver o pobre João. Este, enrolado em cobertas, estava sentado em uma cadeira ao lado do fogão. Isabel logo tomou o comando, dizendo: - Pois trata de voltar já para a cama, ao lado do fogo tua febre só vai é aumentar.
João, que a tudo atendia com presteza, voltou para a cama, onde logo foi abordado por Isabel com uma fumegante xícara de chá de ervas com canela, como Ana lhe fazia sempre que se resfriava.
João, vendo aquilo, disse sem pensar: - Agora é que vou ficar, realmente, doente!
-O que dizes, meu amigo? Pois pensas que estou aqui para brincar de bonecas com Rosita, é? Pois fica sabendo que estou aqui a pedido de Ana, para tratar de ti. E, como se fosse uma pessoa adulta, olhando firme para ele, completou: - Vamos lá, homem, vê se toma logo este chá antes que esfrie, pois, se assim for, não será de nenhuma serventia.
Rosita, que não largava da saia de Isabel e ia de lá para cá atrás da menina, pediu com voz dengosa: - Tu lês uma história para mim, Isabel?
Esta, olhando para a pequena de olhar triste, respondeu: - Lógico que posso te ler uma história, Rosita, mas ajuda-me a fazer teu pai tomar este bendito chá, que eu logo vou ter condições de te contar uma história linda!
-Bebei, papai, bebei! Pediu Rosita, para ser logo atendida por Isabel, que para ela era a maior contadora de histórias que conhecia.
Isabel, procurando saber de Felipinho, logo tomou conhecimento de que ele havia descido para a adega. “- Graças a Deus, menos um nas minhas costas”, murmurou para si, Isabel, no que foi ouvida por João, que logo pigarreou.
-Podes pensar o que quiseres, João, mas ter o Felipinho aqui para eu cuidar também, ia ser demais, não é?
Isabel, tocando na testa de João e verificando que este não tinha febre no momento, pegou o livro que trouxera para a pequena Rosita já há algum tempo e começou: - Era uma vez...
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Assim, Isabel passou o dia atarefado com os afazeres da casa de Ana, servindo o almoço para a família, cuidando da febre de João, a qual, como por encanto, depois daquele chá da manhã, não voltara mais, e lendo histórias para a pequena Rosita, que não se cansava de ouvi-las. Anoitecia quando Ana, esbaforida, entrou porta adentro, tomada de espanto ao ver que tudo estava em perfeita ordem. Rosita estava de banho tomado, vestindo roupas limpas; e o que era de espantar, uma comidinha cheirando muito gostoso fumegava no fogão.
-Pasmem!... E que me ouçam os Santos, pois que esperava encontrar aqui uma tremenda confusão e vejam só com que eu me deparo. Tudo reluzente, comida no fogo, Rosita limpa.
Chegando perto do marido e conferindo com a mão a febre, Ana exclamou admirada: - Isabel, que milagre foi esse, pois que este homem que deixei ardendo em febre hoje cedo, agora encontra-se mais forte do que nunca? E esse cheirinho bom de comida que paira no ar, ahhmm!...
Isabel, tendo agora uma postura de açucareiro, com ambas as mãos na cintura, afirmou com orgulho:
-Ora, pois, que, para a primeira pergunta, a resposta é que foi aquele famoso e horroroso chá, que sempre me fazes tomar ao menor sinal de gripe. Quanto à segunda, sobre o famoso cheirinho que só tu sentes, não passa daquele guisado que de vez em quando me pedes para ajudar-te a fazer, sabes, não é? Naquelas ocasiões em que estou a perturbar os outros com minha tagarelice e tu me chamas para a cozinha a fim de dar sossego aos ouvidos alheios, porque, cá para nós, os teus...
-Ah! Isso lá é verdade, Isabel, és um amor de pessoa, mas quando danas a falar, saiam de perto!
João, ao levantar-se da cama, deu uma espreguiçada barulhenta, no que foi de imediato, repreendido por Ana: - Vê se isto são modos, na frente das crianças!
João, colocando a enorme mão sobre a cabeça de Rosita, retrucou: - Criança? Pois, aqui, só é mesmo criança a nossa Rosita, que o que faz é só gostar de ouvir histórias. Quanto a Isabel, esta, pode não ter muita idade, mas, se necessário, cuida de uma casa melhor que muita mulher que conheço.
-O que estás querendo dizer com isto, senhor meu marido? Perguntou Ana, correndo pela casa de brincadeira atrás de João, fazendo Rosita rir sem mais poder.
-Bem, Isabel, eu sou muito grata por tudo o que fizeste hoje por mim, mas agora é hora de ir andando que teus pais estão aflitos para contar-te uma grande novidade.
-Ana, não me diga que meus tios voltaram, disse a pequena, analisando a fisionomia de Ana, enquanto esta lhe vestia o casaco e ajeitava-lhe a boininha.
-Ah! Já sei, chegou carta deles, não é?...
-Não, menina, não é nada disso, falou Ana, enquanto saía com a pequena.
-O que poderá ser? Conta-me, Ana, ouviu-se Isabel implorar ao longe, quando já subia com Ana de volta à sua casa.
De nada adiantaram seus pedidos, pois que nada Ana lhe contou, até que, na varanda, ouviu, surpresa, um choro de criança e perguntou: - O que é isto, Ana? O que significa isto!
Entrando a correr pela casa seguindo o som daquele choro, entrou no quarto dos pais e já se jogava na cama deles como sempre fazia, quando foi segura de imediato por José que, enquanto a impedia daquele gesto, lhe dizia: - Esta é tua irmãzinha, Isabel...
A menina, chocada com o que via, e tomada pelo ciúme que a consumia, retrucou: - Como, papai? Esta coisinha miúda, feia e vermelha? Como isto que eu vejo, pode ser a minha irmã?
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Os pais, chocados, mais aturdidos ainda ficaram ao ouvir: - Onde está o tio Pedro? Ele prometeu encomendar uma irmã loirinha e de olhos azuis iguais aos dele. Essa criança é muito feia, podes levá-la de volta. Podes devolvê-la. Afastando-se do pai, empertigada, saiu do quarto, gritando: - Ana, Ana tu viste aquilo? Eles dizem que é minha irmã, miudinha e toda vermelha, mais parece um índio com aquele cabelo negro e arrepiado! É isso, então?! O tio Pedro nos mandou uma índia lá do Brasil. Não sei como ele pôde fazer isto comigo, disse virando-se para a porta, como que pensativa.
A menina chorava a pranto solto com a decepção que lhe causara seu tio Pedro. Ana, condoída pela pequena, sentou-se em uma cadeira e, puxando-a para o colo, falou:
-Vem cá, minha menina...
-Esse meu tio Pedro enganou-me mesmo, Ana, pois que nos mandou uma indiazinha para ser a minha irmã. Como ele pôde fazer isso? Como pôde?!
E chorava, naquele pranto desiludido.
-Seu tio Pedro não tem nada a ver com isto, minha pequena, todos aqui em casa não percebemos que cresceste e ficamos todos inventando historinhas, com medo de contar-te os fatos da vida, como é, por exemplo, o nascimento de uma criança.
Muito curiosa Isabel estancou de pronto aquele pranto.
-Todos os recém-nascidos são assim, pequenos e avermelhados, depois eles mamam bastante e vão crescendo e ficam mais e mais bonitinhos, a cada dia que passa.
A boa Ana explicava e consolava-a, passando-lhe a mão pelos longos cabelos.
-Conta-me, Ana, como apareceu esse bebê horrível, que dizem ser minha irmã?
Ana, respirando fundo, respondeu com muito jeito:
-Ora, pois, criança, que não ouviste ainda falar daquele pássaro de longo bico, de nome cegonha, que voa muito alto, trazendo os bebês?
-Ora, ora, mas é lógico que sim, Ana, respondeu Isabel, com convicção.
-Pois então, continuou Ana: - Do mesmo jeito que teus pais te encomendaram para a cegonha, encomendaram agora, a pequena Amélia.
-Amééélia?!... Exclamou Isabel. Mas que nome mais feio eles deram à pobrezinha.
Ana, achando cada vez mais difícil lidar com o assunto, sugeriu:
-Por que não vais até o quarto e ficas um pouquinho com tua irmãzinha. Assim verás que ela não é assim tão feia quanto parece; e saibas que ela tem os olhos azuis.
-É mesmo, Ana?
-Vais conferir por ti mesma.
-Olhos azuis?... Não me digas, Ana, então minha irmã é linda, não é?
-É, sim, minha pequena, é muito bonita!
Isabel, meio a contragosto, deixou aquele colo miúdo, mas aconchegante e, incrédula, dirigiu-se ao quarto dos pais, batendo de leve na porta.
José, abrindo-a, surpreendeu-se ao se deparar com a filha de olhos avermelhados e agora, timidamente risonha. Pegando-a pela mão, perguntou: - Adivinha Maria, quem está por aqui?
Maria, que ficara profundamente chocada com a reação da filha quando da primeira passagem pelo quarto, sentiu-se feliz em ver tão breve retorno, e pensou com carinho: “- Aí tem uma mãozinha de Ana, pois quem, por Deus, conseguiria acalmar tão rápido esta menina, se não ela?” Abrindo os braços, chamou pela filha: - Vem, minha querida, vem dar um abraço na mamãe que sentiu muita saudade, ficando longe de ti o dia todo.
Isabel correu para aqueles braços, reconhecendo que era tudo de que mais precisava naquele momento. Abraçando-se muito apertada à mãe, olhava em volta, procurando aquela coisinha horrorosa que tinha visto por ali, e chegou a dizer meio alto, como era seu costume: - Acho que foi um pesadelo...
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-O que pode ter sido um pesadelo, minha menina? Passar o dia, em casa de Ana? Perguntou-lhe a mãe, não entendendo o que poderia ter provocado tal afirmação.
-Oh, minha pequena, hoje cedo, quando ela veio pedir-me para deixar-te com João e Rosita, eu não pude dizer não, pois bem sabes o quanto é prestativa essa criatura conosco. E hoje, que ela precisava de ti, eu não pude dizer não.
Abraçando-se fortemente à filha, pois sabia a angústia que ela estava vivendo naquele momento, perguntou à queima-roupa: - Viste nossa bonequinha? Ela parece meio estranha agora, mas garanto que vai ficar tão linda quanto tu. E sabes que ela tem os olhinhos azuis, do jeitinho que querias?
-Ah! Então não foi um pesadelo? Dizei-me, mamãe, aquela coisinha feiosa, tem mesmo os olhos azuis? E, ansiosa, perguntou: - Onde está aquela coisinha fe... Isto é... Quero dizer, aquela coisinha miúda que me pareceu ver, quando entrei no quarto, agorinha há pouco?
José, que já estava atrás, portando a filhinha nos braços, chamou: - Vem, minha menina, vem conhecer nossa Amélia.
-Mas que nome feio escolhestes, ou isso é coisa do tio Pedro?
José, abaixando-se para que a pequena conseguisse ver a irmã, olhou para a esposa em pedido de socorro e ouviu-a dizendo, para seu alívio: - Amélia, não é um nome feio. Podes achá-lo feio porque ainda não nos acostumamos a ele, por isso, parece-nos assim tão estranho. E tem mais, minha querida, teu tio Pedro não tem nada com isso. Papai e eu escolhemos este nome para ela, da mesma forma que escolhemos o teu quando nasceste.
-Pois eu gostaria que ela chamasse..., sabeis como?... E, pensativa, logo concluiu: - Hum...hum... Ah! Já sei, gostaria que ela tivesse o nome de Rosa. Sim, isso mesmo, Rosa, o que achais, papai?
José, virando-se com toda a calma para a filha, respondeu: - Pois bem, se a mamãe encomendar outra filha poremos o nome de Rosa, não é Maria?
-Lógico, José, Rosa, pois que este é também um lindo nome, respondeu Maria, fazendo figas com os dedos das mãos, pois o de que ela menos gostaria no momento seria de ter outro filho.
Celeste, batendo na porta, entrou com o copo de leite a dançar na mão, contagiando todo o ambiente com sua alegria costumeira, entregando-o a sua patroa chamou: - Venha e vê, Isabel, que coisinha mais linda tenho nos braços, disse Celeste, enquanto tomava a filha, dos braços do pai, continuando a chamar: - Chega mais perto, ó menina difícil!... Vem ver de perto, bem aqui no claro, o quanto é linda esta coisinha!
-Coisinha? Nisso eu concordo, Celeste, mas linda?!... E, aproximando-se de Celeste e abaixando bem o tom de voz, foi logo dizendo: - Pois ouves uma coisa, nunca vi nada tão feio e pequeno em toda a minha vida.
Celeste, rindo, retrucou: - Pois vai chegar o dia em que esta coisinha vai conquistar teu coração; e fica certa de uma coisa, Isabel, pois que eu vou contar tudinho para ela, tudo o que disseste quando ela nasceu, tudo mesmo.
-Não me importa que contes, és uma fofoqueira mesmo, isto todos já sabem; o que eu quero ver é se ela tem mesmo os olhos azuis como mamãe falou.
-Pois olha, agorinha, ela acabou de abrir os olhinhos, disse Celeste que, ao se voltar e revoltada com a menina, afirmou: - Ficas aí perdendo o tempo com bobagens, pois bem feito, não viste ainda os olhos dela, porque agora tua irmã voltou a dormir.
-Ora, ora, pois que, além de tudo, teremos uma preguiçosa a mais nesta casa, retrucou Isabel.
-Vê lá o que estás falando, menina atrevida, pois eu não sou nada preguiçosa, não é D. Maria? Perguntou ansiosa, Celeste. Mas, sem esperar a resposta da patroa, completou: - Como também ficas tu sabendo, menina, que os bebês dormem muito para crescerem rápido, ouviste?
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- Chega de discussão, meninas, o bebê está dormindo, e a mamãe precisa descansar. Façamos o seguinte, falou José, quando percebeu que lidava com duas crianças: - Vamos pô-la aqui pertinho da mamãe enquanto ela dorme e, depois, quando acordar de novo, viremos correndo para que tu, Isabel, possas ver os lindos olhos azuis dela.
Após deixar o bebê ao lado de Maria, saíram, fechando a porta de mansinho. Na sala, o falatório recomeçou. Celeste, ingênua, discutia com Isabel que, com teimosia, dizia ser a irmãzinha muito feia e, para piorar, tinha um nome horroroso. Ana tentava em vão fazê-las calarem-se e, olhando para o patrão, pedia socorro.
José sentia-se muito cansado, porque o dia tinha sido extenuante. O parto fora difícil e só a perícia da parteira e amiga, Geralda, conseguira estancar a hemorragia. Graças a Deus agora tudo estava sob controle, e mãe e filha passavam bem. Mas, tomado de surpresa pelo olhar de Ana, levantou-se e, com um grito, o que era raro nele, pediu: - Parai as duas com essa discussão boba. Tu, Celeste, volta para o quarto para cuidar de Maria que ainda inspira cuidado e, tu, Isabel, vais já para o quarto, pois que também tiveste um dia muito trabalhoso.
Isabel, dando-lhe um abraço, ainda pendurada ao pescoço, perguntou: - O senhor ainda gosta de mim? Tenho medo que agora, chegando esta pequena...
-Ora, minha querida, como seria isso possível? Não és a princesinha do papai?
Pondo-a no chão e dando-lhe uma palmadinha de carinho, pediu: - Vai descansar agora, que amanhã me contarás tudo o que aconteceu na casa de João, pois pelo que me contou Ana, e pelos elogios que andei ouvindo, sinto-me muito orgulhoso de ti, minha filha. Agora, por favor, faze isso por mim. Vai para o quarto para que papai também possa descansar, pediu o José, despencando cansado na poltrona.
Isabel, percebendo o estado do pai e sentindo-se de repente também muito cansada porque o dia tinha sido muito cheio, passou-lhe a mão nos cabelos que começavam a ficar grisalhos, deu-lhe um beijo carinhoso e, com passos muito leves, foi para o quarto.
Dormia tranquilamente, quando, foi acordada por um choro incessante, persistente. Incomodava-a tanto aquele choro que a fazia virar-se na cama de um lado para o outro.
-Lá se foram nossas noites tranquilas. E, com o travesseiro sobre a cabeça, na tentativa de abafar aquele choro, a muito custo, voltou a dormir.
Na manhã seguinte, quando José chegou para tomar o café, só ouvia as lamentações da menina que reclamava com Ana a noite péssima que tivera.
-Papai, será que não existe nada que se possa fazer para parar o choro da Amélia durante a noite? Não tem jeito de se dormir tranquilo, com aquela trombeta nos ouvidos!
Ana, aborrecida com o que ouvia, interveio, dizendo com azedume irritando-a mais:
-Foste muito mais chorona e, ainda com tua voz esganiçada..., quando choravas valias por mais de cem bebês. E prepara-te para outras noites como a passada, pois um bebê demora a adaptar-se. Levaste dois anos chorando todas as noites e nenhum de nós reclamava da amolação que era fazê-la parar de chorar, não é patrãozinho?
-Ana lembra-te? Esta menina deixou-nos quase surdos com o seu choro irritante.
-Ah! E antes que me esqueça, esta noite deixamos que dormisses devido ao dia cansativo de ontem. Mas podes preparar-te que, de hoje em diante, metade das noites, será tua vez de ficar com Amélia, completou José, com voz determinada, saindo em seguida para evitar contestações.
Ana, sentindo que a coisa ia ficar séria, procurou voltar para a cozinha, antes que o falatório começasse. Sentindo-se revoltada com a decisão do pai, a menina saiu da mesa sem acabar o café e, resmungando alto, saiu à procura do amigo Quim.
Quim, após ouvir as lamúrias da menina, respondeu:
-Ana tem razão, Isabel, foste muito chorona, todos nós tivemos muita paciência contigo. Agora é a vez de ajudares tua mãe com o bebê, quando este chorar à noite.
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Isabel, que esperava outra resposta de Quim, decepcionada, pondo-se em pé, furiosa, disse com voz irritada: - Ora, pois, que gostaria de entender vós todos, Quim. Me é muito difícil, uma vez que, além de me porem de lado depois que nasceu a pequena, obrigam-me a trabalhar em serviços pesados de todo o tipo e ainda querem a minha colaboração para cuidar da pirralha durante a noite. Vê se dá para suportar tanta exigência, pois ainda sou uma criança, meu amigo, e me parece que todos esqueceram isso.
-Tu, criança, minha pequena? A menina diz ser ainda uma criança somente quando lhe convém. Pois, acho-te muita graça.... Acho-te muita graça, mesmo, completou Quim, sempre com falas diretas, que deixavam Isabel ainda mais nervosa.
-Tu, como todos, não entendes nada do que digo. Que saudades eu tenho de meus tios, que sempre estavam prontos a me proteger e defender quando era agredida.
-Ora, pois, que não vejo agressão alguma no fato de tua mãe precisar de ajuda com tua irmã durante a noite, pois que ela perdeu muitas noites contigo, retrucou Quim, com um sorriso, irritando-a ainda mais.
Batendo os braços contra o corpo, Isabel pôs-se a voltar para casa, jogando os fartos cabelos de um lado a outro, pensando, triste: “- Não tem jeito mesmo, sou totalmente incompreendida por todos desta casa.”
Quim, que a olhava afastar-se furiosa, deduzia preocupado: “- Pois que, então, tem muita razão Ana, quando diz que esta menina recebe muito de todos, mas que ainda não aprendeu a se doar. Pobre sr. José, que vi muitas vezes, enquanto pisávamos as uvas, a conversar com a filha na tentativa de fazê-la entender a necessidade da colaboração de todos para darmos conta do trabalho da Quinta, e a pequena, retrucando o tempo todo, dava sempre um jeitinho de logo sair, largando o serviço, alegando estar furiosa com o que o pai lhe dizia. Bem, uma coisa é verídica nas atitudes repetidas dessa menina, pois que está muito claro, desde muito nova, que ela nasceu para mandar e jamais para ser mandada”, ainda cismava o bom homem com seus botões, enquanto observava a linda e matreira menina, que já sumia de vista, entrando pela varanda da casa.
José que, sentado no alpendre, acompanhou a entrada da filha num grau forte de nervosismo com andar pesado e o bater dos braços de encontro ao corpo, pensou: “Quim deve ter dito algumas verdades para deixar a menina assim tão furiosa”. Num menear de cabeça optou em ficar ali, olhando para a propriedade que herdaram dos pais pondo-se a analisar as mudanças ocorridas desde a partida deles. O trabalho na Quinta, já bem difícil quando dividido por todos, agora, tornava-se estafante, principalmente para ele que, sozinho, além da Quinta, tinha que tratar da venda dos produtos, cuidar da contabilidade burocrática de tudo, e ainda cuidar das finanças da família.
E, assim, entre lamúrias e muito trabalho, os meses passavam e nenhuma notícia chegava do Brasil. O desgaste físico e mental era grande, e o sonho de um dia ir ao encontro dos irmãos era o maior incentivo. Na sobrecarga de atividades, José teve o auxílio do sogro Joaquim, de Quim e de João, que o surpreenderam com a capacidade de trabalho.
Com o sogro, devido à idade, nas lavouras pouco ou nada José podia contar, mas era de grande valia na contabilidade e no financeiro. Quim controlava com firmeza os lavradores, garantindo a qualidade das colheitas. João, que um dia fora jardineiro e ajudante geral, tornou-se excelente auxiliar de Quim em todas as funções da Quinta.
Maria dividia as tarefas do lar com a mãe e a dinâmica Ana e, procurava ajudar o marido na medida do possível, porque tinha a ajuda de Celeste para os cuidados com Amélia.
Isabel, que fora sempre mimada e cuja única preocupação até então era brincar e pavonear-se pela propriedade e pelo vilarejo próximo com seus vestidos maravilhosos de menina donzela, sentiu mais do que ninguém o quanto que a vida mudara desde a partida dos tios. Agora, requisitada pela avó para ajudá-la nos afazeres domésticos e pelo pai, nos campos, durante o plantio e a colheita, tornou-se ainda mais voluntariosa.
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Todos sentiam muito a falta de Antônio e Pedro, não só pelo trabalho como também pelo clima familiar, que até então de paz e alegria, tornara-se pesado, tenso e desgastante.
José, homem sensível demais, não conseguia lidar com essas mudanças porque, apesar de toda dedicação, ao sentir-se impotente em seu intuito, acabava abatido e triste.
O tempo continuava passando e nenhuma notícia dos parentes.
Isabel, ressentida com os tios, quase que diariamente escrevia-lhes longas cartas, onde desabafava o desapontamento por terem-na abandonado. “-Mas fazer o que com todas estas cartas?” Pensava Isabel, ao guardar mais uma em sua caixa forrada de tecido cor de rosa, que ela havia preparado para guardar as missivas que receberia dos tios.
Sem nenhum endereço para enviá-las, a decorada caixinha estava ficando abarrotada com suas próprias missivas, assim como seu coração estava pleno de incertezas e medos de que seus amados tios tivessem sido devorados por tribos canibais. “- Por que, meu Deus, por que meus tios tiveram que escolher uma terra tão distante e selvagem para aventurarem-se? Protegei-os, minha Nossa Senhora de Fátima, não permitais que nada de ruim lhes aconteça, porque isto iria matar-nos a todos”, rezava Isabel e, esperava, esperava por notícias, dia após dia. Sua revolta imensa deixava os pais muito preocupados.
José e o sogro iam sempre que possível ao Continente, à procura de pessoas que tinham parentes no Brasil para saber se em suas cartas havia indício do paradeiro dos irmãos. Ansioso e cada dia mais abatido, José mal conseguia disfarçar a tristeza. Maria e os pais acompanhavam de perto aquele sofrimento, mas nada podiam fazer para amenizá-lo. Esgotadas todas as fontes de contato por notícias, não tinham mais a quem recorrer.
Até que Joaquim, quando de visita ao compadre Felipe Cortez, em Sintra conseguiu com ele o endereço do afilhado, que, depois de muito percorrer a Nova Terra, estabelecera-se com uma padaria na cidade de São Vicente, no litoral do estado de São Paulo. Retornando para casa, Joaquim, munido desse endereço e muito esperançoso, pôs-se logo a escrever a Felipinho, assim chamado por ter recebido ao nascer o mesmo nome do pai. Na carta, pedia que procurasse por seus parentes que há mais de ano haviam partido para o Ocidente, sem enviar notícia alguma até então; remeteu-lhe ainda uma razoável importância em dinheiro, para que não medisse gastos na busca e, sem comentar nada com os familiares, aguardava com ansiedade uma resposta.
Passados alguns meses, Joaquim tinha quase perdido a esperança até de que sua missiva tivesse chegado ao destino e, eis que recebe com surpresa, a visita dos compadres com a netinha Fátima, para alegria de Isabel, que foi logo puxando-a para o quarto, a fim de trocarem confidências e participarem uma à outra, as novidades.
Em meio aos cumprimentos, Felipe entregou discretamente para Joaquim, a carta do filho, recém-chegada do Brasil. A vontade de Joaquim era sair em disparada para ter conhecimento do encontraria ali, mas sabendo que não seria de bom-tom fazer tamanha desfeita aos compadres, e que também despertaria curiosidade nas mulheres, paciente, esperou.
Conversando de tudo um pouco, as famílias que sempre tiveram um ótimo relacionamento, trocavam prosa animada, interrompida somente quando vinha do quarto onde estavam as meninas aos cochichos, as gargalhadas sonoras de pura felicidade, mais pelo fato de estarem juntas do que propriamente sobre o que confidenciavam. A felicidade de todos, era grande.
Joaquim, com uma piscadela a seu compadre, sorrateiramente, com a desculpa de pegar um bom vinho na adega, conseguiu sair da sala. Assim que pôde, abriu a carta com tamanha rapidez que quase a rasgou e, conseguindo enfim livrar-se do selo, pôs-se a ler afoitamente. Foi tão rápida sua leitura que, ao fim, precisou ler por uma segunda vez, para conseguir compreender melhor tudo o que ali era contado. Para seu alívio, aquela esperada resposta não trazia notícia de escalpelos dos canibais.
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Sentando-se em um tonel, agora menos aflito e com toda a tranquilidade, leu novamente a carta, sentindo, ao final, grande esperança de ver, talvez em curto prazo, terminada a angústia de seus familiares. Felipinho afirmava estar fazendo todo o possível para conseguir o paradeiro dos amigos, mas que até então nada tinha de concreto a informar.
Sentindo-se acabrunhado, Joaquim continuou com a leitura e logo nova esperança encheu-lhe o coração ao saber que Felipinho, através de um freguês e amigo, tomara conhecimento de certos irmãos Gonçalves, que por algum tempo haviam trabalhado como capatazes em uma das fazendas de café, no interior do Estado de São Paulo, próximo à capital.
Terminando, convidava a todos que, quando passasse o período de angústia e expectativa, fossem ao Brasil para uma visita a fim de conhecerem não só a família que constituíra, mas também a maravilhosa cidade que ele escolhera para se estabelecer. “- Aqui, padrinho, o sol é constante, o clima é tropical, os frutos são doces e suculentos, as águas potáveis das pedras jorram em abundância, e a tranquilidade do mar límpido e cristalino dá uma beleza incomum à baía de São Vicente. Isto tudo, padrinho, sem falar das belezas naturais deste país maravilhoso. Se começasse a descrevê-las, jamais conseguiria terminar esta missiva”. Despedia-se com abraços saudosos e dizia ainda que pedia a Deus, em orações, que não estivesse dando falsas esperanças a essa família tão querida.
Joaquim tinha lágrimas nos olhos pela saudade do jovem corajoso, que havia partido tão novo e tão logo se estabelecera no Ocidente, passando sabe-se lá por quantas dificuldades e aflições, até abrir a sua padaria, ramo em que tinha muita experiência, pois desde menino sempre ajudara o pai, conhecido em Sintra como Felipe, o Padeiro. Por outro lado, seus olhos estavam marejados também por perceber que aquele simples papel alimentava-lhe a fé e a confiança de que seus parentes estavam bem, não sabia aonde, mas seu coração lhe assegurava que eles estavam bem! Com essa certeza o rosto desanuviou-se, mas, resolvido ainda a não contar nada à família para poupá-la de decepção, escolheu um vinho que considerava de excelente safra e, mais esperançoso, voltou à sala.
A conversa corria solta e Joaquim, no umbral da porta, bendizia àqueles compadres que, pelo simples fato de estarem ali, traziam um pouco de alegria a sua família.
Maria, percebendo logo a presença do pai com a garrafa de vinho, levantou-se para pegar os copos para que bebessem em brinde aos amigos muito queridos.
Felipe, dando Graças a Deus, percebeu pela expressão de Joaquim que a carta continha boas novas e, relaxando, pôs-se em pé, para brindar com os amigos.
Joaquim, voltando-se para Maria, pediu: - Ó mulher chama cá, pois, aquelas meninas que só fazem rir, para que venham brindar conosco este momento de alegria.
José, que já ia contestar aquele convite às meninas, foi de imediato bloqueado pelo sogro, que lhe pondo a mão no ombro falou, calmamente: - Aquieta-te, José, pois sabes que tua menina já é crescida, como também, já percebi de longa data, que tens conhecimento de que essa pequena, que consideras muito nova para beber, me tem sido de grande valia na degustação dos vinhos dos tonéis.
-Pois ficas sabendo que este conhecimento é obra de Antônio, que sempre a tinha por perto em todos os seus afazeres, e que nisto, a menina aperfeiçoou-se com o senhor.
José, por ter conhecimento desse fato desde sempre, preocupava-se, porque, para ele, a filha era muito nova. Mas deixando os temores de lado e vencido pelos argumentos do sogro, com um gesto de cabeça consentiu ao reconhecer ser aquele um dia muito especial.
Felipe foi chamar as meninas que, entre risos e conversas, aceitaram de pronto brindar a alegria que Isabel há muito não via naquela casa. E reunidos, com o cálice nas mãos e os braços estendidos iam fazendo o brinde, seguido do tocar dos copos em vibração.
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Isabel, ao brindar, levantou seu cálice olhando para todos e falou com voz embargada pela tristeza que abrigava no coração: - Este é por meu querido tio Antônio que em algum lugar do Ocidente deve estar. Brindando e sorvendo o líquido de um só gole, para espanto do pai, entornou mais vinho em seu cálice e, repetindo o gesto de brindar, continuou:
-Este é por meu tio Pedro, para que ele não tenha sido servido como petisco àqueles canibais. Bebendo de pronto, voltou a pôr mais vinho no cálice e, em prantos, falou: - Este é para que eles não tenham se esquecido de nós e que estejam bem onde estiverem. E virando novamente o líquido de vez garganta abaixo, com os olhos marejados, saiu em disparada para o quarto, trancando a porta.
Fátima correu atrás da amiga e, não a alcançando, batia na porta e pedia:
-Abra a porta, Isabel, vamos conversar. Deixa-me entrar e vamos falar sobre o vestido e a festa do meu aniversário de treze anos.
Isabel, ouvindo as palavras vestido, festa, enxugou de pronto as lágrimas puxando a amiga pelo quarto adentro. Da sala, todos ouviram quando perguntou, ansiosa: - Quando será, Fátima? Vai mesmo ter festa? Vamos lá, ó menina, conta tudo.
Os adultos, aliviados, sentavam-se para mais um dedilho de prosa, quando ouviram Isabel afirmar com grande convicção à amiga: - Podes crer, Fátima, farei de tudo para que papai me leve à tua festa... Farei de tudo!
Rindo, Felipe comentou: - Pois não é estranha a capacidade que possuem os jovens de interpor tristeza e felicidade? Pois, prepara-te, José, que, pelo pouco que ouvi tudo será feito para que a leves à festa de Fátima.
Ao que Maria respondeu com um forte tom de censura: - Tenha a certeza, Felipe, de que Isabel irá ao aniversário de Fátima, pois não há o que o pai não faça para satisfazer os caprichos desta menina. E deixando de lado tudo que pudesse toldar a alegria das famílias, continuaram proseando. As mulheres, quando não sorriam das gracinhas de Amélia, falavam baixinho e riam juntas, ou deixavam escapar uma exclamação, como que chocadas, com o que acabaram de ouvir.
Os homens por sua vez, bebendo, depois de comentarem a carta de Felipinho, começaram a contar piadas, e aí, era só risada. E assim passaram momentos maravilhosos, até que Ana avisou que o jantar estava servido. Após a refeição, os amigos, cansados, logo se retiraram para repousar, no que foram seguidos pela família.
Maria, que não conseguia dormir com a prosa e as risadas das meninas no quarto ao lado, levantou-se e foi até lá. Abrindo a porta deparou-se com as duas de camisola, sentadas na cama de Isabel que, abraçada ao travesseiro, ria, curvando-se, enquanto dizia: - Ah! Fátima, pois que por esta eu não esperava, amiga! Logo com aquele pau de vira tripa de tão alto a menina foi envolver-se?
-Não ri Isabel, não ri, pois que assim deixas-me muito triste, amiga.
-Desculpa-me, Fátima, mas, como diz Ana, com as coisas do coração não se brinca. Desculpa-me, mas bem que podias arrumar...
-Desculpo sim, Isabel, mas tu é que bem podias...
-Podia, sim, é voltares para a sua cama, Fátima, e as duas tentarem dormir, para que todos da casa possam fazer o mesmo, interrompeu Maria, entrando no quarto esperava as duas se deitarem, para cobri-las e beijá-las.
-Uma boa noite e não quero ouvir nem mais um pio, entendestes, meninas? Tenho certeza de que o resto dessa prosa pode esperar até amanhã, portanto, tratem de dormir, completou Maria que, ao fechar a porta do quarto, surpresa, ouviu: - Tua mãe é muito legal, Isabel.
-Legal? Ora, pois, que se minha mentora ouvir-me usar tal gíria vai deixar mamãe nada legal, com o tanto que vai lhe encher a cabeça, devido à pobreza do meu vernáculo, respondeu Isabel, que, cismando por alguns minutos, concluiu:
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-Gíria ou não, eu concordo contigo, pois mamãe é muito legal, Fátima.
-Boa noite, Isabel.
-Boa noite, Fátima.
Sorrindo e meneando a cabeça, Maria, ao deitar-se ainda sorria, lembrando a expressão usada pelas meninas. “-Então, eu sou uma pessoa legal. É ótimo saber que as meninas acham-me uma pessoa, legal. Legal... Realmente, este termo não faz parte de meu vocabulário, a não ser na exata acepção da palavra ´legal´, mas, jamais como palavra que dê qualidade específica a uma pessoa”, pensava Maria, chegando à conclusão de que a gíria expressa os sentimentos com muito mais objetividade que as palavras convencionais, que muitas vezes soam falsas, demagógicas, além de muito formais. “- Tua mãe é uma pessoa muito, boa.” Fátima poderia ter usado esta expressão, mas, não me daria a felicidade que me fez sentir, usando a palavra ´legal´, que me parece muito mais abrangente: legal, amiga, compreensiva, companheira e outras mais. Por outro lado, a palavra boa não passa de uma concepção exata da palavra “boa”.
Maria virava-se na cama procurando uma posição ideal para dormir e ainda cismava: “-Legal. Quando iria eu imaginar que esta palavra seria usada para algo mais que não fosse, legítimo, lídimo e legal, dentro da concepção do próprio termo. Essas crianças têm cada uma!...”
No dia seguinte, o desjejum foi algo que há muito tempo aquela casa não vivia. A alegria das meninas, que falavam e riam o tempo todo contagiava os adultos, que sentiam pena de precisarem separar-se, pois que a vida os chamava para a lida de cada um.
-Seria maravilhoso se os compadres ficassem mais dias conosco, disse José.
-Seria de muito gosto para nos ficarmos, mas, infelizmente, precisamos partir, pois que deixei assuntos pendentes a serem concluídos ainda esta semana. Mas vos esperaremos em nossa casa, quando então teremos a oportunidade de retribuir tão agradável hospedagem.
Restou, então, uma sensação de vazio. As mulheres voltaram aos bastidores como se, com eles, pudessem preencher o cavo que as acompanhou depois da partida dos amigos.
Os homens, por sua vez, impotentes para desanuviar o ambiente, pegaram os chapéus da chapeleira e, num andar vagaroso foram saindo para trabalhar. Isabel, não querendo perder tempo, aproximou-se do pai, puxou-o, sentou-se em seu colo e, enquanto fazia-lhe carinhos no rosto miúdo, pedia, com seu jeitinho faceiro: - Papai, o senhor vai me levar à festa de aniversário de Fátima, não é? Dizei que sim, por favor!
Maria, trocando um olhar com a mãe, resolveu intervir.
-Vamos lá, Isabel, deixa teu pai em paz, tivemos momentos agradáveis com nossas visitas, filha, mas agora, a vida continua. Vamos, pois, ao trabalho, menina, vamos.
Isabel, muito irritada com a mãe, pegou a cestinha de vime e sentando-se, furiosa, murmurou: “- Um dia, um dia ainda vou sair daqui. Sair desta Ilha insípida e desta vida boba!” Achando que o que dizia não podia ser ouvido por ninguém, continuou descarregando a raiva em frases que demonstravam egoísmo, ingratidão e revolta, espantando-se ao levantar os olhos e deparar com todos a olhá-la, muito chocados. Percebendo que tinha ido longe demais, apelou para a técnica que considerava infalível: batendo em retirada, correu para o quarto, em pranto desesperado. Chegando lá, jogou-se na cama simulando soluços de um choro convulsivo, e chorava e soluçava. E de novo, chorava e soluçava... E, chorava de novo, soluçava, esperando..., esperando... E nada... De repente, percebeu que aquilo não funcionava mais, pois ninguém veio consolá-la como sempre acontecia quando aprontava aquela cena dramática. “- Preciso pensar em algo”, dizia a si mesma; - “Preciso pensar, pois acho que estraguei tudo, desta vez. Tenho de fazê-los esquecer o que ouviram, se é que ouviram”.
Lembrando que a pequena Amélia havia descido com Ana logo depois do café da manhã, para que todos pudessem conversar e se despedirem sem a preocupação de olhar pela menina, pulou da cama, ajeitou a roupa e, saiu do quarto. E, esgueirando-se pelas paredes para não ser vista, murmurava enquanto descia em disparada até a casa de Ana: “- É isso aí, minha pequena Amélia, chegou a hora de retribuir o que tenho feito por ti”.
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Tomando a pequena no colo, rodopiava com a irmã, fazendo festa. Ana, estranhando a atenção com que a irmã lidava com Amélia, murmurou, acompanhando da porta, as meninas que subiam: “-Aí tem coisa!... Ahhh!!!... Que aí tem água nesse bico!”
Isabel subia com Amélia, muito feliz com as brincadeiras que a irmã lhe fazia. No quarto, ajeitou-a, deixando-a uma bonequinha e entrou na sala chamando a atenção e causando muita estranheza, pois que nunca dera muita atenção à pequena.
- Ora, pois, vede quem chega com Amélia! Exclamou Maria que, cismada, inquiriu: - Poderias dizer-me aonde pensas ir e levar a pequena arrumada desse jeito?
- Ora, mamãe, eu sei que tenho muitas coisas para fazer, mas, no pouco tempo que tiver disponível, pensei em dedicar-me um pouco mais a Amélia, com quem pretendo fazer grandes passeios. É tão bom ter minha irmã... Ouvir a Fátima se queixar por não ter uma, fez-me pensar no pouco que tenho convivido com a minha miúda.
- Ah! Então era sobre tuas saídas, tuas saídas com Amélia, que resmungavas a pouco, deixando-nos a todos tristes e preocupados?
- “Bingo, deu certo”, pensou Isabel, a rodar pelo recinto com a irmã, tirando-lhe gritinhos de felicidade.
Ao ver o pai ir para o escritório, foi-lhe ao encontro e, com Amélia no colo, disse: - Percebo-o hoje meio cansado, papai. Eu farei a expedição dos cereais com a ajuda do vovô. Hoje deveis tirar o dia para descansar, e não vos preocupeis com nada.
- Descansar!... Quem me dera pudesse, pequena! Mas não nego que tua ajuda será muito bem vinda. Preciso estar nos canteiros para acompanhar a colheita da aveia.
- Não vos preocupeis com a parte burocrática, que cuidaremos disso, não é, vovô?
- Com certeza que sim, Isabel. Tu até que poderias cuidar disso sozinha, menina, pois que muitas vezes acompanhaste-me nessa função.
Maria, olhando para a mãe, comentou em tom desalentado: - Pois é como sempre vos digo, mamãe, o que esta menina não faz para fugir dos trabalhos! Ora, pois, onde já se viu preferir trabalhar no escritório, que é próprio para homens, ao invés de empenhar-se em sua educação, cultura e prendas domésticas.
José, ao ouvir aquele comentário, com um sorriso, retrucou: - Pois a mim, muito me alegra ter alguém que me ajude nessas tarefas, Maria. E nem por isso esse trabalho tornará nossa menina menos faceira e feminina do que já é.
- Quanto a mim, afirmo-lhes que estar com a pequena quando vou à capital só me aceleram as transações comerciais, pois que, por diversas vezes, com a sua intervenção, consegui fechar rápido excelentes negócios. A menina parece que tem o dom da palavra e quando está à frente de um guichê de qualquer órgão publico ou de banco, as pessoas logo acorrem a atendê-la em seu pedido, pela forma carismática de abordagem que possui, afirmava o avô.
- Pois essa inteligência, esse carisma, tudo o que dizes, papai, é a razão de muitas das minhas preocupações no que diz respeito à minha filha, comentou Maria.
- Pois deixa disso, mulher, que muito me apraz a desenvoltura de nossa filha, pois que, se tivéssemos tido um filho homem...
- Homem, mulher, isto agora não importa, papai, o senhor teve a mim, e serei eu que, de hoje em diante, o ajudarei no que precisar, concluiu Isabel com determinação.
- Pois tu, José, ficarás surpreso com o potencial de tua menina. É ver para crer, afirmava Joaquim, chamando a neta: -Vamos lá, pequena, que a manhã já quase passou, e temos muitas coisas a fazer.
Isabel beijou o rosto rosado de Amélia e entregou-a para Celeste, dizendo: - Vai com ela, minha bonequinha, que logo brincaremos mais um pouco. E, voltando-se para o pai, insistiu: - Quanto ao aniversário de Fátima, nós iremos não é mesmo, papai? Tenho certeza de que Amélia vai adorar o passeio.
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José, vencido, olhou para a esposa e murmurou: - Bem... Talvez... Quem sabe?...
Desse dia em diante, Isabel tornara-se a sombra do pai e do avô. Ela trabalhava com eles no escritório, nos canteiros, nas vindimas e os acompanhava nos negócios em Funchal, para desespero da mãe, que, aflita, esperava o retorno dessas andanças.
Certa ocasião, José entrou em casa, nervoso e, com passos firmes, dirigiu-se à filha que, tranquila, bordava junto às mulheres enquanto trocavam uma prosa brejeira.
- Pois acabei de cruzar com Olímpio, que me contou ter estado aqui e que tu, Isabel, recusaste o pagamento que ele veio fazer da terra que ocupa. Como pudeste tomar tal atitude? Acho que teu avô e eu a superestimamos demais, deixando-te nos negócios.
Isabel largou o trabalho, levantou-se e olhando para o pai, respondeu: - Lógico que sr. Olímpio vos contou minha recusa, mas omitiu as razões que me levaram a fazê-lo, uma vez que ele trazia apenas um terço do valor que nos devia e tentava pagar-nos o restante com sacas de produtos de suas lavouras.
-Mas, minha filha...
-Bem, papai, se achas que agi errado, da próxima vez farei o recibo do pagamento integral, mesmo que não tenhamos lugar para armazenar o produto do pagamento. Ora, pois, papai, eu tenho acompanhado a dificuldade que tem sido para comercializar nossos próprios produtos, e aceitar mais aquelas sacas seria muito contra producente. Ainda mais com safra da aveia deste ano com o preço da saca a cair dia a dia, pois que a demanda é bem maior que a procura. E tem mais, se a moda pegar, imaginas o quanto será cômodo para nossos arrendatários, pois que, pouco ou nada terão que se preocupar com o pagamento das terras, pois que o bondoso sr. José aceita qualquer proposta como pagamento.
Vencido pelos argumentos da pequena, Joaquim voltou-se para o genro e falou: - A menina tem razão, José. Ademais, pelo que eu soube, ela apenas pediu a Olímpio que tentasse vender sua produção na capital e depois retornasse.
-Certo, certo, sr. Joaquim. Estou ciente de que nossa menina tomou a atitude mais correta, coisa que eu e nem o senhor teríamos coragem de fazer, pois que ficaríamos compadecidos pela situação difícil de Olímpio.
-Tens razão, José, mas tenho comigo que nossa Isabel é muito amadurecida para a pouca idade que tem.
-Nisso eu também concordo, sr. Joaquim. Mas se ela assim se desenvolveu foi por a trazermos sempre conosco desde muito nova. A começar por Antônio, que não perdia a companhia da menina nem mesmo nas ocasiões de trabalho.
-É fato, meu genro, isto é um fato, mas, o que me intriga nela é a capacidade que tem de mesclar a infantilidade que teima em conservar e a maturidade que nos demonstra.
-Isabel é uma criatura muito complexa, comentou José cismado.
Passaram-se dias, meses, chegaram as festas de fim de ano, Isabel, mais crescida, e Amélia já andando, e nada de notícias dos viageiros.
Isabel via chegar outro aniversário que iria passar novamente sem os queridos tios, e o que para ela era muito pior, sem seus presentes maravilhosos. A menina se desesperava e punha-se a cobrar do pai a promessa de levá-la ao Brasil.
-Minha filha, como nos poderemos chegar ao Ocidente, àquele continente enorme, sem sabermos o paradeiro de teus tios? Filha procura entender, ora, pois! Vê, menina, João Antônio, filho de Guilhermina, partiu com destino ao Brasil como tantos outros e sabemos hoje que acabou nos Estados Unidos, ao travar conhecimento com jovens italianos que iam para lá. Aquieta-te, pois, minha filha, que de uma hora para outra teremos notícias, afirmou José, como querendo convencer mais a si mesmo, do que à filha.
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- Mas, papai! E meu aniversário..., meus presentes... Ao que José paciente, falou: - Aquieta-te, ó menina, pois se houver presentes, eles os enviarão. E batendo em retirada para cortar de vez aquela prosa que muito o entristecia, ouviu a resposta que a seus ouvidos chegava como se fosse um raio: - Os presentes chegarão? Ora, pois sim!... Só se for o cocar de algum cacique ou mesmo o escalpelo do cabelo deles, gritou Isabel, entrando no quarto aos prantos.
As mulheres, com bordados entre as mãos, e Joaquim, com o cachimbo entre os lábios, no canto da boca, ficaram espantados ao ouvirem o tamanho despautério da menina.
“- Queira “Deus que nada disto tenha acontecido com os meninos”, apesar de reconhecer, que isso não seria difícil de acontecer, haja vista o que se ouvia falar da selvagem Terra Nova”, pensava D. Emília, enquanto fazia um sinal da cruz. “Valha-me Deus, que nada tenha acontecido àqueles moços!”, pedia com toda sua fé a Nossa Senhora de Fátima.
Passados quase dois longos anos desde a partida deles chegou, certa noite, um mensageiro do correio com um pacote de cartas e mais algumas caixas dos mais variados tamanhos, que haviam extraviado.
Grande noite aquela! Felicidade não seria o termo apropriado para definir tanta alegria. Mal conseguiram despachar o tal mensageiro que parecia estar louco para mais um copo do delicioso vinho verde que lhe fora oferecido. Joaquim, com sinceros agradecimentos, deu-lhe logo a garrafa e o acompanhou até a porta, sem conseguir esconder a ansiedade para que aquele jovem batesse em retirada logo. Sem esperar por ele, que há muito custo conseguiu desvencilhar-se do tal mensageiro, começaram a conferir o amontoado de cartas.
“-Abençoado menino”, pensava Maria.
-Que Deus o abençoe sempre, pela felicidade que nos trouxe hoje, disseram as mulheres em uníssono, enquanto desatavam a fita que prendia o feixe de cartas.
Todos se puseram a ler afoitamente aquela enorme quantidade de missivas, enquanto Isabel punha-se a abrir em delírio todas as caixas, descobrindo que os amados tios não tinham se esquecido dela, porque, mandavam-lhe lindos vestidos com maravilhosos adornos com sapatos e bolsas combinando. Quando, um grito de tristeza chamou a atenção de todos: - Vede isto! Sapatos de lacinhos e fivelas, ora, pois. E estes vestidos maravilhosos! Eu jamais poderei usá-los, dizia inconformada, ao constatar que não ocorrera aos queridos tios que ela crescera e, pelo visto, para eles, ainda era a criança que deixaram aos prantos, no Cais do Porto do Funchal.
Como, seus tios, após todo aquele tempo, não lembraram que ela agora, já com doze anos, havia se tornando uma moçoila? Hoje ela era alta, magra e de cintura fina. Abrindo mais e mais pacotes, feliz, mas ao mesmo tempo triste porque esperara por tanto tempo aqueles presentes, que não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo com ela. Os vestidos eram lindos: branco, azul, outro rosa com babados de rendas, assim como os saiotes. Porém todos eles com as fatídicas, extensas e largas tiras que lhe davam a volta pela cintura e arrematavam nas costas, com lindos laçarotes de pontas caídas sobre as amplas saias, mas que agora, além de muito apertados, batiam-lhe pelo meio das canelas.
E os sapatos! Nenhum deles lhe servia, porque, além de pequenos, traziam todos, as famigeradas tirinhas de abotoamento, que ela detestava. “- Não acredito! Eles estão a fazer troça comigo,” pensava desconsolada Isabel, em meio a todas aquelas caixas de presentes inúteis.
Os dias que se seguiram àquela entrega, foram dias que todos da família passaram a ler, uma a uma, as cartas daquele acumulado. Os comentários eram constantes, ora faziam rir, ora arrancavam lágrimas, pelos momentos difíceis que os rapazes vivenciaram.
José, apesar de ansioso pelas notícias dos irmãos, não descuidou do trabalho na Quinta; porém, ao entardecer, todos os dias, ele não estava para ninguém, porque, sentado no alpendre ou no escritório, ficava por horas a fio a ler e reler as abençoadas cartas.
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Todos as respondiam com muito carinho, contando as novidades e principalmente comentando os tempos de desesperanças e medos que sofreram pela falta de notícias. Maria não sabia se abençoava ou não aquelas cartas, porque o marido, desde então, encontrava-se mais pensativo, cansado e abatido.
Porém não era o trabalho pesado que mais cansava e entristecia José, mas a vontade de ir ao encontro deles, que confirmavam as maravilhas do novo país e a facilidade com que se estabeleceram. Eles compraram uma grande propriedade na cidade de São Paulo, onde construíam um casarão, com muitos quartos, banheiro completo, várias salas, uma capela, jardins internos, um salão de festas com varanda para as meninas bailarem e uma ala para os criados e colonos nos porões.
Para a construção, eles encomendaram ladrilhos e azulejos, assim como janelas e portas em palheta portuguesa, tudo em madeira de lei, com vidros em cristal biseauté.
Maria, que acompanhava de perto a tristeza do marido a cada carta que chegava, morria de medo de atravessar o Atlântico em viagem tão longa, e também não sentia a menor vontade de aventurar-se com as filhas por lugares desconhecidos.
Isabel por sua vez estava entusiasmada com a possibilidade de viver essa aventura e ficava pelos cantos da casa, a sonhar com a possibilidade de ir ter com os tios. Faceira que era nos seus doze anos sonhava em viver naquele casarão, pois que, pelas encomendas dos materiais que enviavam, aquela casa deveria ser um verdadeiro palacete.
O tempo foi passando e os medos e sonhos de cada um ficavam mais fortes a cada missiva que chegava. Certo dia chegou uma convidando-os para irem ao Brasil, pois já estavam bem instalados. Na carta afirmavam que nada faltaria à família, e até um excelente colégio de freiras havia por perto, para que Isabel e Amélia fizessem os estudos.
A missiva deixou José muito animado, enquanto Maria apavorou-se por não ter argumentos suficientes para convencer o marido a não se aventurar naquela empreitada.
Isabel, para desespero de Maria, incentivava o pai a aceitar o convite. José, que não conseguia dizer não à menina, tentava tranquilizar a esposa, dizendo que seria apenas um passeio para matar as saudades dos irmãos.
E, assim, feliz por sentir que vencia aos poucos a grande resistência da mãe, Isabel, em seu quarto, perdida em sonhos, pensava: “- Tarde não está o dia em que estaremos todos a bordo de um transatlântico, atravessando o imenso oceano para ir ao encontro de meus queridos tios num palacete de eira e beira, construído em terreno plano, amplo, onde poderei andar e galopar com o meu Fuzarca, sem cair pelas ribanceiras”.
Espreguiçando-se com um sorriso feliz, continuando em seus devaneios: “-Se, ao chegar lá, eu conferir a verdade das maravilhas que eles nos contam, realizarei meu grande sonho! Tornar-me-ei uma bela donzela e serei cortejada pelos filhos daqueles ricos coronéis!”
Tudo lhe parecia fascinante, mas o melhor mesmo seria ter novamente com ela o querido tio Antônio. Será que ela ainda seria, para ele, a sua Isa, como a chamara naqueles momentos que passaram tão juntos um do outro? “- Não. Acho que ele já esqueceu aqueles momentos, e alguma sirigaita muito bonita já o deve ter fisgado.”
E ali, com uma forte pontada no coração, Isabel sentindo-se entristecida, deu de ombros e continuou divagando, pensando e sonhando, sonhando com a vida nova e o encantado novo mundo, no Brasil. “-Lá terei meus tios, criados, dinheiro, beleza, homens.” E por vezes, levantando-se da poltrona, falava em altos brados com empolgação, enquanto simulava uma dança de salão, sonhava que era levada por um rico, belo e formoso rapaz. E de olhos fechados, como em transe, rodopiava e rodopiava feliz em sua dança.
Ela iria convencer a mãe a aceitar o convite dos tios. E assim, Isabel propôs-se a lutar por isso; e como ninguém conseguia dizer-lhe não, já contava como certa a ida ao encontro deles.
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Ah, sim! Com certeza ela realizaria todos os sonhos, pois que, quem esperasse veria como assim seria. E muito em breve. Tão entretida estava em devaneios, que mal ouviu quando a mãe entrou no quarto e pediu:
-Isabel, para de ficar aí sonhando e vai ajudar teu pai na adega, pois que, já há algum tempo que deixas de dar tua contribuição nos afazeres da casa e do campo.
-Sim, mamãe, tendes toda razão em vossa reprimenda, mas o que posso fazer, se desde que começamos a receber as cartas dos tios não consigo pensar em outra coisa? Ficai tranquila que, de hoje em diante, voltarei às minhas tarefas, uma vez que de nada vale sonhar com o impossível, não é?
Trocando de roupa ali mesmo, na frente da mãe, que no momento parecia-lhe totalmente aturdida, completou: - Pois vede, mãezinha, que estou pronta e já estou indo para o trabalho. Pegando o famoso chapeuzinho e dando um beijo estalado na face de Maria, saiu pela porta da cozinha, dando um belo encontrão com Ana, a quem disse, com rispidez: - Olha por onde andas, mulher!
Celeste, que brincava com Amélia, ouvindo o que fora dito pela menina, perguntou:
-Que bicho a mordeu hoje, minha patroinha?
-Não sei, pequena, juro que não sei, respondeu Maria, com os olhos fixos na porta, por onde tinha saído a filha.
-Pois, para mim, esse comportamento não é mais novidade, disse Ana, com seu jeito despachado. E tem mais, ficai alerta que esta menina está armando alguma coisa, e já há algum tempo. E, voltando para a cozinha, resmungava: “- Esta pequena nunca me enganou, alguma coisa vem por aí, é só esperar!”
Isabel, chateada com o que dissera para Ana, descia, falando com seus botões: ”- Acho que hoje fui muito grosseira com a pobre Ana. Bem... Depois, depois eu penso nisso, agora preciso concentrar-me em como começar a influenciar papai para a viagem...”
Quim, que subia, não pôde deixar de ouvir o que dizia a impetuosa menina e falou:
-Para a senhora, isto não será nada difícil.
-Ora, pois, que então meu amigo Quim fica por aí, meio escondido, a escutar o que é dito pelas damas, pois não? Arreliou-o Isabel, com as mãos na fina cintura, enquanto batia no chão o pé direito, demonstrando desagrado.
Quim, percebendo que a aborrecera, desculpou-se e falou: - Ora, pois, minha patroa, que eu vinha tranquilo pela encosta, quando me vi obrigado a parar para dar-lhe passagem, o que me fez ouvir o que era dito pela menina.
-Deixa isto pra lá, Quim, e, diga-me cá, meu amigo, qual o porquê da mudança de tratamento, se nunca me chamaste de patroa? Por que isso agora, Quim? Perguntou, olhando-o, cismada.
Quim, com o olhar perdido no vazio, demonstrando a tristeza que sentia, murmurou: - É que a minha menina mudou.
-Ora, Quim, deixa de cismas bobas e confirma se é certo o que ouvi dizeres, em meio aos resmungos. Tu achas que vai ser fácil eu convencer papai a levar-nos para o Brasil? Perguntou a pequena, com ansiedade.
Quim, sem responder, olhava-a apreensivo. Ela sempre conseguira tudo o que queria e não seria daquela vez que a argúcia e tenacidade dela iriam falhar.
-Acho-o hoje muito estranho, Quim, mas deixas pra lá, pois que agora vou ajudar papai e, por nada deste mundo quero perder a oportunidade de, com jeitinho, convencê-lo a fazer essa viagem, concluiu, descendo a correr os poucos degraus que a separavam da adega.
Quim, olhando-a se afastar, pensava inquieto:
“- Este teu jeitinho!... Pois é, exatamente neste teu jeitinho, pequena, que paira a minha enorme preocupação”.
Assim, aqui ficaram os Capítulos para Apreciação deste livro.
Não deixem de postar seus comentários.
A crítica é muito bem vinda e, só com ela nos apercebemos das imperfeições de
nossa explanação.
Carmen Lucia Mastroeni Franzé
Mme.Kallu