2º livro Capítulos para Apreciação
A SAGA DOS CEM ANOS Vol 2
AMOR X AMBIÇÃO
Parte 2
“A Revelação”
“ATÉ ONDE SOMOS HERÓIS OU VITÍMAS DE NÓS MESMOS”
1ª Edição
Santos/2013
Em memória de todos aqueles que inspiraram este romance,
o meu mais profundo respeito.
Nota do autor
Neste livro, os personagens e as cenas são fictícios,
criadas apenas para engendrar a história desta Saga,
baseada em relatos dos fatos por pessoas que os vivenciaram,
e, de outras, que os ouviram em narrativas
ao longo destes cem anos de acontecimentos.
E, meu imenso Carinho e Gratidão a...
Ana Cristina Fornetti Eiras - 1ª Revisora
Edna Alessio - Revisora final
Marcello Mastroeni Amaro – Capa
Oferecimentos:
Ofereço esta obra aos meus familiares:
Meu marido, filhos, netos, nora e genros
pela paciência, carinho e amor,
sem os quais, eu jamais conseguiria concluir esta obra.
ÍNDICE
01 – A Realidade ..............Pág. 09
02 – A Festa.................. Pág. 30
03 – A Grande Revelação........Pág. 53
Capítulo 1
A Realidade
--Hum, hum, minina Dora, mas issu é lá jeitu di levá u pobri du mulequi? Perguntou Tina ao ver entrar em sua cozinha a babá das crianças, toda atrapalhada, com o menino Antoninho em baixo de um dos braços porque, no outro, Dora trazia uma bela trouxa de roupa suja, da última troca do bebê. Ela pôs a roupa suja no cesto para Marga lavar e logo pegou a mamadeira que Tina já preparara, porque o novo bebê chorava de fome lá em cima.
Toninho vinha feliz da vida, a rir das brincadeiras que Dora fazia com ele.
--Ora, Tina, eu tenho que correr para ver se consigo fazer parar de chorar aquele pirralhinho, pois, dos três, ele foi o que me saiu o mais chorão.
--Pobre Sinhazinha, ainda tão nova já tá cum tantus fío, i agora, inda foi pegá mais um...
--Ora, pois, o que está a dizer a minha velha Tina?
--Hum, hum, vai mi dizê, Dora, qui inda num percebeu qui daqui uns tempo, vamu é tê mais um pirralhu berranu nesta casa?
--Você está brincando, não é minha velha?! Não me diga que a nossa menina está esperando mais um filho! Exclamou Dora, despencando o corpo numa cadeira com a surpresa da notícia e, com isso, o Toninho
também se pôs a chorar, assustado com o solavanco que levou com o repente da babá.
--Corri com essa mamadera, muié, qui Tina já não tem mais idade pra tanta choradera, pruquê issu dexa a véia cuns ovido zumbinu. Corri lá, Dora, e mi dá essi mulequi que eu acármo ele, fia, disse Tina, pegando o pequeno Toninho que chorava de fazer dó.
--Carma, fica carmu, meu anjinhu, qui a preta véia táqui, pra cantá procê, meu bichinhu. E cantarolando com o moleque bem aconchegado naqueles enormes seios, acabou fazendo o pequeno dormir.
--Dormi, meu bichinhu, dormi meu bichinho, pra pudê ficá em paz. Lá, lá, lá...
Marga, com seu jeitão destrambelhado entrando na cozinha presenciou a cena, e enquanto pegava a caneca de ágata já lascada, para tomar um gole de café do bule no fogão, perguntou, só para arreliar a amiga:
--Oia, qui a véia Tina largô das panela pra módi fazê u mininu dormi, é? Tina como sempre, pondo-se a correr até seu fogão ia dizendo:
--Hum, hum, Marga, safa já daí pruquê a Tina num percisa nem falá, né Marga? Num percisa nem falá, qui ocê num tem jeitu memu di tê essa cabelera arrumada no lugá, né Marga? Disse Tina, como sempre furiosa, porém continuando a falar baixo para não acordar o pequeno Toninho, que, muito confortável naquele colo gigantesco, dormia tranquilo.
--Marga, vê si ocê arruma de veiz essi lençu na cabeça, fia, i vê se si afasta das cumida, pra módi ninhuma carapinha docê caí onde num devi.
--Mas, Tina, eu só queru memu é tomá um gole du seu café, disse Marga, magoada.
--Café, Marga? Eu já sei pra que ocê qué u café, Marga, é pra módi ocê fazê uma boquinha de pitu pra pitá sujanu tudo cum a cinza du seu pitu, né Marga? Pois safa já daí, muié, da bera du meu fogão, qui eu vô levá Toninho pra minina Dora, i vorto já, pra módi ti dá essi danado du café, Marga, continuou Tina, fazendo troça com a amiga velha.
--Hum, hum, qui a Tina num intendi memu é pruquê a véia Marga resorveu cumeçá fumá dispois di véia. E empurrando a porta com sua grande tanajura, saiu de costas da cozinha com o pobre Toninho nos braços, recomendando com firmeza:
--I vê lá, Marga, si num isqueci as ropa dus meninu du cesto pra lavá, qui si ocê atrazá essas ropa, fia, vai fazê é muita farta pras criança. Num esquece, muié, vê se num atraza memu essas ropa dus mulequi, hein,
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Marga? E subiu as escadas com seu anjinho no colo, num vai e vem das gordas nádegas, lembrando o dançar de suas geleias de mocotó.
Deitou Toninho no berço, ao lado do irmão gêmeo, Joaquim, que dormia tranquilo. O que causava muita estranheza em Tina era que aquele pequeno Quinzinho, de cinco anos, só dormia, dormia dia e noite. Beijando os dois anjinhos e cobrindo-os com muito carinho, Tina ficou ainda ali a olhar o pequeno Quinzinho, a cismar, e cismar...
--Hum, hum, qui as coisa pur aqui num tá cumu dévi sê não..., i num tá memu não‖, repetia Tina, ali sozinha, enquanto olhava com amor para aquele menino mirrado, magro, em pele e osso. ―--Um angú de fubá vai fazê essi mininu engordá. Só memu u angú de fubá‖, pensava Tina ao sair do quarto, meneando a cabeça em desalento, enquanto ia ao encontro de Dora, no quarto do bebê.
--Intão era memu fome, u qui u pirralho tinha, Dora? Perguntou Tina ao entrar no quarto de Fe rnando, enquanto fazia um carinho pelos cabelos negros do lindo menino. --Essi mulequi, pelo menu, parece mais normal qui us otro, né Dora?... Peitu ele tem pra chorá, u qui nem issu us otro tinha, né Dora? Sabe, fia..., vamu dá angú de fubá pru Quinzinho, Dora, pra módi eli ganhá mais pesu, minina. Coitadu du mulequi, qui tá magro di fazê dó.
--Vou falar com D.Isabel, Tina, e ver se ela aprova, respondeu Dora, enquanto dava a mamadeira para Fernandinho, que a sugava com vigor.
--Inda bem qui essi daí é diferenti dos otru, pruqui come tudo qui vê na frente, mas u qui gosta memu é duma mamadera, né Dora? Dora, então, pondo seu bebê no ombro para fazê-lo arrotar, com tristeza murmurou:
--Pois é, minha Tina, Fernandinho se alimenta bem melhor que os outros, sim, mas...
--Mais, u que, Dora? Fala logo, muié, qui u jeitu di ocê falá, deixa Tina ansiosa. Tentando colocar Fernandinho em pé, Dora estranhava, porque ele não firmava os pés.
--Num sei não, Tina, mas desconfio que este menino tem alguma coisa nas pernas. Ainda outro dia, quando os gêmeos tinham dois anos como Fernandinho, eles já ficavam de pé. Certo que Quinzinho não tinha
muita firmeza, mas eu lembro que sentia a força do pezinho dele no meu colo, enquanto este menino...
--Pru favô, Dora, num fála umas cosa dessa..., num fála qui us nossu sinhô vai ficá muito tristi, minina. Pruqui elis, Dora, elis fica falanu, sempre, qui tem criança qui demora mais pra andá, inté pareci qui elis num qué é inxergá us pobrema qui us fio delis tem, Dora...
Dora, pondo o pequeno no bercinho, virou-se para Tina fazendo sinal de silêncio e saiu do quarto com a velha. Tentando acalmá-la, comentou:
--Pois, não fique assim, Tina, porque as crianças nunca são iguais, minha velha, e disso você sabe muito bem, não é?
--I, Dora, qui num são não... Eu veju os fio de Zicu e Josefa, qui são ispertu di daná, já correnu pelus terreru tudu peladinhu i cum aqueles barrigão di tantu cumê terra, que eu inté achu qui é bichu, Dora, u qui elis tem naquelis barrigão, i eu falu issu pra Josefa, fia, mais ela nem liga...
--Tina, as crianças quando são criadas mais à vontade são mais saudáveis, você sabe disso, afirmou Dora, com voz vacilante.
--É, Dora, nissu ocê tá certa nu qui fala, pruqui us patrão fica dizendo pra gente a toda hora: " --Põe tôca neles, Dora, pruquê tá frio. Fecha tudas janela, pras criança num resfriá...‖. Deus dá denti memu é pra quem num tem nóiz pra cumê, fia. Isso é lá memu uma verdade, minina, fica certa disso, fia, terminou Tina, entristecida.
--Vamos parar com essa prosa, Tina, que, se Isabel acordar e ouvir isso, vai ficar ainda mais triste.
--Pois é memu, né Dora? Qui a nossa minina ficô muito diferenti dispois qui nasceu as criança. Ficô memu, ocê num acha, Dora? Perguntou Tina, virando o corpo em direção ao quarto dos patrões, que agora, como sempre, com aquela porta fechada, só fazia lembrar que a patroinha não andava nada bem. E Tina, falando alto o que lhe ia pela cabeça, murmurou:
―--Tamém, minina Dora, elis só sabe memu é fazê fio. Todu ano um, ou dois fio... I si elis num morri piquininho, ficá ansim tudu meio diferenti. Mais tamém, Dora, si us seis fio da Sinhá fosse vivu i si as cosa cuntinuassi ansim, Dora, a casa grande num ia dá pra tanto fio, não é, Dora?
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--Cala a boca, Tina, e vai cuidar das suas panelas, que eu tenho que dar uma olhada nas crianças,
--Mas qui trabaiera elas dá, né Dora? Inda bem qui a patroinha tem ocê pra cuidá das crianças pra ela, né?
--Ora, pois, Tina, que esta agora é a minha obrigação, uma vez que me tornei a babá das crianças desde que nasceram os gêmeos, e você sabe muito bem disso, respondeu Dora, ficando já irritada quando, para acabar logo com aquela prosa, usou uma fala usada pela própria Tina, em sua cozinha:
--Pois, sáfa já a senhora daqui, ―que muito faz, quem não atrapaia...
--Puxa, Dora, qui agora a minina tá tocanu a véia Tina, é? Perguntou num bico enorme.
--Larga de fazer bico com esses beiços, que, se as crianças o virem, vão é morrer de susto. Aí, meu Deus, como pode gente tão boa ser assim tão feia? Troçou Dora, beijando aquela querida face gorducha.
--Hum, hum, qui isto tá mi cheranu qui a minina Dora, pircisa de arguma coisa da véia Tina. Desembucha logu, muié, qui Tina num tem todu u tempu du mundu pra ficá aqui.
--Sabe, Tina, pensando bem, eu gostaria que você fizesse aquele angu de fubá, de que tanto fala mulher, para eu dar para o Quinzinho, pois assim, quem sabe, talvez...
--Mais... I si a Sinhazinha não...
--Não se preocupe,Tina. Pois tenho certeza que a patroa não vai se queixar.
Tina, olhando então para os lados para conferir se estavam mesmo sozinhas, disse:
--Eu façu, Dora, eu façu. Mas, vê si dá pros gêmeo tamém, Dora, pruquê a véia Tina, tá é muito cismada com as criança da sinhazinha. Tamém, Dora, o que si pode isperá dum casamentu com o memu sangui, né? Só podi memu é dá coisa ruim, fia... Só coisa ruim, repetiu Tina, depois de olhar para os lados, descendo as escadas com sua ginga, pra lá e pra cá.
Dora, debruçando-se no balaústre da escada, pediu com a voz aflita:
--Para de falar estas coisas, Tina, e muito menos, use essa cabeça oca para pensar nisso...
--Certo, Dora. Mas, que a Tina sabe das coisa, sabe, fia, resmungou a velha, e lembrando-se de Marga, falou:
--Pobri Marga qui tá esperanu u café, pra módi i pitá seu pitu fedurentu. E, correndo como podia, resmungando como sempre, afastou-se em direção à cozinha.
Dora, com sorriso complacente, balançou a cabeça em apoio à pobre Marga, que sempre fora a grande vítima da velha Tina. Dirigia-se para dar uma olhada nos gêmeos, quando Isabel, muito pálida e cambaleando, abrindo a porta do quarto, chamou-a:
--Dora, por favor, se as crianças estiverem bem, dá um pulinho até aqui, pois que acho que alguma coisa está acontecendo.
Dora, que conhecia a menina só de olhar, rápida, puxou a gravata do sinete chamando Josefa e correu para o quarto da patroa, já preparada para o choque que, com certeza, levaria.
--Diga, menina, o que está afligindo agora, a minha pequena? Perguntou muito assustada, Dora, já entrando no quarto e vendo a cama ensanguentada.
--Mas, o que aconteceu?
--Isso Dora...
--Mas o que fez, menina?
--A garrafada de ervas que Josefa fez, Dora.
--Mas, menina, você tomou aquilo?
--Tomei, Dora, e estou com muitas dores.
--Vou chamar o patrão.
--Não, Dora, por favor, não... Pois que, se o fizeres, ele ficará muito assustado, disse Isabel com a voz fraca, deitando-se na larga cama.
--Aíiii... Aiií, Dora, como dói...
--Vou chamar dr. Reis, menina.
--Faça isto, Dora, por favor, pediu Isabel, com a voz cada vez mais fraca.
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Pegando logo a gravata do sinete, chamou Quim. Preocupada com o que acontecia com sua menina, foi até a porta em desespero, porque ouvia o choro das crianças. Completamente atordoada, não sabia o que fazer.
Quim, com a fisionomia preocupada, pois, todas as vezes que era chamado para o casarão, boa coisa nunca era, perguntou, empurrando literalmente Josefa de sua frente:
--O que foi Dora, dize-me.
--Dê uma corrida na casa do doutor e diga-lhe que venha rápido, pois que a senhora está sangrando muito, e tudo indica que está perdendo o bebê.
--Mas que bebê, Dora?
--Ora, Quim, o bebê que nossa menina está esperando.
--Mas..., outro bebê, Dora?
--Sim, meu amigo, outro, que eu nem sabia que ela esperava, disse Dora, desconsolada.
--Corra, Quim, vá buscar dr. Reis. E, olhando para Josefa, disse-lhe de maneira irritada:
--Não ouve o choro das crianças Josefa? Fique com eles, que eu cuido da patroa, menina, por que o choro dos filhos deixa nossa sinhazinha ainda mais nervosa.
Voltando para o quarto, pôs forros diversos em sua menina, pegou-a quase no colo, recostou-se na cabeceira da larga cama e aconchegando-lhe a cabeça bem junto ao peito, acariciava os cabelos de sua pequena que, muito abatida e suada, gemia de dores e chorava, fazendo-a pensar:
"--Ah, meu Deus!... Para que tanto sofrimento? Ajude-a meu Deus, não a deixe morrer, pois que isto será a loucura para meu patrão". E, em desespero, ainda pensou: "—Hoje eu ainda mato a Josefa... Eu mato... Onde já se viu preparar e dar uma garrafada para a menina tomar, e perder o neném!... Eu mato você, Josefa, se acontecer alguma coisa com a minha menina.
Tudo isto pensava Dora, enquanto, embalando a pequena, chorava pelo infortúnio daquelas duas pessoas, cujo único erro fora o de se amarem. ―--Meu Deus, cuide da minha menina... Cuide meu Deus‖, rezava alto, enquanto passava um lenço para enxugar o suor e as lágrimas, que se misturavam ao escorrer naquele rosto ainda de criança. ―--Ela ainda não fez vinte anos, meu Deus... Cuide dela.‖ E rezava: ―--Pai Nosso que estais no Céu, Santificado seja o Vosso Nome...‖, rezava, e rezava, implorando ao seu Senhor Jesus.
--Aíiiiiiiii... Foi o grito que ouviu da menina, que desmaiou em seguida.
Josefa, prática com crianças, já acalmara todas e as fizera dormir. Ao ouvir o grito da patroa, correu e entrou no quarto sem bater.
--Como ela está?...
--Como está, Josefa? Com sua ajuda, minha menina está a morrer.
Josefa, sem dar ouvidos à Dora, em desespero, deitou com rapidez Isabel de costas na cama, montou sobre o corpo da pequena e começou a fazer-lhe massagens do ventre para baixo. Comprimia com mãos pesadas, ainda com mais força nas massagens que fazia, fazendo voltar a si sua patroa, que, com um grito de dor, voltou a desmaiar.
--Sai daqui, demônio, o que você fez agora com a minha menina?
--Agora acabou, Dora..., acabou, dizia Josefa, fazendo a higiene em Isabel.
--O que acabou Josefa? Minha menina morreu? Eu mato você, Josefa... Eu vou matar você, continuava repetindo desesperada Dora, tomando novamente aquele corpo inerte nos braços, enquanto chorava..., chorava...
--Fique calma que a sinhazinha está bem, Dora. Eu tenho muito o que fazer ainda, e você está me deixando muito nervosa. Agora, tudo acabou Dora, porque, graças a Deus, conseguimos fazê -la cuspir a placenta. Fique calma, Dora, que daqui a pouco ela estará boa e então, ela deve alimentar-se bem, começando com chá e torradas de pão caseiro, para recuperar as forças, disse Josefa com segurança em sua calma peculiar, para tranquilizar a amiga, enquanto fazia a higiene em sua patroa.
Vendo que Isabel respirava normalmente, Dora acalmando-se, perguntou:
--Como sabe que ela está bem, Jô?
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--Porque sou filha de parteira e aprendi tudo ajudando minha mãe, que já atendeu muitas mulheres a parir, e também já salvou muitas, que, como a nossa patroa, abortaram um bebê.
Isabel, então, dormia em descanso merecido, enquanto as duas trocavam-lhe a cama. Encontrou-as assim dr. Reis, quando, sem bater, entrou no quarto com fisionomia preocupada.
--Como está a moça, Dora? Arrume algumas roupas dela, que talvez seja preciso transportá-la para a
Santa Casa, disse o médico, enquanto tomava o pulso da menina e auscultava-lhe o coração.
--Mas o que aconteceu? Perguntou espantado o doutor. --O pulso e o coração dela estão em batimento normal, declarou João Reis, passando o lenço pela testa, aliviado ao sentir que a coisa não era assim, tão séria.
Quando Dora começara a explicar o que sucedera, Josefa se mantinha de lado, sem nada dizer, olhando em desespero para a amiga, com receio de que o doutor não aceitasse o que ela fizera.
--Josefa... Bem..., explicava Dora... Josefa, que é parteira como a mãe, atendeu nossa patroa, doutor, elucidou rapidamente Dora, enquanto Tina entrava com panos e uma chaleira de água quente.
--Já, já, Tina vai trazê mais água, seu dotô...
--Tranquiliza-te, pois que não vamos mais precisar, minha velha Tina.
Esta, vendo que a menina dormia serena, olhou pasma para Dora e Josefa, mal ouvindo o que o doutor dizia.
--Pois foi excelente a sua ajuda, Josefa, mas agora lhes peço que saiam todas, pois que gostaria de examinar a minha paciente.
--Josefa, trate de sair, que aqui vou ficar com o doutor para o caso de ele precisar de alguma coisa. E
você, minha amiga Tina, providencie aquele chá especial com torradas para a nossa patroa, pediu Dora, decidida, já fechando a porta.
Após examiná-la, o doutor completou o trabalho de curetagem que fora iniciado de maneira rudimentar, mas com muito sucesso, e fez uma boa assepsia em sua paciente. Ao terminar, deu um profundo suspiro e,
sorrindo para Dora, que a tudo assistia muito de perto, falou:
--Pronto, Dora, está tudo bem com sua patroa, que agora precisa é alimentar-se e descansar. Somente isto. A própria natureza se encarregará de fazer o restante, afirmou o médico após lavar as mãos e enxugá -las numa rica toalha.
Em silêncio, Isabel, muito pálida, a custo aceitava tomar o chá com torradas. Sentados por perto, João Reis e Dora olhavam-se aliviados.
O pior já tinha passado, e a menina estava bem, perdurando apenas a fraqueza. Com os cuidados de Dora e Tina, com certeza, em poucos dias ela estaria restabelecida, pronta para outra, pensou João Reis, olhando com carinho para a sua tão frequente paciente, Isabel.
Antônio, chegando esbaforido quarto adentro, perguntou ansioso:
--Como está minha esposa, João? Mas, o que afinal aconteceu, minha querida, para deixar-te abatida e neste estado? Perguntou Antônio, abraçando a mulher que, ao vê-lo, pareceu criar vida nova.
--Aquieta-te, meu querido, pois que agora está tudo bem, Antônio. Agora está tudo bem, repetia-lhe a menina, caindo em choro, enquanto, abraçando-o quase entornava a bandeja com a xícara de chá que Dora
correu a retirar, saindo em seguida, deixando os três a prosear mais à vontade.
A recuperação de Isabel naquele dia foi longa, pois que já melhor de fisionomia, seu rosto trazia ainda uma tristeza, só amainada quando tinha o marido por perto.
--Isabel, precisas reagir, minha amada. Já aconteceu, agora está tudo bem e temos um ao outro para superarmos mais este momento difícil, minha querida. Estava eu pelos lados do eucaliptal conferindo o corte
da lenha junto a Pedro e, por isso, não ouvimos o sinete, quando foi tocado chamando por Quim, disse -lhe
Antônio, abraçando-a, deitado a seu lado, desculpando-se, quando se viram sozinhos naquele quarto, que já fora testemunha de tanta felicidade vivida pelos dois.
Silêncio... Isabel se recusava a falar. Antônio continuava a se explicar:
--Jamais me perdoarei de não ter estado aqui contigo, em momento tão difícil, minha amada.
--Foi melhor assim, Antônio, disse por fim a menina, acariciando o rosto tão querido.
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--Mas, o que aconteceu? Dize-me, querida, o que aconteceu para provocar-te tanto sofrimento, fazendo-nos perder nosso filho que, segundo João Reis, seria mais um menino.
--Não... Não é verdade, Antônio! Mais um menino? Murmurou Isabel a tremer nos braços do marido, enquanto pensava: ―--Jamais lhe contarei o que provoquei... Jamais... Ele nunca me perdoará pelo que fiz, como também, nunca entenderá as minhas razões‖, pensou Isabel, chorando nos braços do marido que, passando-lhe a mão pelos cabelos, permanecia quieto como em respeito ao momento por que passava sua amada.
"--Esta seria a minha sétima gravidez. Tive forte pressentimento de que esta também não vingaria, assim como aconteceu com as outras duas, quando perdemos nossos pequenos recém-nascidos, causando- nos profundo sofrimento. Depois deles, aconteceu outra gestações de gêmeos, que perdi num aborto muito sofrido, já em gravidez adiantada. Desta vez, sentindo-me apavorada, preferi seguir os conselhos de Josefa, tomando aquele preparado que ela dizia ser tiro-e-queda.
–―Ah! Antônio, se soubesses o que fiz!!!... Mas jamais saberás, amor... Prefiro que seja assim, a correr o risco de perder o teu respeito e o teu carinho‖, pensou em pranto Isabel, muito triste, mas, sentindo-se reconfortada naquele abraço do marido. "--Não sei como consegui levar até o final a gestação dos gêmeos, Toninho e Quinzinho, pois, quando nasceram, todos achavam que não vingariam de tão fraquinhos que eram.
Agora, Nandinho... Ah, esse..., esse nasceu forte, um tourinho, como disse Tina."
Antônio, desconsolado com o sofrimento que percebia na esposa, tentando animá-la, murmurou, enquanto apertava-a num abraço:
--Não fiques triste, minha amada, pois que teremos outro, verás e, desta vez, com certeza, teremos uma menininha assim como tu, com estes olhos grandes e negros iguais aos teus, minha querida...
--Uma menina, Antônio? Será que um dia teremos uma menina? Perguntou Isabel, meio incrédula.
--Pois tenhas a certeza de que a teremos e, como disse, ela será linda como sua mamãe, com esses olhos grandes, negros e muito expressivos, que sempre foram minha paixão.
--Não, retrucou Isabel, enxugando os olhos, sentindo-se mais otimista com a segurança que lhe passava o marido.
--Se tivermos uma menina, gostaria que se parecesse contigo, mas gostaria muito que tivesse os olhos azuis de tio Pedro.
--Lembro-me, pois, que já ouvi isso há alguns anos, lá na nossa querida Ilha da Madeira, murmurou
Antônio, fazendo-a lembrar da irmã Amélia.
--Amélia!... Lembro-me dela ao partimos, Antônio, tão linda com grandes olhos azuis!
--Pois, então, assim será a nossa menina, minha querida, com lindos olhos azuis, confirmava Antônio, percebendo aquele olhar de nostalgia da esposa, que sempre o preocupava.
--Como estarão minhas irmãs Amélia e Rosinha, Antônio? Perguntou com saudade.
Antônio, levando o assunto com naturalidade, como se não desse importância ao que fora perguntado, respondeu:
--Segundo a última notícia, estão a crescer lindas e maravilhosas. Isabel, num repente, com o olhar distante, perguntou:
--Como se sentiriam e como reagiriam meus pais, ao saberem de nosso casamento?
--Ora, pois, acho que eles adorariam conhecer os lindos netos que já têm. Também, tenho certeza, de que se sentiriam felizes ao tomar conhecimento do quanto nós também o somos, respondeu Antônio, com certa reserva imperceptível na voz.
--Achas mesmo que eles entenderiam e abençoariam nossa união, Antônio? Perguntou a menina, com os olhos brilhantes de expectativa.
--Com certeza, minha amada, com certeza, disse Antônio, abraçando-a muito apertado.
--Amo-te, minha princesa, amo-te demais, pois me fazes o homem mais feliz entre os mortais, disse- lhe Antônio, olhando-a com paixão.
--Também te amo, meu marido, demais. Só mesmo o teu amor para fazer-me superar todas as adversidades que a vida tem nos reservado...
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--É apenas uma fase, minha menina, logo tudo vai passar... Sabes, querida, eu me esqueci de te avisar, convidei João Reis com a família para virem almoçar conosco qualquer domingo destes. Não te consultei antes, pois descansavas no momento, e eu não tive dúvidas que ficarias feliz com a visita deles, sempre com as longas prosas, que tanto gostavas de ter com Estela.
Isabel retesou-se na cama ao ouvir o que dizia o marido, porque jamais comentara com ele que Estela nunca aprovara seu casamento e dizia-lhe isso sempre que estavam juntas. Antônio, vendo-a ainda a cismar, com aquele olhar parado, de súbito foi tomado pelo que achou uma grande ideia, participando de repente:
--Eu estive trocando uma opinião com Pedro e estamos, ambos, pensando em reabrir nossos salões para um grande baile por ocasião de teu vigésimo aniversário.
Isabel, em choque, mal conseguiu responder-lhe:
--Mas, Antônio, tu achas mesmo uma boa ideia abrirmos os salões para receber os amigos que não vieram ao nosso casamento, que não enviaram nem um cabograma desculpando-se pela ausência?
--Ora, pois, minha menina, que muito tempo já se passou. Tenho encontrado com muitos deles e sempre perguntam por ti com muito carinho.
--Ora, pois, se acredito que haja verdade no que estás a dizer, meu querido.
--Se pensas assim, verás, então, a afluência deles em resposta ao nosso convite. Verás, minha amada. E, quero que mandes fazer um lindo vestido por Madame Roseanne, pois quero que todos te vejam linda como estás, e também que vejam por si mesmos, o quanto estamos felizes com nosso casamento. E eles virão, minha querida, verás. Afinal, já se passaram sete anos e nosso caso, como sempre te disse, já caiu no esquecimento há muito tempo, principalmente depois da gravidez indevida de tua amiga Alexandra.
--Sabes, pois, que gostaria de convidar Alexandra e Guilherme para a nossa festa, Antônio? E, continuou como se pensasse alto: --Pois, quem diria que ela acabaria por casar-se com Guilherme, que é bem mais novo do que ela, hein? Coitada de Alexandra... Como deve ter sofrido com o preconceito dessa
sociedade maldosa. Vou chamar Estela para que me acompanhe até Madame Roseanne, a fim de escolher
um lindo modelito para a nossa grande noite, meu querido, comunicou Isabel ao marido, depois de refletir e já, mais animada.
--Faze, pois isso, então, minha amada, e aproveita para fazer o convite no domingo, quando estaremos todos juntos, sugeriu Antônio, feliz, por sentir que a esposa voltava à vida. --Agora, dorme, minha amada, procura descansar, para estares muito bela para o nosso almoço de domingo, pediu-lhe Antônio, e dando-lhe
um beijo na testa afastou-se para sair do quarto e dar as ordens para o esperado almoço. Fora do quarto, recostando-se na porta, pensou: ―--Eles comparecerão... Eles comparecerão, nem que seja para comprar-lhes a presença. Tu voltarás à vida, minha amada Isa, pois que não é justo que, por minha causa, a tenhas perdido ainda tão jovem", pensava Antônio, ao atravessar o enorme salão.
Fred, o mordomo, fora quem ficara mais feliz com a notícia do almoço de domingo, pois há muito a família não abria os salões para almoços, jantares, saraus ou pequenas recepções. Os jantares das terças- feiras, oferecidos aos amigos padres, Santo e Inácio, desde o casamento dos senhores já não aconteciam porque padre Santo fora totalmente contra aquelas núpcias e afastara-se da família. Quanto a padre Inácio, este, infelizmente fora transferido para outra diocese repentinamente, logo após o casamento dos amigos, afirmando as más línguas, que fora a celebração deste sacramento, a causa para a tal punição. Agora, porém, ouvia-se um zum zum zum de que o padre Santo, já há algum tempo rodeava os irmãos Gonçalves, pois que estava a fim de receber em doação um grande terreno, muito bem localizado, para a capela que construiria num bairro em desenvolvimento.
Fred, em plena atividade, sempre autoritário, empertigado e minucioso, assumiu a organização em grande estilo para um simples almoço. Cuidava de manter seus colaboradores a limpar os quadros com telas de pintores famosos, e também os móveis, lustres e pratarias.
Quanto à decoração e ao menu, tentou fazer com que a jovem patroa participasse, para tirá-la da apatia em que se encontrava, mas foi tudo em vão, pois que sempre que a procurava para uma opinião, recebia a mesma resposta:
--Ora, pois, Fred, por que insistes em ter minha ajuda na organização de um simples almoço, quando me cansaste de participar que, antes de minha chegada a esta casa, eras tu quem organizava as grandes
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recepções dos irmãos Gonçalves. Tenho a certeza de que, farás o melhor que conseguir e me deixarás tranquila para cuidar-me, como também a meus filhos, que tanto estão precisando de mim.
Fred, estranhando aquela maturidade, gentil, respondeu:
--Se assim a patroa achar melhor, pois que assim seja. Mas, e as flores? Qual a senhora daria preferência para o centro da mesa e em todo o restante das salas? Interpelou Fred, ainda insistindo em seu intento de fazê-la participar.
Isabel, que se encontrava no varandão com os filhos a tomarem o sol da manhã, trazia Quinzinho no colo, enquanto Fernandinho, sobre uma grossa colcha de retalhos, brincava com seus brinquedinhos e Antoninho estava com Dora, que insistia em fazê-lo andar.
--Ora, Fred será que terei de repetir tudo novamente para fazer-te entender que não quero dedicar-me a esses detalhes? Decide pelo que achares melhor. Com certeza, ficará leve, lindo e muito gracioso, como sempre.
Fred que, enquanto conversava, tomara no colo Fernandinho, brincava com ele que ria feliz, quando, torcendo o nariz, afastou-o do colo com aquela fisionomia de asco, pois que o pequeno a rir, urinara em seu colete.
Dora correu a tirar-lhe o menino das mãos, dizendo com azedume:
--Ora, Fred, isso não mancha e muito menos tem mau cheiro para tanta micagem, pois trata-se simplesmente da urina de um neném. Ah..., que sei bem o que lhe falta, Fred? Pois lhe falta uma dúzia de filhos, para que aprenda a lidar com isso.
--Que Deus não a ouça, senhorita Dora, que Deus não a ouça, nunca, respondeu Fred, batendo em retirada com os braços abertos, nariz torcido e o corpo envergado como se lhe fora jogado em cima algum
ácido ou coisa parecida.
Isabel, não aguentando presenciar tal comportamento, ria muito...
Dora sentia-se feliz e, no fundo, era profundamente agradecida a Fred, pois tão corriqueiro incidente fizera a patroa rir como há muito tempo não a via fazer.
--Este Fred, não muda mesmo não é? Pois Dora, por mais que queira, não consigo imaginá -lo ao lado de uma dúzia de filhos, nem muito menos vivendo ao lado de qualquer mulher do planeta, amiga, comentou Isabel, rindo ainda do acontecido.
--A patroa já imaginou como deveria ser a pobre coitada dessa mulher? Com certeza, uma segunda
Joana d‘Arc, pois, por mais perfeita que fosse, iria preferir a fogueira a conviver com tão irrepreensível senhor.
Começaram então a rir as duas, um riso solto e longo, como há muito não acontecia.
--Ai, Dora, que só de imaginar a cena inusitada dessa hipotética família faz-me rir tanto, que chega a doer-me toda por dentro.
Dora ao ouvir o que dizia sua menina, levantou-se, correu-lhe ao encontro, tirando-lhe o filho do colo, que ria também, sem saber o porquê, enquanto Dora pedia-lhe ansiosa:
--Acalme-se, Isabel, tente esquecer o que falamos, pois poderá machucar-se por dentro, uma vez que é ainda muito recente o que andou passando.
-- Acalmar-me, Dora? Deixar de rir? Pois é o que não consigo. Só de imaginar Fred rodeado por um bando de pirralhos chorões como os meus, ao lado de uma santa que a tudo lhe diz amém. Pedes-me muito, amiga, tentava dizer, entrecortada pelos soluços que o riso lhe provocara.
Toninho, estranhando a atitude da mãe, a brincar sentado também sobre a colcha, assustou-se com a
cena desusada, caindo num choro compulsivo, seguido de imediato por Quinzinho e Fernandinho, trazendo as duas à realidade. Parando ao ouvirem o choro das crianças, olharam uma para a outra e, enquanto tentavam apaziguá-las, começaram de novo a rir, sem parar, sendo socorridas por Antônio e Pedro que, assustados com o que ouviam, acorreram para ver o que acontecia.
--Que bom que chegastes!... Peguem, pois, as crianças, que nem Dora nem eu temos condições para tanto, no momento. E riam, riam...
Pedro, tomando Toninho nos braços, comentou simplesmente:
--Ainda bem que estão a rir. Há muito tempo não vejo nossa menina rir assim, Antônio.
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Antônio, pegando Quinzinho e Nandinho nos braços, respondeu ao irmão de maneira a acusar a tremenda curiosidade que sentia.
--Realmente, ainda bem que estão a rir, Pedro, pois eu me encontro já traumatizado de sempre chegar em casa e ter novidades nada agradáveis à minha espera. Ainda bem que hoje é alegria. E para trazer tanto riso à minha entristecida esposa, só mesmo algo como uma boa pilhéria, falou Antônio, enquanto tentava equilibrar os filhos, brincando com eles.
--Ora, Antônio, o que dizes, meu querido...
--Ah, senhores..., se soubessem do que estamos a rir, com certeza perderiam também o autocontrole e dariam boas risadas conosco, digamos que muito justificadas, falou Dora, mal conseguindo pronunciar as palavras.
Tentando contar o ocorrido, logo as mulheres surpreenderam-se ao verem os dois sobre a colcha das crianças a rirem também da cena que imaginavam.
--Imagina Pedro, Fred ser surpreendido por um pequeno vazamento de Fernandinho.
--Nem imagino, pois, mais ainda me rio, de imaginá-lo ao lado de uma mulher e rodeado de filhos, Antônio, disse Pedro, ainda rindo.
--Pois eu acho que Fred não saberia o que fazer com uma mulher, quanto mais, com um bando de filhos a tumultuar-lhe a vida, tirando-o da rotina mais rotineira de que já teve conhecimento, retrucou Antônio, rindo ainda.
Fred voltou depois de se trocar para dizer alguma coisa à patroa e, ao presenciar aquela cena familiar, não se importando em ser a causa de tanto riso, murmurou:
--Que Deus jamais me permita viver tal experiência, pois que já me basta, e muito, o que presencio por aqui. Mulher!?... Ai, Meu Deus, que disso não quero nem saber, porque estou para ver algo mais complicado do que o bicho mulher. Haja vista a jovem patroa, antes tão feliz e irreverente e, hoje, a vida está a torná -la
triste, infeliz, levando-a a uma profunda amargura. E, saindo, parou na porta entreaberta, presenciando feliz
aquela cena que sabia ser passageira, porque a realidade logo os chamaria.
Como se adivinhasse, viu todos pararem com a euforia quando Nandinho, perdendo o equilíbrio, caiu para trás, pondo-se a berrar por bater a cabeça no chão.
--Antônio, onde já se viu não cuidar dos movimentos de uma criança? Falou Isabel, correndo a pegar o filho para ver se ele se machucara, porque chorava forte, acompanhado pelo coro dos irmãos, numa choradeira pujante.
--Mas, Isabel, quando poderia pensar que isto poderia acontecer a uma criança de três anos, respondeu Antônio, ainda sentado na colcha com os filhos.
Silêncio... As palavras de Antônio trouxeram de volta a realidade, fazendo com que todos percebessem a deficiência no comportamento dos pequenos. Fred resolveu descer, já que havia esquecido o que viera fazer ali. Entristecido com a dura realidade vivida pela família, que, alienada dos problemas, não admitia acreditar na
verdade gritante aos olhos de todos da casa. Descendo cabisbaixo Fred dizia consigo mesmo:
―--Certa está Tina, que desde sempre disse haver algo estranho com os filhos do patrão.‖
Os dias corriam como sempre, naquela rotina de atender as crianças, que por um motivo ou outro estavam sempre a chorar num coro contínuo, deixando a casa num som lastimoso, contribuindo ainda mais para o ambiente sempre triste.
Antônio, feliz, viu chegar o esperado domingo. A rotina mudara, porque logo aconteceria o esperado almoço, quando reinaria naquela casa um pouco de paz e alegria, pois lembrava o quanto se davam bem, a sua Isabel e Estela, que, agora com dois filhos em idade semelhante à dos deles, com suas gracinhas e brincadeiras conseguiriam, com certeza, trazer a todos um alegre dia.
A chegada dos convidados proporcionou um ambiente descontraído e feliz, pois que Estela, atendendo a um pedido especial do marido, resolvera deixar de lado suas opiniões sobre o casamento de seus anfitriões, tentando assim fazer com que melhorasse o estado de ânimo da amiga. E logo que chegara, doera-lhe no coração o aspecto entristecido e até envelhecido da ainda tão jovem senhora.
Isabel, encantada com as crianças de Estela, não se cansava de elogiar a meiguice de Mariana, que, com três anos e vestida como uma bonequinha era muito meiga e falante. Logo estavam todos no agradável
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jardim de inverno, a bebericarem um saboroso vinho e a conversarem sobre trivialidades, enquanto Dora e Josefa brincavam com as crianças ali por perto, sempre deitadas ou sentadas sobre a colcha de retalhos. Isabel sentia-se bem em ver Joãozinho brincar com seu filho Toninho, enquanto Quinzinho e Nandinho distraíam-se com o andar de lá para cá, daquela tão graciosa Mariana.
--O almoço será servido, senhores, participou o sempre empertigado Fred, com todo o cerimonial que a simples ocasião, com certeza, dispensaria.
Cúmplices, e trocando um significativo olhar em desculpa à formalidade do mordomo, riram as duas mulheres, momento em que Isabel sentiu-se feliz em ter a amiga de volta. Pegando-a pelo braço, caminhou
sorrindo para a sala de jantar e, ao chegarem, uma surpresa.
Fred, superando-se, havia providenciado um ambiente aconchegante e muito bem decorado, mas muito adequado a um almoço de domingo, com caldeirões dispostos à mesa, prontos para receberem as crianças. O nome, designando os lugares de cada um à mesa, dispensou Isabel dessa função, que nem preparada estava para assumir.
Com um olhar agradecido a Fred, que demonstrara tanta consideração para com ela, encaminhou-se para o seu lugar, percebendo-se ladeada por dois caldeirões para os filhos mais velhos. Toninho, logo ao sentar avançou de pronto para os talheres, enquanto Quinzinho, não conseguindo equilibrar-se naquele novo assento, caía sempre para frente, deixando Isabel em desespero, pois que se via impossibilitada de dar conta dos dois filhos, e ainda recepcionar os amigos.
Dora e Josefa acorreram para pegar as crianças e, levando-as dali, trouxeram um grande alivio à patroa que, enfim, poderia aproveitar tão agradável companhia. Sorrindo, levantou a cabeça para dizer algo à Estela, quando percebeu a amiga também ladeada pelos filhos que, por sua vez, mantinham-se em respeito à mesa como se fossem adultos, sem mexerem em nada.
Surpresa e desapontada, Isabel trocou um olhar com o marido que, da cabeceira da mesa, conduzia uma prosa com João, sentado a seu lado. Percebendo uma estranha força naquele olhar, balançando a cabeça, resolveu deixar as dúvidas de lado e aproveitar ao máximo a desusada ocasião.
O almoço transcorreu em ambiente descontraído, graças a Estela, que, ao perceber a delicadeza da situação, chamou por Nadine.
--Por favor, Nadine, leve meus filhos ao encontro das crianças para que almocem juntos, pois, duvido muito que suportem tanto tempo de formalidades à mesa, disse Estela, retribuindo o beijo dos filhos que, antes de saírem da mesa, pediram licença para fazê-lo.
Cada vez mais impressionada com a desenvoltura daquelas crianças, Isabel foi tomada de receios que a custo conseguiu superar, a fim de não estragar momentos tão agradáveis que ela e a família viviam junto aos amigos.
Antônio, no final do almoço, ao pôr o guardanapo sobre a mesa, aproveitou a ocasião para convidar os amigos para a festa que pretendiam oferecer dali a quinze dias.
--Gostaríamos muito, Isabel, Pedro e eu, que vocês nos dessem o prazer de suas presenças à singela reunião que está sendo organizada para reencontrarmos os amigos, dos quais estamos distanciados devido às gravidezes quase constantes de minha esposa.
João, muito simpático falou:
--Pois já de antemão posso adiantar que, com muito prazer, nós compareceremos a esta reunião, não é Estela? Entendemos o que diz nosso amigo Antônio, no tocante ao afastamento por ocasião do nascimento de seus filhos, pois que o mesmo nos ocorreu, distanciando-nos também dos amigos. Esta fase das crianças pequenas nos absorve todo o tempo, não nos permitindo o prazer da convivência com outros.
--Nisso, tens toda a razão, João. Para nós, foi maravilhoso vos lembrardes de nos convidar para este almoço, pois vivemos ultimamente trancados em casa, somente a cuidar da vida, dos filhos e criados, sem nenhuma condição de conviver com os amigos e, muito menos, sobra-nos tempo para frequentar os ambientes sociais que apreciávamos tanto. É, pois, estafante esta fase, não é mesmo, Isabel? Comentou Estela, tentando trazer a amiga para o assunto.
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Dando um suspiro, que por sua vez já valia como resposta, Isabel, com o lindo semblante aliviado pela confirmação da presença dos amigos à festa, respondeu de maneira animada:
--Realmente, esta é uma fase que eu diria ser muito gratificante, porém estafante, como diz minha querida Estela. Gostaria, pois, Estela, aproveitando o ensejo de estarmos juntas hoje, de convidar-te a acompanhar-me até Madame Roseanne para providenciar um novo traje para a ocasião, pediu Isabel, não conseguindo deixar de transparecer no convite, o receio da recusa da amiga.
--Este é o melhor convite que recebo nos últimos anos e jamais o recusaria porque adoro ir ao ateliê de Madame Roseanne, pois é de lá que saem as maiores novidades e fofocas da sociedade. Portanto, amiga, não só te acompanharei, como também, acho que a ocasião merece que eu providencie um novo traje, não é João?
--Seria ótimo, minha Estela. Os últimos modelos que vestiste foram sempre aqueles monstruosos e deselegantes vestidos de gravidez, que, apesar de ser um período de supremacia da feminilidade, não deixa de ser um período de altruísmo total, pois as mulheres abdicam de tudo em função dos filhos que estão gerando.
--Vamos marcar logo uma data, Isabel, pois que não temos muito tempo e, com isso, quem sabe, voltaremos à vida à nossa frente, que está pedindo, gritando que a vivamos, apesar das responsabilidades, como a maternidade, não achas, amiga?
--Plenamente de acordo, Estela, e aproveito o momento para colocar também, que vós não fazeis ideia da felicidade que me destes ao aceitar o convite para este almoço que, por si só, veio afastar -me de uma mesmice de vida, a qual, confesso, estava a me definhar e traumatizar. Isabel ao concordar de imediato, entendeu a qual opção a amiga se referia e sorriu feliz.
--Faço minhas as tuas palavras, minha querida esposa... Pois que penso que já é mais do que hora de voltar a fazer o que sempre gostaste, como o hipismo, por exemplo, não achas, João? Perguntou Antôni o, feliz com a perspectiva de ver a mulher vivendo a vida novamente, voltando, quem sabe, a tornar-se o reluzente raio de sol que um dia fora e encher aquele casarão de ―Vida‖ com a alegria contagiante da felicidade.
João olhou para o amigo e mais que depressa contrapôs, pois, além de amigo deles, era, sobretudo, o médico de sua esposa.
--Ainda é cedo para tanto, Antônio. Isabel, nem deves pensar, no momento, em treinos na hípica. Precisas de um mínimo de três meses para recuperar-te de tudo pelo que passou.
--Três meses?... Ora, pois! Dr. João, tu deves estar louco, se pensas que vou ficar todo este tempo em repouso, meu amigo. É certo que concordo com o senhor que ainda seja cedo para treinos na hípica, mas, três
meses!?... Ah, meu caro doutor, isso realmente é muito tempo. Exclamou Isabel, levantando-se de chofre da
cadeira, como nos velhos tempos, e pondo-se a andar de um lado a outro.
Pedro e Antônio trocando olhares, não cabiam em si de contentes ao verem sua menina retomando hábitos tão antigos e que há muito não presenciavam.
--Certo, sem treinos na hípica, mocinha, mas podemos voltar ao clube Regatas e andarmos de barco descendo pelo rio, aproveitando para acompanhar o enorme desenvolvimento desta cidade em suas margens,
comentou Estela, aproximando-se da amiga, externando com nostalgia uma atividade que também poderia fazer, e que sempre lhe trazia muito prazer. Lembrou-se quando, nos bons tempos, Isabel, com maravilhosas
sombrinhas a girar-lhe pelos ombros, sempre combinadas com os trajes, causava êxtase em quem a
acompanhava, por sua beleza e formosura. Abraçando-a, entristecida, Estela não conseguiu deixar de pensar:
―--Que pena eu sinto, pela desastrosa e infeliz opção que tomou para a tua vida, minha querida...".
--Pois, não é que sinto certa nostalgia neste abraço, Estela? Afirmou Isabel, como se adivinhasse no que pensava a amiga, retomando o antigo jeitinho faceiro.
--Minha menina!... E não é para ter nostalgia por tempos maravilhosos que vivi, do qual, com a idade que me encontro agora, só restam as lembranças?
--Ora, pois, não deves falar assim, Estela, que me deixas triste, retrucou Isabel, abraçando-a em consolo.
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--Dizes isto porque tens apenas vinte anos, mas quando chegares aos trinta e cinco como eu, com certeza estarás cheia de lembranças da juventude, as quais te trarão a mesma nostalgia de que falas com desdém.
--Pois, sempre pensei que pouco deve importar-nos a idade cronológica, mas, sim, que devemos preocupar-nos em manter a mente jovem, para que ela não venha a envelhecer, acelerando assim nosso envelhecimento físico, respondeu Isabel às afirmações feitas pela amiga, que percebia entristecida.
Estela, deixando de lado a tristeza da sua realidade, uma vez que jamais aceitara envelhecer, perguntou com sinceridade à amiga, enquanto dirigiam-se para a saleta a fim de tomarem os licores ou café:
--Oh, Isabel, permite-me então voltar a viver a tua juventude como sempre fiz, desde que nos conhecemos, naquela maravilhosa viagem de navio, lembra-te?
--Como poderia esquecê-la, se foi uma das coisas mais marcante de toda a minha vida, respondeu a menina, revivendo a felicidade daqueles momentos.
Estela, quando entravam na saleta onde já se encontravam todos, inclusive as crianças, chamando por
Isabel, disse:
--Como senti tua falta durante todos estes anos. Como me fez falta esta alegria que trazes sempre consigo, minha amiga...
Isabel abraçando-se a Estela, respondeu-lhe com sinceridade:
--Também senti tua falta, Estela, em todos os momentos felizes que vivi, os quais eu gostaria de tê -los dividido contigo, como também nos muitos momentos angustiantes pelos quais tenho passado... Como gostaria de ter-te próxima a mim, Estela. Mas não foi por minha culpa que nos afastamos uma da outra, lembra-se? Disse Isabel, afastando-se num repente, em sentido de queixa.
--Não toques neste assunto, por favor, Isabel, não toques, pediu Estela, olhando para aquelas crianças, que por si só, justificavam sua antiga atitude.
Joãozinho e Mariana tentavam brincar com os gêmeos que não entendiam, sentados ali na colcha de retalhos, com Dora e Josefa sempre por perto...
Isabel, ao presenciar aquela cena, retomou o semblante preocupado, virou-se para a amiga e começou
a falar:
--Estela, meus filhos...
--Calma amiga, que, por enquanto, tudo está normal. Há crianças que demoram mais do que outras
para falar e andar, disse Estela, cortando o que viria, adivinhando pelo olhar.
--Achas mesmo, Estela?
--Mas é lógico que sim, pois temos um afilhado, João e eu, que veio a andar e a falar depois de quatro anos de idade. Portanto, não te preocupes com isso, pois está à vista que os gêmeos puxam pelo tio Pedro, sempre bonachão, como dizias, lembras?
--Peço a Deus que tenhas razão, do contrário...
--Calma, menina, calma, falou Estela, afastando-se com ela para a varanda da frente do casarão.
--Vamos sentar-nos aqui e trocarmos uma prosa. Estou louca para contar-te uma fofoca, disse Estela, despertando a curiosidade na amiga, que acabou por sentar-se a seu lado na branca namoradeira de ferro.
--Serás capaz de adivinhar com quem me encontrei no casamento de Alexandra?
--Ora, pois, com certeza com muita gente, por que ambos, ela e Guilherme, são muito bem relacionados, respondeu Isabel, irritada, retesando o corpo.
-- Não fiques nervosa com o assunto criança, por que se não estavas lá, como noiva, foi por escolha própria, opção própria... Então, não me venhas a tolher a ansiedade de contar-te algo que, com certeza, vai deixar-te mais furiosa que o próprio casamento deles. Pois, agora que as coisas foram ditas, deixe-me por
Deus, contar-lhe, declarou Estela com seu jeito direto, juntando as mãos em posição de súplica, fazendo Izabel
reconhecer que não tinha o porquê de se incomodar com aquele casamento, pois, na verdade, o que mais sentia era a perda de outra grande amiga, Alexandra.
--Ora, pois, dizes de uma vez, que estás a me matar de curiosidade, Estela.
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--Sabes quem encontrei toda prestativa e atenciosa enquanto ajeitava o maravilhoso vestido confeccionado pela não tão conhecida, na época, Madame Roseanne, e, lógico, convém lembrar, sempre, com dois enes, não é? Disse Estela, fazendo Isabel adivinhar de imediato de quem se tratava.
--Não... Não me digas que a megera da D. Nadir passou-se para o lado de minha amiga Alexandra, deduziu Isabel, com assombro.
--A própria. Ela se introduziu na enorme mansão como preceptora da moça já bem avançada em idade para ter uma preceptora, não achas? Perguntou Estela, que se revelava uma fofoqueira de primeira, para surpresa da própria Isabel, que se pôs a rir muito, sem saber se por causa do fato em si, ou da descoberta da
nova qualidade da velha amiga.
--Do que ris, se ainda nem contei o que aconteceu? Perguntou Estela.
--Ora, eu rio-me por perceber tão tarde, depois de tantos anos, o quanto está a me sair fofoqueira a amiga Estela. Respondeu-lhe Isabel, sem conter a risada.
--Pois bem, podes rir, rir muito, pois vai é te assombrares quando te disser que quem serviu de casamenteira no caso do estranho casal foi nada mais nada menos que a pretensiosa D.Nadir, hoje preceptora dos filhos do nosso governador.
--Não me digas, Estela. Não me digas que a megera, ao sair daqui, na noite de meu noivado, correu para a casa de Alexandra, começando então a armar a trama para me magoar. Mas que safada!... Bruxa!...
Megera que eu nunca consegui engolir, pois a empatia entre nós não cabia. Isabel falava tudo de uma vez, realmente surpreendida com o que lhe fora contado.
--Pois é. Não disse que ficarias furiosa? Imagina o que sofri todos estes anos pela vontade de contar-te tamanha traição, amiga, declarou Estela, com pesar.
--Ora, pois... Se foi assim tão grande teu sofrimento, foi por tua culpa mesmo, Estela. Porque por todos estes anos eu estive bem aqui, a não entender muito bem as razões de teu afastamento, como também, a
sentir tua falta de tal forma, que muitas vezes arrancou-me até lágrimas, queixou-se Isabel, aproveitando o
momento de intimidade.
--Um dia, talvez entendas minhas razões. Talvez, um dia, replicou Estela, olhando para os olhos negros, tão belos quanto nos velhos tempos.
Isabel, calada, a cismar com seus botões, surpreendeu-se novamente, quando Estela, assim como quem não quer nada, falou:
--Pois que a diferença de quinze anos entre o noivo e a noiva não foi impedimento para que a sociedade comparecesse em massa, para testemunhar tão fino casamento, seguido de uma festa que teve a
duração de três dias, na enorme fazenda dos pais da noiva, que estavam felizes, por descontarem uma
duplicata que já tinham como perdida. E, por isso, nada os impediu de gastar o que tinham e não tinham, em tão comentada festança.
Isabel mantinha-se calada, pois se lembrava de seu apaixonado Guilherme com carinho, uma vez que sempre fora um grande amigo para ela e graças a ele é que descobrira a paixão pelo hipismo.
Estela, não entendendo o silêncio da amiga, assim mesmo continuou, pois que o assunto fazia-lhe fervilhar o sangue nas véias:
--Pois, não é que dizem as más línguas que há tempos a família de Alexandra não vinha muito bem de finanças e ofereceu uma boa quantia em dinheiro para que D. Nadir arranjasse aquele casament o, que nada
mais foi que puro interesse financeiro emergente. A família de Guilherme, com o noivado do filho, investiu pesado em gado nas já falidas fazendas da família da noiva, que, assim, conseguiu reerguer-se e hoje faz parte até da política do país.
Isabel, com a cabeça meio atordoada pelo que ouvira, perguntou:
--Mas e a megera da D. Nadir, como está?
--Bem. Tal pessoa parece realmente fadada a conhecer as pessoas certas, e a estar nos lugares certos, nos momentos, diria eu, muito apropriados para suas conveniências, alfinetou Estela, com aquele tom de fofoca que muito divertia Isabel.
--Mas!... Eu pergunto, financeiramente... Lembro-me de quando precisei emprestar-lhe um vestido para uma festa, pois o que vestia eram aqueles envelhecidos modelos ganho sabe-se lá de quem, trazendo nos
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ombros sempre o bendito casaquinho, ganho com certeza de algum outro alguém, falou Isabel, agora usando também de tom maledicente.
--Pois, surpreende-me saber que minha amiga gosta de fazer um comentário maldoso, pois que lhe conto, que hoje, devido às coincidências provocadas por ela mesma, não está mais precisando ganhar nada de ninguém, pois, com as altas comissões que sempre recebeu de Madame Roseanne, por cada cliente que lhe levava, e mais a enorme bolada que lhe rendeu o papel de cupido em tão falado casamento, hoje ela tornou-se experiente membro da bolsa de valores, na qual, muito bem relacionada, está sempre a ganhar nas compras e vendas de ações, muito bem aplicadas.
--Ora, pois, não me digas!... Exclamou Isabel realmente surpreendida com a capacidade da insossa megera, que um dia fora sua terrível preceptora.
--Pena é que, apesar da grande inteligência, não conseguiu até o momento arranjar um bom casamento para ela própria, pois, totalmente desprovida de beleza e simpatia, ainda não conseguiu um homem
rico e cego, ou, como direi, quase cego, para dividir com tal megera a mesa e o leito. A mesa não seria tanto o
problema, porque conhecemos enormes jornais que a tapariam completamente, mas, no leito? Por mais que lhe tapassem a cara, pois dizem os homens, sermos no resto todas iguais, seria muito difícil encará-la nas noites de insônia... E tem mais, minha amiga, aconteceu um certo zum...zum...zum, dizendo que ela havia encontrado um marido português, por correspondência. Mas como ela, apesar do dinheiro que obteve e das boas relações que possui, levantou ao longo destes anos muitas inimizades -- acredito eu, mais no lado feminino -- e que, alguma delas, penalizada pela escolha do pobre mancebo, escreve-lhe, falando das qualidades da futura esposa que, pelo que ouvi dizer, já foi ao porto de Santos por três vezes, mas o noivo prometido..., nunca chegou. Sabes, Isabel, se pudesse adivinhar a dona de tão grande e maravilhoso feito, seria capaz de beijar-lhe os pés, servindo-a como criada pelo resto de meus dias, de tão feliz que fiquei com o sumiço do tal noivo por correspondência, terminou Estela, num tom de deboche e um forte cunho de perversidade.
--Puxa, Estela, que me saíste melhor que a encomenda, em sentido de falar da vida alheia, hein? Afirmou Isabel rindo, juntando-se à amiga, que há muito vinha controlando o riso para contar-lhe em detalhes, a picantérrima novidade.
Os homens, lá dentro, não entendiam do que tanto riam ses porque, além de colocarem os assuntos em dia, trataram também de suas conveniências particulares, como enquanto tomavam café, Antônio pedir a João:
--Ah, esqueci-me por completo de pedir-te, João, que me convides para a próxima reunião daquele grupo fechado de elite, como teu convidado especial, pois que estou interessado em entrar para aquela hierarquia que tantas vezes recusei.
João, surpreendido pelo pedido do amigo, feliz então em vê-lo resolvido a entrar para o movimento e, ao mesmo tempo, tomado de medo pela recusa que poderia acontecer por parte do grupo, pelo fato de ele ter- se casado com a sobrinha ainda menina em tão repente núpcias, estando eles, por isso, renegados pela sociedade, e por alguns grupos sociais e filantrópicos.
Antônio, sob o olhar surpreso do irmão Pedro, que estranhara o pedido, intrigou-se mais ainda, a ponto de engasgar-se quando, do mesmo jeito displicente, Antônio completou:
--Gostaria, pois, de realmente comparecer a esta reunião, amigo, porque, depois de muita prosa com Pedro, chegamos à conclusão de que o ideal é permitirmos o loteamento de nossa propriedade que vem atrapalhando o loteamento das propriedades do grupo em questão. Nossa gleba fica bem no centro do terreno deles, e nossa recusa atrapalha o arruamento do bairro novo na zona Sul, que há algum tempo e les estão planejando.
--Esta é, pois, uma boa medida e decisão, Antônio. Pois vossa teimosia de não entrarem com vossas terras no loteamento impediu-os de fazê-lo, e, todos podem ver que a cidade cresceu e muito, para além daquela área, ficando então aquela enorme gleba verde perdida, uma vez que, nesta guerrinha entre os proprietários, eles vos impediram de passar pelas terras deles, dificultando assim a cultura que um dia lá
chegaram a ter.
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--Nossa intenção nunca foi vender ou lotear aquelas terras, João, e, depois das propostas para loteamento, coisa de que não aceitamos participar, paramos com as culturas da propriedade, não devido à pressão deles, mas pela dificuldade de controlá-las, pois hoje não é novidade para ninguém a dificuldade de arranjarmos capatazes responsáveis e honestos. Analisamos que o que temos feito é atrapalhar o desenvolvimento da própria cidade e também prejudicar os amigos vizinhos à nossa propriedade, pois percebemos que lhes desvalorizando as terras, os amigos seriam forçados a vender por um preço muito baixo, uma vez que bem no centro do loteamento estaria ali totalmente abandonada a nossa propriedade, à mercê de invasores e marginais, completou Antônio, para desespero de Pedro, que não tinha ideia de onde o irmão queria chegar.
Pedro, balançando a cabeça, pois que nunca discutira tal assunto com o irmão, ficou a ouvir o desfecho daquela prosa, para poder entender as reais intenções de Antônio.
--Fico realmente contente com a decisão, e procurarei transmiti-la o mais cedo possível aos amigos proprietários e vizinhos, pois me chegou ao conhecimento que poriam os lotes à venda assim mesmo, amarrando completamente a propriedade dos irmãos Gonçalves.
--Amarrar-nos? Jamais o conseguiriam, porque, por ocasião do nosso loteamento particular, usaríamos a passagem de arruamento deles.
--Ah, sim, isso é verdade, Antônio, seria uma continuidade do então loteamento, falou João.
--Relutamos todo esse tempo, pois estávamos na dúvida de doarmos ou não aquela propriedade ao governo para a fundação de um hospital municipal, de que a região está muito necessitada, não achas, João?
--Hospital municipal? Bem... Mas é lógico que sim. Porém, pelo que me consta, os proprietários estavam com intenção de lotear para a fundação de um bairro de elite, totalmente residencial, segundo ouvi dizer. Daí, um hospital municipal no centro de suas terras não seria bem de acordo com as intenções deles, retrucou João, que Antônio sabia estar interessado em comprar dois lotes grandes para construir sua residência.
Pedro, ainda não entendendo muito bem, continuava calado como sempre.
--Fica tranquilo, Antônio, e considera-te já meu convidado especial para a reunião da próxima quinta- feira, às vinte horas, pois não?
--Será um prazer para mim ser apresentado e filiado a este grupo de elite, por tão jovem e próspero médico, João.
--Pois meu prazer será muito maior em filiar junto a eles, senhor capitalista tão respeitável, honrado e amigo como tu, Antônio.
--Então, estamos conversados; posso deixar todos estes pequenos detalhes contigo, não é, amigo?
--Mas, é lógico que sim, Antônio, respondeu João, ainda inseguro. Antônio, percebendo-lhe a insegurança, completou:
--Pois, já que estamos falando em negócios, sabes que amanhã temos uma reunião importante com o nosso Arcebispo, pois que o padre Santo, com seu jeitinho muito peculiar, conseguiu que Pedro e eu o agraciássemos com a doação de um terreno que ele vem a muitos anos pleiteando, aliás, desde que jantava miudamente aqui em casa. Pois é, para ver como são as coisas, o que tem que ser, acaba acontecendo, por mais que se adie a coisa, concluiu Antônio, sentindo a confiança voltar a João, ao saber que o amigo estava novamente em contato com a cúpula do clero.
--Folgo muito em saber e os parabenizo por tal gesto tão humanitário, respondeu João, levantando-se para apertar-lhe as mãos em cumprimento.
Enquanto isso, Pedro pensava com seus botões: "--Ora, ora, pois... O que está passando pela cabeça de Antônio, para tornar-se de um momento para outro tão filantropo, ou diria, demagogo!?... Mas filantropia, ou seja, demagogia, para conseguir seus indecifráveis intuitos, com propriedades que são parcialmente minhas? Ah, meu irmão, que estou achando que isto está indo longe demais!‖
Conversaram então sobre trivialidades, até João chamar Estela.
--Já não é hora de pegarmos as crianças e irmos indo? Temos a missa das dezoito horas na Catedral da Sé e, sendo assim, não podemos mais tardar-nos em tão agradáveis prosas, Estela; expunha João,
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lembrando o tardio da hora. Chamando as crianças, despediram-se e, quando quase entravam no carro, Antônio solicitou:
--Tenho, pois, aqui comigo, alguns convites já redigidos e, sem querer abusar dos amigos, já que estão a caminho da Catedral, poderíeis, talvez, entregar alguns em meu nome, justificando por eu assim proceder, devido aos sérios compromissos que tenho marcado para esta semana, que me fariam atrasar a entrega deles, uma vez que não seria de bom-tom, entregá-los em cima da hora, não achas, Estela?
--Ora, pois, que certo não seria... --Passa-nos, pois, os que têm aí, Antônio, que durante a semana encarregar-me-ei de entregar o restante, aproveitando assim, para revisar tua lista com a minha amiga Isabel.
--Para tal evento, os amigos não poderão esquecer-se de ninguém, para não serem mal interpretados, entendes o que digo, não é, Antônio? Concluiu Estela, num sorriso amofinado.
Entender o que quisera dizer Estela, não entendera, mas o que importava é que os convites já estavam em suas mãos, e o restante, como ela mesma afirmara, viria apanhar durante a semana. Entendendo
ter conseguido atingir seus objetivos, Antônio abriu um largo sorriso e respondeu, apertando-lhe a mão:
--Mas é lógico que entendi, Estela. E conto contigo para que não cometamos nenhuma gafe, pois que como percebeste, não podemos contar muito com Isabel, uma vez que está sempre às voltas com as crianças.
--Deixa comigo, Antônio; e tu, minha amiga, descansa que cuidarei de tudo.
Quim, fechando a porta do grande carro, mandou que o cocheiro partisse, fazendo uma leve mesura aos visitantes que partiam. Os familiares adentraram a casa, exaustos, cada um por suas razões, e sentaram- se na saleta a recomporem-se, quando Pedro, que se mantivera calado até então, simplesmente perguntou:
--Filantropia ou demagogia, Antônio?
Levantando-se e pegando pela mão da esposa para subirem, respondeu:
--Demagogia, Pedro..., pura demagogia, meu irmão.
--Mas com o meu dinheiro, Antônio? Perguntou Pedro, assombrado.
--Depois conversamos, Pedro, estou exausto, respondeu, abraçando Isabel.
--Mas, Antônio...
--Pedro, ora, pois, será que nunca ouviste dizer "Que os fins justificam os meios?", interveio Antônio cinicamente.
Isabel, olhando espantada para o marido, lembrava-se de um dia ela mesma ter usado este ditado, em seus propósitos de juventude.
--Talvez já. ―Os fins justificam os meios...‖. Ora, pois, é lógico que já ouvi. Mas nunca com o dinheiro
dos outros, meu irmão, falou Pedro, repetindo com pesar a frase do irmão.
--Depois falaremos sobre isso, Pedro, respondeu-lhe Antônio, que, abraçado à esposa, ia em direção às escadas, para recolherem-se em seus aposentos.
--Antônio, o que está querendo dizer tio Pedro, que não consegui entender? Perguntou Isabel, que estranhara o tom com que Pedro havia se expressado.
--Coisas de homem, minha menina... São assuntos sobre finanças, assuntos com os quais minha amada não deve se preocupar.
Subindo as escadas, abraçados, como sempre faziam, ao cruzarem com Josefa, Antônio ordenou:
--Hoje à noite, vamos fazer nossa refeição no quarto, Josefa, peça à Tina que nos prepare algo leve.
--Senhora, as crianças..., começou a dizer Josefa, quando foi cortada por Antônio:
--As crianças ficarão muito bem com Dora, Josefa. Esta tarde a patroa vai repousar, pois seu dia foi desgastante.
Josefa, já acostumada com o casal que, por qualquer coisa, enfiava-se no quarto, deixando a cargo de
Dora todos os cuidados com as crianças, deu um dar de ombros, como se concordasse, virou -lhes as costas, pensando em aproveitar a tarde de folga junto à sua família.
--Antônio, eu me sinto mal quando nos recolhemos assim tão cedo aos nossos aposentos, pois me parece que os criados ficam a comentar as coisas que lhe passam pela cabeça, murmurou Isabel, envergonhada.
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--Coisas como eu querer ficar a sós com minha amada? Perguntou-lhe o marido, beijando-a na testa, enquanto abria a porta do quarto.
Isabel, sem graça, sabendo que Josefa ouvira o que fora dito, retrucou:
--Estes momentos, que eu adoro, causam-me também muita preocupação, pois me sinto vexada diante de nossos criados.
--Ora, pois, minha querida, deixa desses pensamentos. Não é novidade para eles a paixão que eu sinto pela minha esposa; e jamais vou deixar de viver nossos já tão raros momentos, pois sempre nossos filhos a roubam de mim, preocupando-me com o que vão pensar e falar, os nossos criados, disse Antônio, já a
abraçando e trazendo-a para bem perto de seu corpo, provocando assim aquele entorpecimento em ambos,
que apesar dos anos já decorridos desde o casamento, eles amavam-se ainda com muita paixão. E Isabel, quando nos braços do marido, esquecia-se de tudo, permitindo-se entregar totalmente àquele sentimento maravilhoso que a levava ao êxtase completo, tornando-a a mulher mais feliz do mundo, e suas grandes preocupações deixavam de existir.
Abraçavam-se sempre na mesma urgência de se tocarem, quando Isabel, entreabrindo alguns botões do colete e da camisa, punha-se a tocá-lo timidamente com os dedos por sobre a pele do peito forte, causando-lhe arrepios e tirando-lhe gemidos profundos.
--Minha Isa, minha sempre amada Isa, repetia Antônio, também procurando desfazer-se das complicadas roupas da menina, no afã sempre presente de tê-la perto de si.
--Como te amo, Antônio... Como te amo, repetia Isabel, sentindo as mãos grandes e ágeis percorrerem-lhe o corpo.
E, então, num passe de mágica, as preocupações deixavam de existir, nada mais os impedia de
amarem-se profundamente como se fosse a primeira vez. Beijavam-se com a mesma gana, resultando naqueles lábios sempre mordidos, prova do amor impulsivo que ainda sentiam um pelo outro.
--Adoro sentir teu gosto em minha boca, minha amada. Adoro sentir tua pele sob minhas mãos. Adoro fazê-la minha, pois, por tantos anos achei isto tão impossível que ainda hoje, quando a tenho assim comigo,
parece-me um sonho ainda a se realizar.
Isabel inebriada pelos carinhos do marido, só sabia dizer:
--Amo te tanto, Antônio, por teu jeito de ser, por teu jeito de fazer-me despertar para este sempre renovado sentimento de entregar-me totalmente, pois, para mim, somente esses momentos contam em minha vida e tudo o mais torna-se irrelevante, meu amado companheiro.
E faziam amor, com toda a liberdade de fazê-lo, pois ―simplesmente se amavam...".
Após o sempre grande frenesi de que eram possuídos, ficavam ali a descansar nos braços um do outro, passando por um sono reparador. Depois, conversavam, conhecendo-se cada vez mais, aceitando-se um ao outro, com defeitos e qualidades, ou ainda, imbuídos do enorme sentimento, simplesmente repetiam a entrega, como se fosse muito difícil estarem tão próximos e não gozarem novamente o prazer de se amarem
de maneira mais completa.
Isabel dormia, quando, sentindo mãos a lhe acariciar os cabelos, abriu os olhos, surpreendendo-se por já ser noite, pois que a luz da enorme lua cheia através da vidraça prateava aquele quarto. Sentando-se na cama, percebeu a bandeja já posta na mesinha redonda, com certeza, trazida por Dora.
--Estou com fome, participou Isabel. Espreguiçando-se, esticava os braços acima do corpo, curvando- se para trás, dando um gemido gostoso e relaxante, deixando à mostra os seios pequenos com mamilos rosados sob a luz prateada que parecia abraçá-los numa carícia, e a menina percebeu o olhar do marido. Então, pulando para fora da cama, murmurou:
--Deixa, amor, pois, como disse, estou faminta.
--Eu também...
--Percebe-se, disse Isabel, enquanto, amarrando o cinto do robe, permitia que ficasse aberto sobre o peito, pois admirá-lo era algo que dava profunda satisfação a seu homem.
Olhava-o e espalmava as mãos sobre a cama, curvando-se, permitindo expor-se ainda mais ao homem de olhar brilhante que já tão bem conhecia.
--Pois, informo-te, meu amado, que minha fome agora é de comida-da-da, entendeste? Co-mi-da...
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--Ah, safada, que me apresentas o pão da vida e tira-o de minha boca, retrucou Antônio, realmente revivendo a urgência inerente à sua pele.
--Pois vou satisfazer agora a fome que me faz roncar o estômago, sem importar-me no momento, com teu pão da vida, troçou a menina, dando sua jogada de cabelos, que sabia muito bem o efeito que causava.
Antônio levantou-se da cama e, colocando o robe, aproximou-se da farta bandeja que descansava esquecida sobre a mesa redonda. Aproximou-se de Isabel por trás e, abraçando-a, pôs-se a beijar-lhe o pescoço, enquanto com uma das mãos levantava um bago da uva que fazia parte da sobremesa, pondo -o na boca de sua amada, que o recebeu com os lábios entreabertos sugando os dedos dele com volúpia.
--Ah, safada, se continuares a instigar o animal como o fazes, teu estômago continuará a roncar até o
amanhecer, murmurou Antônio, abraçando-a, procurando-lhe a boca, beijando-a com paixão.
--É a lua cheia, murmurou a menina, sentindo-se tremer naqueles braços.
--Sim. São as bruxas da lua cheia...
--Es-tou com fo-me...
--Eu também, amor...
E, então, aconteceu... Novamente. Mas ali, a rolarem sobre os móveis, terminando no grande tapete de pele de carneiro, mas, como sempre, sempre sob os raios prateados da mesma lua cheia que, há muito, era cúmplice daquele sentimento.
Jantaram por fim, sob a iluminação do pequeno candelabro, que com a chama a tremular, tentava avisá-los que a noite já ia alta e que até a terra tinha girado, seguindo o seu curso, deixando-os ali, sem a presença da lua confidente, numa tênue penumbra sempre prateada. Alimentaram-se... Sentados frente a frente, olhavam-se sem nada dizer, pois que tudo o que poderia ser dito estava estampado em seus olhos, que, brilhantes sob o reflexo da tremulante chama, parecia torná-los etéreos de tanta felicidade.
Então, de mãos dadas e em direção à cama, retirando o robe um do outro, deitaram-se por fim, para dormir. Dormir ainda abraçados, como se temessem que alguém ou alguma coisa pudesse separá-los, roubando-lhes a razão de seu viver.
Os dias passavam. A alegria que Isabel vivenciara e tivera no olhar, quando da ocasião da visita dos amigos João e Estela naquele almoço de domingo, parecia esmaecer-se logo que enfrentou sua realidade junto aos filhos, aos quais amava demais. Certo dia, cismando com seus botões, enquanto observava Dora brincar com eles, Isabel perguntara-se, como sempre o fizera, o porquê, o porquê de eles serem tão diferentes das outras crianças.
"--Por quê? Por que meus filhos não trazem no olhar a mesma vivacidade que presenciei nos olhos de Joãozinho e Mariana?... Por quê?... Por que me parecem tão frágeis e dependentes? --Por quê?... Por que não andam, para correrem em brincadeiras, como os outros? Por quê?... Por que não falam, para se comunicarem, dizendo o que sentem ou o que querem?... Por quê?... Por quê? Por quê? Minha cabeça vai acabar explodindo de tantos porquês, Meu Deus.―
Dora, vendo sua menina a apertar a cabeça, enquanto de seus olhos corriam lágrimas, conteve-se e deixou-a lidar com a própria realidade, por mais que isto lhe doesse no coração. "--Ah, Antônio, se tivesse coragem de comentar contigo meus temores. Nosso amor é tão grande, envolvente e verdadeiro, que às vezes faz-me pensar que tudo na vida tem um preço. Mas, que preço... Que preço alto, Antônio, nós temos que pagar por nossa felicidade." Observando, então, atentamente os filhos, de um salto, concluiu: "--Meus filhos, meus amados filhos, não são normais!" E, andando de um lado a outro, cismava em pensamentos: ―--Preciso falar com alguém, preciso dividir este pesadelo com alguém, mas não Antônio, não com ele, que parece nada perceber. Dora, então?" E andava... Andava...
Dora, percebendo-lhe a inquietude, sofria por ela, pois conhecia suas razões. "--Pobre criança, pobre menina moça, que se fez mulher na felicidade do amor, pagando o preço alto na maternidade." Dora, ali com os pequenos, pensava em como poderia aliviar sua menina de tanto sofrimento e levou um susto quando foi tocada no ombro e, sem levantar a cabeça, ouviu a voz querida que lhe dizia:
--Vou sair.
--Para onde, pequena?
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--Vou com meu Fuzarca.
--Ele vai ouvi-la?...
--Sim, Dora, pois é apenas isso que preciso.
--Estarei sempre aqui, filha.
--Eu sei Dora... Um dia... Quem sabe, talvez, talvez um dia, minha amiga...
--Vá, então, mas cuidado, pois que a cada passeio seu tenho sempre que fazer uso de meus conhecimentos de curandeiro.
Rindo em meio a sua tristeza pelas palavras da amiga, despediu-se:
--Até, Dora...
--Até, pequena, e não se preocupe com os miúdos...
--Estando contigo, nunca me preocupo, Dora.
E saiu. Pondo-se a correr, passou por Marga e Tina sem nada dizer, fazendo com que as duas entreolhando-se, murmurassem:
--A minina sofre, Tina...
--Eu sei... A nossa minina patroinha, sofre...
Fuzarca estava ali, como sempre estivera. Ali, a sua espera, e, como sempre, já selado.
--Meu querido Quim, sempre adivinhando minhas necessidades, murmurou Isabel, montando seu cavalo e saindo em disparada pelo campo.
Antônio, que presenciara aquela louca partida, olhou para Quim e indagou:
--Aonde vai agora a nossa menina, Quim?
--Por aí, senhor... Como sempre, por aí...
--Mas, por que, Quim?
--Ora, patrão... Vai desafogar-se de alguma coisa, com certeza.
--Será que eu lhe fiz alguma coisa, Quim? Parecia-me bem hoje, ao tomamos o café da manhã, ou melhor, quase bem, pois tinha no olhar a tristeza que de repente percebo, e muito me preocupa, disse Antônio,
ao acompanhar com o olhar a disparada da sua pequena.
--Meu senhor não perguntou, não quiseste saber?
--Não, Quim, eu nada perguntei, nada perguntei, como sempre.
--Pois devias ter perguntado.
--Ora, Quim, fazer o quê, homem de Deus?
--Perguntar, ora, pois...
--Não, Quim, isso não...
--Mas, não, por quê?
--Tenho medo, Quim, sempre tive muito medo.
--Ora, pois não entendo do que falas, patrão.
--Tenho medo, Quim... Por um acaso, alguma vez já sentiste medo, meu amigo?
--Já, patrão. Já senti e muito, muito medo.
--Ah! Quim, eu já sei. Foi quando fizeste a viagem com aquela ideia maluca da menina de trazer-te no
baú?
--Não, patrão, aí eu não tive medo, não.
--Dize-me então quando, pois me deixas curioso, homem, falou Antônio, ansioso.
--Pois digo que foi desde que meu patrão ficou enfeitiçado pela menina, ainda lá na nossa distante ilha,
respondeu Quim, abaixando a cabeça.
--Mas, por quê, Quim? Não me digas que temia que eu fosse capaz de estuprá-la, num momento de loucura, completou de maneira ríspida.
--Não, meu senhor. Sempre soube que meu patrão a amava e que jamais lhe faria mal.
--Então, dize-me quando sentiste medo, Quim. Se é que tens noção do que é sentir realmente medo de alguma coisa.
--Pois eu sei. E como sei. Eu e a nossa velha Ana, sempre tememos muito, senhor, completou, olhando-o nos olhos.
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--Tu e Ana... Mas, por que e de quê, Quim?
--Disso tudo que está acontecendo, senhor.
--Quim, juro que não te entendo, amigo.
--Não entendes porque não enxergas nada, nada, além da tua menina patroa.
--Ora, Quim, que já não quero saber é de nada.
--Eu sei... Eu sempre soube. Pois que este é o grande medo do patrão, e o que não queres saber é o porquê de a realidade ser dura e o preço tão alto... Muito alto...
Antônio não gostando nada do rumo daquela prosa, comentou:
--Vou atrás dela, Quim, vou atrás dela, que tua conversa está muito estranha, disse Antônio, começando a afastar-se.
--Não faças isso, patrão, não agora. Deixa a menina. Este não é um bom momento para ver-te, falou
Quim, com sabedoria.
--Vou então até em casa, pois Pedro está expedindo as sacas e preciso acompanhá-lo.
--Eu sei, patrão...
Andando rapidamente, Antônio resmungava, fazendo-se ouvir pelo amigo:
―--Quim sempre sabe. Este amigo sempre sabe. Sabe de tudo... Pois eu, eu não quero saber. Recuso- me a saber o que o amigo sabe, se isto me custar a felicidade que consegui‖, concluiu Antônio, quando, de longe, ainda ouviu:
--Ah!... Então o patrão também já sabe... Só que não se importa com isso...
Fazendo de conta que não ouvira, Antônio pôs-se a andar mais rápido. Balançava a cabeça, tentando afastar o triste pensamento que lhe ocorria.
--Não pode ser, Meu Deus... Não pode ser. Está tudo normal, tudo ficará dentro do normal no devido tempo. Cruzou rapidamente com Pedro e o ouviu dizer:
--Antônio, a carga já está carregada, e Zico te chama para despachá-la, disse Pedro, indo ao encontro do irmão, que atravessava o pátio quase a correr.
--Pois faze-o por mim, Pedro. Hoje não estou com cabeça para nada. Despacha por mim, Pedro, por
favor.
--Como quiseres, Antônio. Alguma coisa te aflige, meu irmão? Perguntou receoso.
--Muitas, Pedro, muitas coisas, respondeu Antônio, sem parar de andar.
Entrando em casa, foi direto para o escritório, onde se trancou. Sentou-se atrás da escrivaninha e pôs
as mãos na cabeça, desolado. Ficou tempos ali, sem perceber que as horas passavam. De repente, ouviu um bater na porta que reconheceu imediatamente. Levantou-se e, tentando se recompor, abriu a porta para aquela pequena de cabelos negros, longos e encaracolados que, com olhos também negros e desmesuradamente abertos, de um salto lhe pulou ao pescoço e começou a chorar, chorar, chorar. Percebendo que a apertava forte enquanto misturavam seus prantos, a custo afastou-se dela. Só sabia dizer:
--Minha Isa, minha amada Isa, minha sempre muito amada Isa...
Tentou enxugar-lhe as lágrimas com seus dedos longos, enquanto, sem conseguir controlar as suas, permitia que corressem soltas, demonstrando também o quanto sofria...
--Meu amado, o que podemos fazer para remediar tanta aflição?
--Não sei, minha querida. Falarei com João, que, com certeza, indicar-nos-á um tratamento para recuperá-los, no que for possível.
--Nandinho deve ter problemas com as pernas, pois não consegue manter-se de pé.
--Não digas isso, minha querida, pois deves estar enganada, uma vez que nosso menino é ainda muito
novo.
--Mas sinto que existe algum problema com ele também, Antônio, como com os gêmeos,
principalmente Joaquim, que, de tão fraquinho, mal se mantém sentado com equilíbrio.
--Por que nossos filhos são assim, Antônio? Por quê?...
Antônio, em desespero, sentindo-se culpado por todo o sofrimento de sua menina, somente conseguia chorar, porque jamais admitiria que pudesse estar acontecendo o que mais temera desde o início. Abraçavam-
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se muito apertado como a fundir coragem um ao outro, quando Isabel, num repente, falou, abraçando-se ainda mais ao marido:
--Tenho de te dizer uma coisa, mas estou tomada de medo de tua reação.
--Pois, dize-me, minha amada, e não tenhas receio, pois que estamos juntos para tudo, não é mesmo assim que sempre conversamos?
--Amo-te muito, Antônio.
--E eu te amo de uma forma tal, que se tornou minha única razão de viver, amada...
--Acho, pois eu acho que agora estou esperando a nossa menininha, que tanto planejamos, amor. Com certeza ela terá olhos azuis como tio Pedro, não é Antônio? Perguntou-lhe Isabel, em desespero.
Chocado, totalmente aturdido, com os ouvidos a zumbirem, pensou estar vivendo um pesadelo, ao ouvir o que lhe dissera sua amada:
--Oh! Minha amada, o que a vida tem feito conosco?
--Estamos juntos, amor, e isso é o que mais me importa, Antônio. Tenho certeza de que nossa filha nascerá normal, e ela crescerá como a Mariana, espertinha e falante.
--Tomara... Tomara, minha querida, que Deus nos conceda esta graça, murmurou Antônio, ainda chocado com a novidade. "--Mais um... Meu Deus! Mais um filho... Mais um para eu evitar olhar, para eu não
acompanhar o crescimento e a proporção do castigo de que sou merecedor, por ter amado tanto esta minha
criança. Eu mereço Meu Deus, pois sabia dos riscos que corríamos em nossa união, mas ela, ela é inocente em tudo isso, pois é pouco mais que uma menina, não sabendo as implicações de um relacionamento entre parentes direto, do mesmo sangue‖. Abraçando-a ainda em pranto, só sabia dizer:
--Perdoa-me, minha amada Isa, perdoa-me por meu egoísmo e insensatez.
--Ora, do que falas, meu marido, que jamais percebi egoísmo e insensatez em tua pessoa, sendo esses atributos, mais encontrado na minha natureza, sempre, ambiciosa, egoísta e muito, muito insensata.
--Cala-te, minha amada, pois não sabes o que dizes, pediu Antônio, beijando-a com a louca paixão que
sentia.
Tina, preocupada com o patrão quando de sua passagem pelo pátio, depois de algum tempo,
sabendo-os trancados no escritório, resolveu levar-lhes um chá de melissa com biscoitos e torradas.
Batendo de leve na porta, esperou...
--Tina... Abençoada Tina. Vê como nossa velha Tina adivinha nossos desejos, Antônio. Pois que nos traz seu delicioso chá com biscoitos e torradas, amor, disse Isabel, voltando-se para o marido e beijando a velha no rosto sempre melado, murmurou com carinho:
--Você é simplesmente maravilhosa, minha Tina, obrigada.
Antônio, que se levantara, olhava para a negra com olhos lagrimados, quando, passando o braço sobre seus ombros acompanhou-a até a porta, onde falou com humildade:
--Este chá era realmente tudo o que mais precisávamos neste momento, minha doce Tina, obrigado.
--Hum, hum, qui meus sinhôzinhos num tá cum cara boa não... Tina sabi di um tudo, i Tina fica tristi di vê u qui tá acuntecenu. Trata, pois di tumá logu esti chá, pra módi ocêis ficá mais forti, pra módi num si arreliá
tantu cum a vida não, pruquê na vida, sempri tem u ladu bom das cosa, i é nissu qui a gente tem qui si agarrá.
Isabel, a servir o chá, veio a correr ao encontro de Tina. E ainda falou antes que ela se retirasse de
vez:
--A nossa Tina, Antônio, sempre falando com grande sabedoria. Adoramos-te, Tina...
--Hum, hum, qui a véia Tina adora ocêis tamém, sinhá, inda mais agora qui a sinhá tá prenha di novu,
trazenu dessa feita pra alegria di tudo nóis, uma coisinha mucho linda, i qui vai trazê a felicidadi da casa di vorta. Tina fala, pruquê Tina sabe das cosa, disse a velha com enorme sorriso. E, naquele andar bamboleante afastou-se a doce Tina, mal sabendo a alegria e a esperança que deixava no coração dos angustiados patrões.
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Capítulo 2
A Festa
Mais uma vez, Fred esmerou-se ao máximo na organização da grande festa que reabriria os salões do casarão à sociedade paulistana. Poupando a patroa de qualquer aborrecimento na organização, ficava mais à vontade em determinar as funções de cada um dos subordinados. A casa estava mais para quartel general do que para residência, pois até um apito Fred arranjara, para tentar poupar-se do ir e vir de um lado a outro da casa. Quem se divertia e muito com isso, era Toninho, que, sempre ao lado de Fred, a quem se afeiçoara demais, delirava com aquele bando de pessoas e seu eterno vai e vem. Era um batalhão de pessoas, pois Fred havia pedido a Antônio mais seis elementos, para conseguir pôr a casa em ordem a tempo.
--Não poupes esforços, Fred. Quero que esta seja a festa do ano, uma vez que receberemos pessoas da elite de São Paulo e da Capital, Rio de Janeiro. Portanto, desejo que tudo seja organizado com muito capricho, gosto e requinte.
--Podes deixar comigo, patrão. Esta sempre foi a minha área, afirmou Fred, com o peito estufado, uniforme impecável e seu jeito peculiar de se expressar.
Isabel, de longe, acompanhava tudo, aliviada com a capacidade que um dia subestimara em Fred, para conduzir as mais variadas situações. Tina era quem não gostava muito do andar das coisas, porque Fred,
sempre lhe atazanando a cabeça, apresentara-lhe um cardápio, que a negra ficara assombrada só de ouvir.
Fred, fazendo questão que a família aprovasse o menu para a festa, fez com que a velha preparasse para uma simples noite de quarta-feira, uma degustação completa do que seria servido no jantar da festa, desde os aperitivos, até as sobremesas. Isabel enjoada como estava, naquele dia não tinha canto da casa onde conseguisse ficar, pois a sutileza de seu olfato fazia-a sentir os cheiros onde estivesse, e voltando-se para Dora, disse:
--Vou passar uns dias no chalé do amigo Quim, Dora. Isto, se não chegarem lá estes odores tão terríveis, que, para mim, parecem atingir além dos oceanos. Tenho a impressão de que até em minha querida Ilha da Madeira este odor consegue chegar, deixando a minha tão saudosa Ana preocupada com o que estará apodrecendo em seus guardados.
--Mas que exagero, menina, retrucou Dora, rindo da imaginação da pequena.
--Nunca passei tão mal assim nas outras gestações, Dora, afirmou Isabel, com um tom velado da esperança que tinha de conseguir, desta vez, dar a luz a uma criança perfeita. Esperança que jamais passara despercebida pela sempre atenta, Dora.
--Quem sabe, não é, filha?
--Deus é quem sabe, Dora, somente Deus, disse Isabel, com muita esperança, enquanto passava a mão em algumas coisas, jogando-as em uma valise.
--Então, você vai mesmo? Perguntou Dora, ainda não acreditando.
--Mas é lógico que sim, Dora. Não estou suportando mais correr de um lado a outro, sempre para bem longe deste odor. E, também, Dora, de uns dias para cá, estou mesmo com vontade de levar uma boa prosa com meu velho amigo Quim.
Dora, aproveitando o que dissera a pequena, murmurou:
--Tina e Marga andam também reclamando que a menina não liga mais para elas e, quando souberem então que sua pequena foi passar uns dias com o velho... Aí, Meu Deus, é que vão morrer de ciúme!
--Ah, Dora, não fales desse jeito, que me fazes sentir muito mal... Não vês que preciso sair daqui, pois não consigo suportar o cheiro de nada, quanto mais ficar na cozinha com aquele cheiro de café torrado e pasta de sabão, que só de falar, arrepia-me toda.
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--Eu sei e tento explicar para elas, mas Tina e Marga acham que a menina está mesmo muito mudada, pois antes de casar, não saía dos domínios delas, sempre pondo o bedelho nas suas funções, azucrinando- lhes a vida. E agora que virou madame, despreza os mais humildes e os negros...
--Para, Dora, para de dizer bobagens, pois meu coração parte de pena, mas entrar lá... E a pobre Isabel saiu do quarto com a mão na boca em direção à sala de banhos para desafogar-se daquela ânsia. UItimamente era a única coisa que fazia.
Dora, preocupada, culpava-se pelo que a menina passava e, indo a seu encontro, bateu na porta, perguntando, aflita:
--Você está bem, Isabel? Por favor, filha, responde-me, pedia, já muito aflita.
Lá dentro, a menina, ajoelhada no chão, ao lado do vaso sanitário a pôr fora o que já não tinha mais, tentava responder, mas novamente vinha a ânsia.
Algum tempo depois, abriu a porta, branca como cera, e, recostada à ombreira dela, quase desfalecida, trazia na mão um chumaço de algodão embebido em álcool. Olhando para Dora, comentou:
--Se eu ficar mais um minuto por aqui, acho que vou desmaiar, Dora, ajuda-me... Quim..., tentou dizer mais alguma coisa, quando perdeu os sentidos, caindo sobre Dora, que quase não conseguiu segurá-la.
Pedro, que passava por ali, vendo sua menina naquele estado, tomando-a nos braços, levou-a até o quarto, depositando-a com carinho sobre a cama.
--Mas o que tem esta menina, Dora, para ficar neste estado de fraqueza? Há muito tempo venho acompanhando esta pequena, que não anda comendo nada às refeições, e Antônio parece nada perceber. Vou tratar de mandar chamar dr. João, para passar-lhe umas vitaminas. Em pouco tempo, quero vê-la mais
forte, disse Pedro meio nervoso. Bonachão, naquele momento, era tudo o que não parecia ser.
--Calma, sr. Pedro, não fique assim preocupado, por que isso é normal no estado em que se encontra, retrucou Dora, agoniada, pois precisava atender sua menina, e o velho Pedro ali, a lhe dar aquele trabalho.
Dirigindo-se à cama onde Isabel continuava desfalecida, passou-lhe álcool sob o nariz, fazendo com que fosse inalado pela pequena. Logo sentiu uma reação positiva. Olhando para Pedro que, estático nos pés
da cama, com os olhos azuis esbugalhados, olhava a sobrinha.
--Pois não me fales, menina Dora, que minha... Não... Não pode ser verdade... Pois desta vez eu acabo com Antônio, exclamou, pondo-se a andar de um lado a outro no quarto. Parando de repente, percebeu o olhar assustado de Isabel e, aproximando-se, perguntou-lhe com muito carinho:
--Como está minha menina, hein?
--Titio...
--Psiuuuuuu... Não digas nada... Descansa enquanto vou à cata de teu marido para...
--Tio, tio Pedro, espera, pois estou bem, meu tio, é apenas este cheiro horroroso que faz-me passar as agonias do inferno, disse a menina, já pegando o lenço para bloquear um novo surto de ânsia.
--Dora, olha-me nos olhos e confirma se é verdade o que estou pensando, pediu Pedro ansioso.
--Pois o senhor não sabia?
--Saber o quê, ó mulher...
--Que a nossa pequena está grávida novamente... Ora, pois...
--Não posso acreditar... Não posso, repetia Pedro, saindo do quarto furioso, batendo os pés com vigor contra as tábuas largas do assoalho.
--Dora, mas que jeito de contar-lhe...
--Como poderia eu saber que o pobre homem ainda não sabia? Vamos lá, diga-me de vez se quer mesmo ir para a casa do Quim, ou vai continuar plantada aí à espera de um novo ataque, provocado pelo seu muito delicado narizinho, retrucou Dora irritada.
--Ora, Dora, mas que bicho te mordeu agora, mulher, pois que é lógico que prefiro ir para a cabana do Quim a ficar aqui, onde, além deste odor horroroso que invade os aposentos, hoje, todos parecem estar com os nervos à flor da pele.
--Pois se é assim, vamos já pequena, disse Dora, levando-a escorada escada abaixo. Atravessando o pátio, onde a menina apertava ainda mais o chumaço de álcool no nariz, puseram-se, então, as duas a
atravessar a clareira, que levava até o velho celeiro, que jamais parecera a Dora tão distante, pois a menina
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soltara o corpo sobre o dela, fazendo-a pensar: "--Acho que em um ponto o sr.Pedro deve estar certo, pois também acho que o que a menina tem é muita fraqueza. Como ele disse, ela não anda comendo nada nas refeições."
De repente, uma dúvida passou-lhe pela cabeça, fazendo-a parar de chofre na caminhada, surpreendendo Isabel, que, voltando-se preocupada, perguntou:
--Mas o que aconteceu agora, Dora? Por que parou?
--Nada não, minha pequena, nada não... Mas, nós vamos mesmo é ter uma boa conversa quando chegarmos ao velho celeiro. Ah, mocinha, que vamos ter sim... Pode crer, minha menina...
--Mas o que deu em ti, Dora, hein? Perguntou, achando tudo muito estranho.
Dora, preocupada em levá-la o mais rápido possível, mal ouvia o que dizia a menina, porque viu, não muito longe dali, algo que a deixou aliviada. "--Fumaça de uma chaminé... Estamos chegando... Graças a Deus‖, pensou Dora, levando meio arrastado aquele corpo, que mal parava em pé, causando-lhe muita estranheza.
Quim, vendo-as ao longe, foi-lhes ao encontro. Pegando nos braços a menina, carregou-a em direção à cabana e deitou-a na cama reserva de seu patrão, para que pudesse descansar da longa caminhada.
--Mas o que está acontecendo com ela, Dora?
--Ora, Quim, estou aqui a cismar que a pequena andou fazendo alguma arte, de novo, com a ajuda de
Josefa, respondeu, passando álcool nos pulsos da menina.
--Mas ela está muito fraca, Dora!
--Talvez, Quim, talvez seja uma forte fraqueza, pois não anda se alimentando bem, afirmou Dora, esperando a menina retornar do novo desmaio.
--Ahhh... Ahhh..., murmurou Isabel, voltando à consciência.
Quim que já trazia nas mãos um copo de leite, pediu com carinho:
--Bebe, minha criança, bebe todo este leite que vai se sentir melhor, pediu o amigo, postado ao lado da
cama.
--Depois, Quim... Depois, disse Isabel, procurando respirar profundamente. Com firmeza, Quim levantou-lhe a cabeça e disse:
--Nada de depois, mocinha, trata de beber este leite já, se não chamarei o sr.Antônio para tomar
conhecimento do que anda aprontando sua menina.
--Por favor, Quim, não faças isso, pediu, bebendo em lentos goles o leite que lhe era oferecido.
Algum tempo depois, mais animada, Isabel sentou-se na cama e percebeu a preocupação no rosto de seus dois amigos.
--Aquietai-vos, pois que este mal-estar nada mais é que enjoo de gravidez. Até parece, Quim, que esqueceste o quanto sofria mamãe quando estava grávida de Amélia, pondo Celeste e a po bre Ana em desespero.
--Mas é lógico que lembro, menina. Como lembro também que o doutor falou-me quando o acompanhei até o carro, que a pequena deveria tomar cuidado em não pegar uma nova gravidez tão cedo,
pois estava muito fraca, depois do ocorrido.
--Mas do que falas, meu amigo? Perguntou Isabel, virando-se para Dora, com olhar aflito.
--Por quem nos toma, Isabel? Fique sabendo que os únicos que não souberam do que a menina aprontou com o auxílio de Josefa foram apenas os homens da casa grande, sr. Pedro e sr.Antônio, seu marido, falou Dora com firmeza.
--Soubeste, então, Quim?
--Eu sempre soube menina...
Isabel pôs-se a chorar e nada mais disse e deitou-se, desolada, sob o olhar aflitos dos amigos. Dora, sentando-se na cama, pediu-lhe de forma direta:
--Conte-nos o que andou aprontando agora, Isabel, para que possamos ajudá-la, antes que o mal se
agrave.
--Ora, Dora, do que falas, minha amiga?
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--Você sabe do que estou falando, menina... Não andou tomando alguma outra garrafada preparada por Josefa, não é? Perguntou Dora, falando agora com carinho, enquanto segurava aquelas mãos finas e pálidas.
--Juro que desta vez não fiz nada, meus amigos. Apenas acho que não estava ainda totalmente recuperada quando percebi esta nova gravidez, respondeu a menina, com voz fraca e completamente extenuada.
--Nós vamos cuidar de você, Isabel, deixando-a mais forte e bem disposta, pequena, disse-lhe Quim, de maneira tão carinhosa que Isabel, emocionada, sorriu-lhe agradecida.
--Preciso apenas manter-me longe da cozinha de Tina, pois os pratos que está preparando para o jantar de hoje exalam um odor que me enjoa demais, Quim, justificou-se, Isabel.
Quim, recebendo um olhar afirmativo de Dora, sobre o que sua menina dizia, retrucou:
--Mas... Como ficará a menina na festa de sábado, já tão esperada pelos patrões?
--Não sei, Quim. Se ela não melhorar destes enjoos, realmente não sei como vai ser, meu amigo. Ainda bem que Fred está organizando tudo com muita eficiência, e Estela, coitada, muito prestativa, reconhecendo a impossibilidade de eu acompanhá-la, está tratando sozinha dos detalhes de todos os trajes da família, falou Isabel, parecendo mais tranquila.
Percebendo que Isabel estava melhor, voltando-se para Quim, Dora participou:
--Bem, já que está tudo sob controle, vou voltar à casa grande para retomar os cuidados com as crianças, pois que as deixei com Josefa desde a manhã, quando percebi que a menina não estava passando bem. E, beijando-a, despediu-se, recomendando a Quim:
--Cuide bem de nossa patroa, Quim, fazendo-a alimentar-se a cada duas horas, para que diminua estes enjôos. Esta noite quero que ela se apresente muito bem disposta no jantar, para não preocupar o patrão, que deve estar passando por problemas muito sérios, uma vez que desde cedo está trancado no
escritório.
--Não imaginas o quanto tens razão no que falas, Dora, pois que realmente o patrão está passando por problemas muito difíceis de serem resolvidos, disse Quim.
--Mas sobre o que falas, Quim? Que problemas podem ser esses, que ele não me participou? Inquiriu com inquietação Isabel, sentando-se na cama.
--Não deve ser nada além de negócios, minha menina. Descansa, que com este tipo de problema os homens já estão acostumados a lidar.
--Espero que tenhas razão, e que tudo se resolva logo, retrucou Isabel, voltando a deitar-se, agora mais relaxada.
Percebendo que a pequena dormira logo depois da saída de Dora, Quim, velava por ela, mas preso em seus pensamentos: ‖--Não tem ideia a menina o quanto preocupa Antônio a correspondência que chegou hoje, participando-o da vinda, de Portugal, do irmão José com a família, para daqui a alguns meses. O que irá
acontecer então? Só Deus sabe‖, pensava Quim, enquanto olhava para aquele rosto tão querido, que dormia
tranquilo. "--Prepare-se, minha menina, tens sofrido tanto desde aquele dia que ele a trouxe aqui e, apaixonados como estavam decidiram por casar, achando-se fortes o suficiente para enfrentarem os preconceitos da sociedade. Pois se prepare, minha pequena, porque está para chegar o momento muito temido por Antônio, durante todos estes anos, o momento da grande confrontação com seus pais. O que dirão e qual será a reação deles, ao tomarem conhecimento dos acontecimentos com a filha, durante estes anos de Brasil? Eu não sei, e nem posso imaginar, minha menina, mas garanto-lhe que não será nada fácil."
E velando e cuidando de sua menina, Quim ficou o dia todo a cismar em seus pensamentos, até que
Dora veio buscá-la.
O jantar daquela noite transcorreu em harmonia, tirando a carranca que Pedro trazia, razão da qual Antônio achava ser a mesma que a dele, no que dizia respeito à grande confrontação que estavam para viver com a chegada da família, de Portugal. Olhando para a esposa, e vendo-a mais feliz e tranquila, Antônio recusava-se a imaginar o que poderia vir com a chegada dos familiares, e resolvendo viver intensamente os momentos que ainda poderia ter com a esposa, tardaria o máximo que pudesse em dar-lhe a grande notícia.
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Feliz com o momento que vivia Antônio, olhando para Fred e Tina, que esperavam o resultado da aprovação ou não do menu para a festa de sábado, comentou, fazendo um pouco de suspense:
--Bem, Fred, quanto à escolha do cardápio, acho que poderia ser melhor, pois esperava algo..., algo, como direi..., mais sofisticado, talvez. E, quanto ao sabor, acho que ficou faltando sal no prato principal...
Fred remexia-se sem parar pelo nervoso que passava, acentuando ainda mais seu tique nervoso. O
rosto estava rubro, parecia a ponto de sofrer um possível colapso.
Quanto à Tina, suando em bicas e com os olhos esbugalhados, o que fazia era olhar de forma furiosa para Fred, como se quisesse esganá-lo ali mesmo, porque jamais seu patrão tinha posto defeito em sua comida desde que fora contratada, há muitos anos.
--Agora..., sendo realmente muito franco, estava tudo delicioso, com excelente apresentação e tudo muito saboroso, enfim... Maravilhoso! Tenho absoluta certeza de que será um sucesso o nosso jantar, continuou Antônio, ainda no tom de crítica, mas com um olhar maroto.
Fred e Tina demoraram a entender o sentido real das palavras do patrão. Quando perceberam que recebiam elogios de todos os presentes, Tina, torcendo as mãos gorduchas, com os olhos brilhantes com a conhecida expressão de alegria, em sua timidez, desabafou:
--Ah! Qui meu sinhô conseguiu memu assustá a véia, sabi? Ah,i lá issu conseguiu memu, meu sinhô, pruquê essas cumida diferenti, i tudo di nomi istrangeru qui u Fred inventa, comu u molho qui eli chama, di...,
cumu é memu, sinhazinha? Perguntou Tina em aflição.
--Agridoce, Tina, um molho ácido, meio adocicado, entendeu? Explicou Isabel, sorrindo, complacente, pela inocência da velha Tina.
--Pois é isso aí que a sinhá falô, patrão. Qui falá, já é difícil pra véia Tina falá, imagina a véia fazê! Inda mais, com essi homi nu meu pé, na boca du meu fogão, inxirindo u tempu todu, dizenu assim: ―--Tina, ponha mais issu; Tina, mais aquilu; farta issu, Tina; farta aquilu, Tina!..." Ah, sinhô, qui issu a Tina num tava memu aguentando mais, patrão... Pois imagina ocêis, quandu eli falô assim: ―Põim fogo na carne, Tina..., dentru da
panela, muié!‖ É demais pra pobri véia Tina, sinhozinho, pois ondi já si viu, pôr bibida forte nas cumida e tacá
fogu de riba assustando tudu mundu, cum aqueli fogaréu qui inté a pobri da Lurdi gritava di fazê pena, com u fogu altu qui acunteceu, sinhô, continuou Tina, contando seu drama na cozinha.
--Só podi memu é sê cumida dus istrangeru das Oropa, essas misturada toda, terminou Tina, olhando furiosa para o garboso Fred, que, de tão orgulhoso, parecia que sua cabeça saltaria a qualquer momento do pescoço de tanto que ele estirava, sempre com o nariz muito empinado.
Antônio, que sempre se divertia muito com a fala de sua querida Tina, respondeu-lhe:
--Pois que valeu a pena todo esse sofrimento, porque este ―strogonoff de filé mignon‖ está fantástico,
tanto quanto as ―crèpes susette‖.
E levantaram-se todos da mesa, ainda comentando a forma de falar de Tina com seu palavreado simplório. O tempo passou entre o licor e um café, sempre acompanhado de uma prosa tranquila da família, até que Pedro, levantando-se, falou, enquanto puxava o relógio de bolso, consultando as horas:
--Bem, já se faz tarde, e é hora de recolher-me, pois que a lida do dia foi grande. Boa- noite, a todos! E, virando-se, com passos sem pressa, desapareceu porta afora da saleta.
Isabel e Antônio, vendo-se sozinhos, o que era difícil, pois que sempre havia os filhos que lhes tomavam toda a atenção, apesar da constante presença de Dora.
--Excelente a sua ideia de fazer Dora alimentar as crianças e mante-las no quarto, para que
pudéssemos estar assim a sós como nos velhos tempos, minha querida, disse Antônio, aproximando-se da esposa. Levantando-a da poltrona, conduziu-a até o alpendre da frente do casarão, para apreciarem a maravilhosa vista, que agora, com os lampiões da rua acesos, oferecia ao ambiente certo romantismo.
Isabel dirigiu-se à balaustrada e ficou a admirar a beleza da noite, quando, com um profundo suspiro
falou:
--Eu amo as noites de lua cheia, Antônio.
--Lua cheia... Pois que a lua cheia foi sempre a nossa lua, não é, minha Isa? Lembrou Antônio, que se
aproximou, passou-lhe os braços pelos ombros, trouzendo-a para junto dele.
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--Noite de bruxas à solta, como sempre disse Dora, comentou Isabel, recostando a cabeça no ombro do marido, enquanto continuavam contemplando a noite.
--Se a lua falasse, Antônio, quanto teria a nos lembrar dos grandes momentos que vivemos, tendo -a sempre como cúmplice e testemunha, falou Isabel, em momento de nostalgia.
--Dizes isso como se fosse algo vivido por nós apenas no passado, minha Isa. Pois, digo-lhe que, ainda hoje, sempre que me encontro perto de ti, a nossa lua cheia provoca-me o mesmo efeito, fazendo aflorar em mim toda a paixão que sinto por ti, e a vontade louca que tenho de tomá-la em meus braços e amá-la, amá-la até a exaustão.
Beijando-a enquanto falava, Antônio despertava na pequena o mesmo ardor que a vida, com todas as
suas provações, não conseguira arrefecer.
--Amo-te, minha Isa. Como te amo! Exclamou Antônio, apertando-a nos braços. De repente, ouviram um som de raspar a garganta que há décadas conheciam:
--Rham, rham...
--Será a nossa Ana? Perguntou Isabel, saudosa.
--Não, minha querida. Aqui no Ocidente sempre foi Fred.
–Não, Fred... Como podes ver, por hoje não precisaremos mais de ti, portanto, podes recolher-te. Falou Antônio, que, sem afastá-la de si, voltou-se para o mordomo, e sem esperar o que seria dito por ele, adiantou-se, arrastando a voz.
--Como quiser, patrão... E, feliz, parado no pórtico ficou a testemunhar o abraço envolvente entre seus patrões.
--Rham, rham... -- desta vez, feito por Antônio --, fez com que Fred, conscientizando-se de que estava sendo demais, sem ter o que argumentar, resmungou com voz condescendente:
--Então, boa-noite para os meus senhores...
--Obrigado, Fred. Pode ter certeza que a teremos, respondeu rispidamente Antônio, sem soltar a esposa daquele abraço. O homem retirou-se e fechou atrás de si a pesada porta.
--Tenho a nítida impressão de que o deixamos vexado Antônio; murmurou Isabel, olhando para o marido com seus grandes olhos negro.
--E isso te constrange, minha amada?
--Não... Agora, não mais, pois que não é segredo para ninguém o quanto eu amo e sempre amei este meu marido, respondeu Isabel, aconchegando-se ainda mais naquele abraço apaixonado.
Olhavam o céu com a lua a testemunhá-los novamente em enlevo, quando, ao ser encoberta por uma nuvem passageira, deixou-os numa penumbra prateada e Isabel, movida pela eterna natureza impulsiva, procurando-o com o corpo, com os lábios, beijou-o de tal forma que, Antônio, puxou-a para o recanto da coluna do alpendre, de onde subia o tronco de uma enorme trepadeira, oferecendo privacidade e, enlouquecidos, os dois procurando se tocar como se nunca o tivessem feito, amaram-se ali mesmo, num frenesi jamais vivido, pois, como sempre, a lua fora a responsável pela insanidade que os provocava.
--Isa, que loucura, minha amada...
--Sim... Acho que realmente somos um pouco loucos. Ou a culpa é deste sentimento louco e alienado que nos rouba por completo a razão e a decência, concluiu Isabel quase em murmúrio, a repousar no largo peito do homem que há algum tempo tornara-se seu marido, reconhecendo que desde sempre ele fora seu único homem e amante.
--Minha muito amada e tresloucada, Isa...
--Vê, Antônio, que a nossa lua parece feliz por proporcionar-nos tanta emoção...
--Com certeza, minha Isa, ela realmente parece muito feliz, concordou Antônio, apertando-a forte nos braços como se temesse que algo pudesse separá-los.
Com pena de deixar aquele lugar, agora, também muito especial para os dois, resolveram recolher-se, pois que precisavam descansar para o dia agitado que teriam a seguir. Ainda abraçados, entraram no
santuário de seu quarto, nada surpresos de encontrarem sobre a mesinha de cabeceira unguentos, água
végeto, compressas frias, enfim, tudo o que poderiam necessitar quando do retorno a seus aposentos.
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--Sempre precavida a nossa querida amiga Dora, não é, Antônio? Hoje acho que só precisaremos destas compressas frias, não é? Comentou Isabel com um tom de malicia, já pegando as compressas.
--Talvez também estes unguentos para dissolver os hematomas de teu colo, minha pequena. A culpa é da lua cheia, falou Antônio, fazendo com que os dois caíssem em sonora risada, pois sempre se divertiam com o que causavam um ao outro, em situações semelhantes.
--Realmente, a culpada é a lua cheia, concordou Isabel, despindo-se para colocar a camisola, já separada pela camareira Josefa.
A noite já ia alta quando adormeceram, ainda abraçados. Antônio fora o último a dormir, pois não lhe saía da cabeça a preocupação com a próxima chegada dos parentes. E, assim, em grande alvoroço, passaram-se os dias até a chegada do famoso sábado, dia tão esperado por Antônio para reintegrar a esposa na sociedade, com uma grande festa. Na hora de preparar-se para a recepção, Isabel foi chamada por Dora, que, orientando Josefa, fazia-lhe a toalete e a vestia, sempre sob os olhos atentos dos filhos que estavam adorando acompanhar a transformação da mãe.
--Bonita mamãe!... Exclamou, feliz, Toninho com os olhos brilhantes.
--Achas mesmo que a mamãe está bonita, meu amorzinho? Perguntou Isabel, que não resistiu e pegou-o no colo, dando-lhe um forte abraço e um sonoro beijo.
Ao levá-lo para a cama, junto com os irmãos, percebeu que Quinzinho estava também esperando ser abraçado, já com os bracinhos esticados. Pegou-o, então, no colo, beijou-o com carinho, enquanto de seus olhos rolava uma lágrima sentida.
--Vamos parar com essas emoções. A menina está a estragar a maquiagem, reclamou Dora, tomando- lhe Quinzinho dos braços.
Mal se virou para colocá-lo junto aos irmãos, percebeu que Isabel pegava Fernandinho, abraçando-o, beijando-o.
--Isabel, desse jeito vai ter que refazer não só a maquiagem, mas também o penteado, pois as crianças estão a despencá-lo todo.
--Ah, Dora, isso é o de menos. E, tu, Josefa, cuida bem deles enquanto estiverem em tua casa, a brincar com teus filhos.
Enquanto Josefa saía do quarto com as crianças, Dora pôs-se a arrumá-la novamente. Enquanto o fazia, viu que a patroa estava com olhar distante, a divagar:
"--As crianças esta noite precisam ficar com Josefa, pois não quero que sejam vistas pelos convidados. Jamais permitirei que alguém mais, além de Estela, os conheça, percebendo, assim, que não são crianças normais. Ah, Meu Deus, porque todos apresentam problemas? Como gostaria de vê-los a correr e
brincar pelo quintal, como todas as crianças!‖ De repente, ao notar que se afligia com os problemas graves que
tinha, balançou a cabeça, determinada: "--Não quero pensar nisso agora, pois nada conseguirá tirar-me o prazer de usufruir esta recepção, que promete ser um grande sucesso, e não permitirei que nada e nem ninguém estrague minha festa, muito menos meus filhos!‖ Pensou Isabel, olhando-se no espelho, mal reconhecendo sua imagem refletida no enorme espelho dourado, que mostrava uma moça muito bonita, de olhos grandes da cor do azeviche, vestido verde água, que realçava o colo bonito, abrilhantado por belos seios, que, pelo decote atrevido, mostravam volume e firmeza, devido à nova gestação dando àquela imagem uma aparência voluptuosa.
Encantada com o que via, Isabel só sabia pensar: "--Quanto tempo perdido!... Deixei de viver, em todos estes anos, a fase mais bonita de minha juventude, porque os passei triste e acabrunhada pelas minhas frustradas e sequentes gestações, ou cuidando dos pequenos que, cheios de problemas, conseguiram sobreviver. Ainda bem que tenho Antônio, pois, na felicidade que vivemos, ele ajudou-me a sobreviver a tantas
perdas e ao forte preconceito social pelo qual fomos atingidos com o nosso casamento." E tocando o rosto
bonito que via refletido no espelho, determinada, decidiu: "--De hoje em diante, se tivermos sucesso na recepção que oferecemos, voltarei a viver plenamente, reconquistando meu lugar de direito na sociedade."
Estava tão distraída em suas novas determinações que se assustou ao ouvir:
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--Minha menina, como você está linda! Exclamava Dora, abotoando-lhe o colar de diamantes e esmeraldas, que fazia conjunto com brincos, pulseira e anel, que fora o presente do marido para aquela festa tão esperada.
Isabel, gostando de sua aparência, constatou que estava muito bem. Aprovou a maquiagem e os cabelos negros que, presos ao lado da cabeça em gracioso coque de cachos soltos, caiam sobre as costas e ombros, emoldurando-lhe o rosto, realçando ainda mais sua beleza. Muito confiante, ao dar a última vaporada do perfume francês preferido, voltou-se para Dora e, feliz, como há muito tempo não se sentia, com um amplo sorriso na boca perfeita, murmurou:
--Vamos rápido, Dora, para não me atrasar, porque, como anfitriã, tenho de ficar no saguão de nossos salões com Antônio, para recebermos os convidados.
E assim aconteceu. Todos, encantados com aquela linda mulher, não se cansavam de elogiá-la para
Antônio, que lhe sussurrava ao ouvido:
--Como está linda a minha amada Isa! Ao que Isabel agradecia com seu jeito coquete.
De uma carta feita, ao tirar uma sonora e espontânea risada de sua amada, abraçou-a pela cintura e
falou:
--Preciso de um galho, e não apenas de um ramo de arruda, para afastar a inveja que percebo nos
olhos de todos os homens presentes, minha querida.
Isabel, enrubescida pela manifestação de carinho, sussurrou:
--Não é de bom-tom que me abrace assim em público, senhor meu marido, pois as pessoas vão comentar. E abanou o maravilhoso lequinho, com seu trejeito afetado de fazê-lo.
--Pois que comentem... Isto é realmente o que mais desejo, minha querida Isa. Eu quero mesmo é que comentem..., que fofoquem... e que falem muito, mas que falem de nós. Feliz e entusiasmado com o que dizia, Antônio, abraçou-a com a intenção de provocá-la, porque aquele rubor dava-lhe um encanto peculiar, e
murmurou:
--E por isso, não te espantes se, durante a noite, eu acabar por agarrar-te no meio do salão, pois, somente um homem extremamente frio e nada apaixonado, conseguiria controlar-se diante de tanta beleza, simplicidade e espontaneidade, tudo isto misturado a uma boa dose de afetação e faceirice, cujo resultado é o que mais admiro em minha mulher.
--Aquieta-te, pois aí, homem, que está a chegar Alexandra com o marido Guilherme.
--Eles?... Perguntou Antônio, conferindo quando desciam do carro, aberto por Quim, que, orgulhoso em seu uniforme, nem parecia o homem simples que conheciam.
--Meu Deus, agora este jovem mancebo vai ter um ataque ao constatar o que perdeu e culpa r-se pelo resto da vida, por não ter lutado mais para conquistar-te, minha amada, disse Antonio por entre os dentes, sorrindo para o casal que se aproximava.
--Pois tenho a lembrar-te, meu querido marido, que não foi ele que parou de lutar. Eu é que o dispensei. Meu coração jamais esteve disponível para ninguém, que não fosse meu amado ti..., quero dizer,
meu amado Antônio, corrigiu a menina, enquanto cumprimentava o casal de maneira muito formal, espantando o marido, que, na primeira oportunidade, disse-lhe:
--Não te acanhes ao cumprimentar teus amigos com a efusão de que és privilegiada, minha querida. Não gostaria que te sentisses tolhida em tuas emoções pelo fato de estares casada comigo, por receio de que
eu venha a me aborrecer, sentir ciúme ou coisa parecida. O que eu quero mesmo é viver, em toda a plenitude, os momentos que ainda tiver contigo, sem estragá-los com coisas de somenos importância. Portanto, fica à vontade para expressar-te segundo tua vontade. Quanto ao fato de lembrares-te de mim como tio, fica
tranquila, porque isso também não me incomoda, pois tenho consciência de que durante o tempo que estiveste
de amizade com Guilherme e outros gajos, eu era para ti apenas teu tio e, não ainda, teu homem, como hoje sou.
Agora, muito mais à vontade depois das palavras do marido, abriu um grande sorriso e passou a receber as pessoas por quem tinha simpatia de forma espontânea e efusiva, como também, sofrendo uma performance radical, conseguia ser extremamente afetada e fria, apenas polida, quando não apreciava a pessoa em questão, como foi o caso de Carmo que, com um sorriso forçado, chegou com o marido, dr.
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Antônio, como sempre com a enorme cartola e a fisionomia austera, fazendo-se temer até por quem não o conhecia. Isabel, sentindo a comichão de arreliar a pobre senhora como sempre acontecia quando cruzava com ela, cumprimentou-a com a maior polidez, transformando-se completamente ao cumprimentar o marido dela com muita simpatia e efusão, deixando-o completamente vexado, quando a moça, apertando-lhe muito a mão, sem soltá-la, disse-lhe com entusiasmo:
--Dr. Antônio!... Como lhes somos gratos por vossa presença tão digna em nossos salões. Queremos que vos sintais à vontade, disse Isabel, apertando-lhe ainda a mão, enquanto chacoalhava aquele braço todo o tempo que falava com voz arrastada e muito afetada, com largo sorriso e trejeitos faceiros, fazendo até a cartola sair do lugar, com a efusão de sua saudação. Completamente rubro, mas sentindo-se airoso com aquele cumprimento, pois nunca tivera tão entusiasta recepção, principalmente ocasionada por tão jovem e formosa senhora, o que, chamando a atenção dos presentes fazia-o sentir-se garboso e, enfim, reconhecido.
Carmo não gostou nada do que presenciara e esperou pacientemente que o marido resolvesse afastar-se da jovem por quem parecia hipnotizado. Tomou-lhe o braço, obrigou-o a sair daquele enlevo, levando-o em direção ao salão, enquanto o bizarro dr. Antônio tentava ajeitar no lugar sua cartola, não perdendo a oportunidade de voltar-se, discretamente, para apreciar aquela jovem especial. Agora, após conhecê-la em sua simplicidade e espontaneidade, justificava as razões que tivera Antônio para desposá-la: "-- Até eu abdicaria de tudo para casar-me com tão maravilhosa jovem, pouco importando em ser por isso, marginalizado pela sociedade e muito menos ser, por tanto tempo, sempre o assunto primordial nas reuniões das altas rodas, pois que, com certeza valeria muito a pena tê-la como minha mulher‖.
Carmo, procurando afastar o marido, arrastava-o pelo salão, enquanto pensava e sorria para um e outro, com quem cruzava: "--Sempre ouvi falar sobre o descaramento desta jovem... Pois não lhe basta o marido pomposo que arrumou, para agora resolver cair em cima de todos os homens da sociedade, disponíveis ou não, com seu charme, elegância e atrevimento desavergonhado?‖ E meio enfurecida, perdendo a compostura, virou-se para o marido e falou, sempre entre os dentes, enquanto mantinha o sorriso para os conhecidos que encontrava pelo salão:
--Antônio, veja se fecha essa boca, pois que estás a parecer um mancebo quase imberbe ao receber atenção especial de uma donzela atrevida. Recomponha-te, homem, e retoma tua postura feudal, pois que estás te tornando ridículo, com esta atitude contemplativa.
Isabel, junto ao marido, ainda no pórtico do salão, era agora apresentada aos velhos amigos dele, os irmãos, latifundiários fazendeiros de algodão e café, de sobrenome Ferreira, que eram de Campinas, mas que possuíam uma bela residência de campo, em Campos do Jordão e outra de veraneio, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, de onde vieram especialmente para a festa do amigo. Esperavam, com a
ajuda dele, efetivarem a compra de duzentos alqueires de terras, da grande propriedade dos Alcântaras,
vizinhos e também amigos de Antônio e Pedro. Era do conhecimento de toda a sociedade paulista a imensa fortuna que os irmãos Alberto e Francisco Ferreira haviam acumulado ao longo dos anos. Segundo alguns, além das muitas propriedades que possuíam por diversas e prósperas capitais dos principais estados do país, sua fortuna era alimentada pelas altas rendas advindas de locações rurais e empresariais que possuíam.
Alberto e Francisco Ferreira eram dois solteirões da faixa etária de Antônio, não muito bem providos da beleza física, pois que, baixinhos, tendiam a uma obesidade abdominal, que em nada lhes favorecia a aparência. Porém, suas contas bancárias, como diziam, eram de uma grandiosidade descomunal.
Isabel, ao ser apresentada a eles, percebia neles uma simpatia nata, que amenizava e favorecia as fisionomias desprovidas de beleza. Com rostos redondos, olhos pequenos e lábios finos, arrematados por avantajados, fartos e longos bigodes a cobrir-lhes parcialmente a base do nariz largo, os irmãos ainda em nada ajudavam, pois faziam questão de acariciá-los num leve movimento, dando-lhes uma curvatura exagerada que
tornavam seus rostos ainda mais redondos.
Isabel, enquanto sorria formalmente aos novos conhecidos, mal ouvia os elogios que lhe eram dirigidos pelos cavalheiros, pois a menina deduzia que eram aceitos dentro do grupo social pelo que continham seus bolsos: ―--Estes devem fazer parte do famoso ―Sistema‖, no ponto que se refere a: ‗A pessoa vale mais pelo que tem e pouco pelo que é‘―.
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Sentindo uma pressão maior na mão que Francisco, um dos irmãos segurava, voltou de sua divagação e ouviu-o dizer:
--Há muito tínhamos vontade de conhecer pessoa tão graciosa, de tão grande beleza e formosura, como sempre nos informaram todos que tiveram o prazer de conhecê-la, sra. Isabel! Afirmou Francisco, curvando-se para beijar-lhe a mão, enquanto pensava Isabel com seus botões, pois lhe causava estranhesa ser tocada por tão excepcional figura; pessoa que lhe parecia comum, porém, de imensa influencia e repercussão social. ―--Esta forte impressão deve ser devido ao meu estado, ou ao fato de jamais ter conhecido pessoas de tal potencial‖, pensava, não se esquecendo de sorrir abertamente, como também, fazendo uso dos antigos trejeitos de olhar que deixavam os homens fascinados, ao ponto de seus novos amigos mostrarem a boca rasgada num amplo sorriso, surpreendendo-a com a bela arcada dentária que possuíam.
--Quanto o invejo, meu querido amigo Antônio, por desposar tão graciosa criatura. Diga-me, cá entre nós, meu amigo, se por acaso não teria tão formosa dama alguma irmã disponível? Disse Francisco, puxando o braço de Antônio, com certo olhar ambicioso.
Antônio, achando engraçada a abordagem e a petulância do amigo, com um sorriso charmoso, respondeu:
--Não só uma, Francisco, mas duas belas irmãs possui minha amada esposa, duas, mas ainda muito novinhas, as pequenas, Francisco, disse Antônio, sob o olhar fuzilante de Isabel.
--Duas??!!!... Ora, pois, que tempo nós temos o quanto for necessário para esperar por elas, não é, Alberto?
Alberto, mais tímido que Francisco, com um sorriso mostrando também dentes alvos e bem perfilados que lembravam as teclas de um piano, respondeu com sua simpatia nata:
--Se tivermos a sorte de sobrevivermos ao crescimento das pequenas, Francisco, e conhecermos então as donzelas, com certeza, meu irmão, seria simplesmente maravilhoso!
A resposta surpreendeu Isabel, que respondeu faceira, de forma especial:
--Pois ao que me dizeis,o meu não tão jovem sr. Alberto, eu afirmo que "O futuro ninguém sabe... O futuro a Deus pertence", pois jamais pensei em vir a casar-me um dia com Antônio, e vede que nosso destino era realmente esse, pois aqui estamos nós, casados e a receber com muito carinho nossos amigos em nossa casa, não é, Antônio?
--Com certeza, querida, disse o marido, entendendo a denguice da esposa.
--O futuro a Deus pertence, senhores..., repetiu Isabel, enquanto, pensava:
"--Não devemos desfazer de conhecimentos como estes, e Alberto pareceu-me tão simpático!...‖
--Foi realmente um enorme prazer conhecer tão distintos cavalheiros, de quem também muito ouvi falar, disse Isabel, dando por encerrada a longa apresentação, cortando-a ao voltar-se para o marido e dizer:
--Vê, pois quem chega, Antônio, se não é Fátima, com o esposo, Alfredo? E, distanciando-se um pouco a fim de receber os conhecidos, que desde a viagem de vinda para o Brasil, não mais encontrara,
embora sempre tivesse notícias deles pelos amigos comuns, João Reis e Estela. Depois de abraçarem-se,
Isabel apresentou-os ao marido, dizendo:
--Este, Fátima, é meu marido Antônio e, esta, Antônio, é minha conhecida de viagem, Fátima, com dr. Alfredo, seu marido.
--Maria de Fátima, Alfredo, é, pois, um prazer receber-vos, disse Antônio, quando, ao ser tocado no braço pela esposa, ouviu-a dizer, surpreso;
--Chama-a apenas de Fátima, Antônio. Ela não gosta de nomes duplos, não é, Fátima? Fátima, apreciando a grande memória de Isabel, declarou:
--Admiro sua memória, Isabel, mas conte-me rapidamente que fim levou o adorno de leão, cuja função
naquele maravilhoso jantar era apenas servir de apoio aos talheres, e que a menina, num passe de mágica, fez pular para o fundo da bolsa.
--Ora amiga, meu mascote Lord está sempre em minha mesa de cabeceira e garanto-lhe que, desde então, tem me dado muita sorte.
Todos riam da história das moças, quando Antônio desculpou-se:
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--Perdoa-me, Fátima, mas chamei-a de Maria de Fátima, pois este foi o nome que me passaram quando subscritei os convites. Mas, de qualquer forma, Fátima, Maria ou não, é um grande prazer conhecer e receber em nossa casa conhecidos e amigos de minha esposa.
Terminada a recepção no grande saguão de entrada, Isabel e Antônio notaram a presença de todas as pessoas que haviam convidado. Felizes, caminharam para o salão de braços dados, conversando sobre a amiga Alexandra, que Isabel gostara muito de reencontrar.
--Como será possível retomar nossa amizade, Antônio, se ela casou-se justamente com Guilherme, que era meu mais forte pretendente? Ela jamais gostará de voltar a ter amizade comigo, pois que o ciúme estará sempre a fazê-la pensar que eu estou a fim de tomar-lhe o marido. Dize-me, amor, achas que existe alguma possibilidade de retomarmos nossa velha amizade? Completou Isabel entristecida.
Antônio, olhando para sua tão jovem esposa, penalizado, murmurou:
--Bem... acho que antes de sofreres pela simples hipótese de ela não retomar a amizade contigo, acho que deverias levar uma prosa direta e franca com a moça, percebendo as reais possibilidades de voltarem a ter a amizade que tanto deseja minha menina, concluiu Antônio, percebendo o estado não muito entusiasta da mulher.
Isabel, olhando para o marido, agora determinada, respondeu:
--Pois, como sempre, meu querido marido está novamente coberto de razão. Na primeira oportunidade serei direta e bem clara com Alexandra, dizendo-lhe que eu adoraria que ela batizasse o nosso próximo filho, pelos velhos e maravilhosos momentos que já vivemos. Não te importarias se eu a convidasse para batizar nosso futuro filho, Antônio?
--Mas está claro que não, minha amada, apesar de sentir-me na obrigação de alertar-te para que
jamais penses em fazer um convite parcial, pois que isto seria de péssimo gosto. Se pretendes convidá -la para madrinha de nosso filho, Guilherme será então o padrinho, afirmou Antônio, observando que a esposa, não pensara nisto e prostrara-se em meio à saleta, quase fazendo-o cair com a brusca parada.
Antônio, voltando-se para Isabel, que parecia meio chocada, indagou:
--Mas o que aconteceu agora, para quase ocasionar-me um vexame, com o tombo que levaria com o sustar repentino de sua caminhada?
Isabel balançou a cabeça como de hábito quando as coisas não saíam como queria e, olhando para
Antônio, respondeu:
--Desculpa-me, meu querido, mas não terei sucesso neste convite, pois jamais Guilherme aceitará meu convite, depois de todo o ridículo que o fiz passar.
Antônio, já em desespero pela obsessão de Isabel em voltar a amizade com Alexandra, afirmou com realismo:
--Pois eu não desistiria tão fácil assim, minha menina. Se fosses tu, e se for realmente o que tanto desejas, deverias conversar francamente com eles. O máximo que poderás ouvir será um não, pondo assim um ponto final, nesta tão grande expectativa, completou Antônio, alcançando o portal de entrada dos salões.
Fred, que já os esperava, vendo-os ali, aliviado, anunciou:
--Sr. e Sra. Gonçalves, os anfitriões...
Isabel, de braço com o marido, adentrou o salão tremendo. Mal conseguia trocar o passo até que Antônio, apertando-lhe o braço, infundiu-lhe coragem. Então, com seu mais belo sorriso, caminhou ao lado do marido como se deslizasse pelo chão polido e, sorrindo, encantava todos à sua passagem. Chegando por fim à mesa a eles reservada, onde já se encontrava Pedro, estranharam ao verem Marisa em pé a seu lado e logo perceberam que esta era a razão do olhar desconsolado do pobre Pedro. Isabel, sentando-se, dirigiu-se à moça que, pelo jeito, já estava ali há alguns minutos.
--Gostaria, pois de sentar-se conosco à mesa, Marisa? Assim poderemos trocar alguma prosa quando os cavalheiros começarem a falar de negócios, o que sempre acaba ocorrendo nestas ocasiões, disse Isabel, acompanhando o olhar desesperado de Pedro e a demora de um reforço ao convite por parte dele, o que, como esperava, jamais chegou. Marisa, muito sentida, trazia no olhar a tristeza do descaso de Pedro e olhava
com carinho para Isabel, ao dizer:
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--Fico-lhe muito agradecida pelo convite, Isabel, mas ficará para outra vez, pois que não poderei deixar mamãe sozinha com D. Carmo, porque, se assim o fizer, serei trucidada antes mesmo de chegar em casa. Desculpem-me, talvez tenha passado uma impressão maldosa ao comentário que fiz de mamãe, e não é bem assim como entenderam, pois que... Marisa, tomando consciência do que dissera, rubra com a conotação dada ao que acabara de falar, tentava consertar o irremediável.
Isabel, percebendo a aflição de justificar-se, antecipando-se a ela, retrucou:
--Não te preocupes, Marisa, porque todos aqui já conhecemos a fama da famosa D. Carmo, pois, então, tranquiliza-te. Se estivesse no lugar de tua mãe, e tu me deixasses sozinha com tamanha megera por algum tempo, eu a estrangularia antes mesmo que saíssemos deste salão. Portanto, pequena, fique à vontade e dê logo um socorro à tua mãe, pois parece que ela está preste a passar mal com a conversa nada agradável da infeliz senhora. Corre então menina, e de outro momento volta, pois terei aqui uma cadeira reservada para ti ao lado de tio Pedro por toda à noite, completou Isabel, sob o olhar furioso do tio.
--Não afirme tal coisa, senhora, pois este tão distinto e encantador senhor poderá fugir desta festa, mesmo antes do jantar; respondeu, com sorriso maroto.
--Então, já é conhecida a facilidade de escapulir do meu tio Pedro, não é? Marisa, sorrindo meio encabulada, afastou-se da mesa de seus anfitriões.
Pedro, não gostando nada do rumo da daquela prosa, antecipou-se, porque sabia muito bem o que
poderia ouvir ainda da sobrinha e comentou:
--Conhecido ou não, pouco está me interessando agora este teu joguinho. Posso garantir-te que está fadado ao fracasso total, pequena. Não gastes, pois, os neurônios de tua linda cabecinha com essas insinuações, pois não darão em nada, murmurou Pedro, inclinado sobre a cadeira de Isabel e após deixar claro suas convicções, virou-se para se levantar quando, preso pela manga do paletó pela sobrinha, virou-se e ouviu-a dizer:
--Já vais sair assim, antes do jantar, meu tio? Não permitas que Marisa descubra sobre o que falávamos, senta-te aqui e desfruta desta noite, que custou muito alto à família.
--E desde quando o custo de alguma coisa preocupa minha menina? Pois aqui estou e vou provar-te que jamais fui este urso que a menina me faz parecer a todos. Afirmou o tio, ajeitando-se na cadeira.
--Pois, se assim realmente for, folgo muito com isto, meu tio, disse Isabel com um sorriso matreiro, em
tom de desafio.
Apertando a mão de Pedro, fez-lhe um sinal com a cabeça em direção ao canto da grande sala, onde dois senhores, acabando de encontrar-se, iniciaram um interessante colóquio, que Isabel tudo ouvia sem mover um músculo do rosto, tão interessada estava no desfecho daquela prosa.
--Ora, quem eu encontro aqui... Se não é o meu amigo Gastão Alcântara, conceituado advogado, que, parece-me, está defendendo uma causa de posseiros de grande gleba lá pelos lados da Sorocabana. Pois, diga-me, homem, como estão as coisas por lá, amigo? Por aqui, acho até um despropósito comentar a confusão que se está armando, às raias da insanidade social e política desta metrópole, amigo.
--Pois já fui posto a par da situação vexatória por que passam os paulistas, Simão, por meus irmãos Gomes e Gustavo. Não sei não, a situação mundial está uma calamidade. Estamos todos em vias de uma Guerra Mundial, retrucou Gastão.
O comentário deixou Simão desassossegado, pois tinha receio de o município envolver-se em alguma revolta e, ele, com isto, perder o grande negócio que estava tramitando já há algum tempo com muita dificuldade. Com o apoio dos irmãos Gonçalves, os Alcântara estavam vendendo a propriedade que ele pleiteava aos irmãos Ferreira, pondo por terra seus planos de aquisição, quando, resolvido a jogar uma última
cartada, sorrindo de forma confiante, disse:
--Deixando este assunto social e político de lado, Gastão, soube que nossos anfitriões andaram consultando-o sobre a grande negociação que os Alcântaras estão para fazer com os irmãos Ferreira, pois digo-lhe, amigo, que a propriedade em questão é de valor muito maior agora, pois que consta junto à prefeitura um grande loteamento para esta área.
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Gastão, ao ouvir aquilo, pôs-se a cismar, enquanto Simão tentava convencê-lo de que os amigos em comum estavam perdendo muito dinheiro com a negociação. Balançando a cabeça, declarou com voz categórica:
--Simão, não perca seu tempo tentando infiltrar-se e desfazer meu negócio, pois sempre confiamos muito nos irmãos Gonçalves, e eles estão servindo de intermediários nesta negociação que já está bem adiantada. Pretendo que seja lavrada em cartório até meados desta semana, pois não podere i tardar em voltar às minhas fazendas. Estou para receber uma enorme manada de bois vinda do baixo Mato -Grosso, e jamais poderei estar fora quando este gado chegar a Barretos.
Simão, que ainda não desistira, continuou:
--Não acho bom precipitar as negociações, meu amigo Gastão, pois podem os irmãos Alcântara terem um prejuízo considerável, concluiu Simão, em insinuação comprometedora.
Gastão, que fora informado pelos irmãos Gonçalves da rixa entre os Ferreira e o falado Simão
Gouvéia, interveio com rispidez, afastando-se enquanto dizia:
--Negócios são negócios, Simão, e a palavra de um homem deve valer mais do que algum possível prejuízo que se possa vir a ter.
Simão, ainda com a convicção de desfazer aquele negócio, pois muito lhe interessava o grande lote em questão, continuou, usando de um golpe muito baixo.
--Certo, meu amigo Gastão, está certo quando diz que mais vale a palavra de um homem do que a melhor negociação, mas, no caso particular dessa tramitação, não seria honesto de minha parte não comunicar-lhe o que me chegou aos ouvidos.
Gastão, incomodado com o que dissera o amigo, retrucou:
--Diga de vez, homem, o que soube para justificar o fato de roubar-me momentos prazerosos de tão linda recepção?
Simão, com sorriso maquiavélico, chegando perto do amigo, comentou:
--Soube por fontes fidedignas que as terras que estão vendendo para os irmãos Ferreira estão, na realidade, sendo compradas pelos irmãos Gonçalves. Eles, os Ferreira estão sendo apenas testas de ferro, pois sendo suas terras, terras vizinhas às dos Alcântaras, com a nova aquisição de forma desonesta, terão o
terreno total para cobrir o loteamento que a prefeitura já aprovou, para a expansão deste bairro promissor.
Gastão, que tudo ouvia com os olhos brilhantes e a tez pálida, ainda mais boquiaberto ficou quando
Simão, ainda não satisfeito, completou:
--É simples entender porque os irmãos Gonçalves estão usando terceiros nesta negociação. Sabem que, se lhes propusessem uma compra direta, iriam pagar um preço muito maior, pois são terras vizinhas, e os irmãos Alcântara teriam que levar uma boa vantagem na venda, pois esta favoreceria, e muito, o enriquecimento dos irmãos Gonçalves.
--E já sendo feita a proposta pelos irmãos Ferreira, que não possuem interesse na aquisição, o preço proposto e logo aceito pelos Alcântara, por pura desinformação dos projetos da prefeitura, foi extremamente baixo, como lhe participei há pouco.
Gastão, enojado com o que ouvia, e ansioso por estar com os irmãos e pôr a limpo tamanha falcatrua, afastava-se quando, retornando com passos rápidos, pegou pelo braço Simão Vieira, puxou-o em direção à sacada, enquanto dizia:
--Você precisa ter mais cuidado com o que fala, amigo Simão. Veja que interessante coincidência, minha família, logo que cheguei, informou-me do quanto o amigo tem atrapalhado nas negociações, sempre interferindo com jogadas de propostas sujas e valores absurdos, para fazer os Alcântara desistirem da negociação. Acho que devemos ir lá fora pormos de vez a questão a limpo, não acha, sr. Simão Vieira?
Isabel, horrorizada com o que ouvira, olhando para o tio, murmurou:
--O senhor ouviu o que foi dito pelo sr. Simão, meu tio?
--Ah, minha filha, não deves ficar preocupada com isso. Estas coisas sempre acontecem nas grandes negociações, minha menina.
--Mas, tio, ele estava pondo em questão a honra de meus tios!
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--Não esquentes a cabecinha linda com coisas tão corriqueiras, menina. Vê como está maravilhoso o salão e como parecem felizes todos os convidados.
--Vou andar, meu tio, se Antônio aparecer, dize-lhe que volto logo, pois estarei por perto.
Afastando-se da mesa, Isabel, com um sorriso nos lábios, admirava a beleza das mulheres com quem cruzava quando sentiu que alguém a tocava no braço e voltando-se inquiriu:
--Pois não?
--Então, não se lembra mais de mim, não é? Perguntou a dama, como que chocada com a surpresa.
--Desculpai-me, senhora, mas passaram tantas pessoas por mim hoje que vos peço desculpas pelo lapso de memória. Desculpou-se Isabel, ao ouvir uma voz estridente vinda de trás, que falava como se destilasse veneno puro pela boca.
--Não disse que de nada adiantaria aproximar-se da pequena, pois que hoje só teria olhos para os homens que cruzavam o pórtico, Gabriela?
Virou-se apenas por virar, pois já adivinhara de quem era a voz esganiçada e maldosa que ouvira.
--Ora, pois, vos sois muito injusta no que falas, D.Carmo, pois, se é de vossa lembrança, agora estou casada e muito bem casada e, por isto, pouco se me dão os homens que atravessaram o pórtico de entrada da minha casa.
--Mas não era bem isso o que a sua atitude coquete e atrevida denunciava quando chegamos, resmungou, ainda destilando veneno, aquela sempre horrorosa Carmo.
--Sinto se passei esta impressão, mas a verdade é que sempre fui uma pessoa muito espontânea com quem gosto. Com estas me excedo mesmo, pois que me dá muita alegria estar com elas. Agora, as pessoas
que não me são simpáticas, estas eu não peço nem que me perdoem, pois não as consigo suportar. Com
licença, senhoras, tenho pessoas com as quais faria mesmo muita questão de estar nesse momento. E, com um dar de ombro afetado, virou-se para seguir seu caminho, quando ouviu Carmo resmungar quase no ouvido da outra:
--Pois, foi-me dito por pessoa muito especial, que Antônio está gastando uma fortuna sob chantagem, para a presença de cada um nesta recepção, tudo em troca de doações de terras, ajuda em campanhas sociais e políticas e que até entrou com honras em um grupo fechado de elite, após doar terrenos para centros hospitalares e comerciais, e que até o velho padre Santo está recebendo dos irmãos Gonçalves a doação do terreno pleiteado há tanto tempo, para a construção de uma paróquia para o bairro. Todos os interessados estão neste salão, fazendo o que podem a fim de conseguir a conclusão de suas negociações.
Isabel, que apertava as mãos fincando-lhes as unhas a ponto de quase sangrá-las, sentiu-se puxada para um lado do salão por alguém que, logo soube, tinha-a salvado de fazer alguma coisa horrível com sua convidada! Sabe-se lá o quê estava preste a fazer. Mas que ia fazer alguma coisa com aquela horrenda senhora, ah, que com toda a certeza, ia. Ia mesmo. E, enquanto era arrastada, dizia com seus botões: " --Ah, que estas duas não perdem por esperar, pois que lhes darei o troco merecido por tanta maledicência‖.
Mas a alegria da surpresa afastou de seu coração toda a mágoa que sofrera a pouco, entregando -se ao momento que mais esperara da noite.
--Alexandra, minha amiga, disse Isabel, abraçando a outra, pois morria de saudades de estar com ela.
--Isabel, minha querida amiga, como você está bonita! Exclamou Alexandra, sem tirar os olhos da sempre muito querida amiga, mulher agora, mas ainda com rostinho de criança.
Olhavam-se como se não acreditassem que pudessem estar juntas quando Alexandra, ainda puxando- a mais para o lado lhe confessou:
--Quando Guilherme avisou-me que a sua mãe devia estar torturando você com seu veneno, levantei- me o mais rápido que consegui para tirá-la de lá e, quando a ouvi dar a resposta merecida, então, não resisti,
arrastei-a até aqui a fim de abraçá-la.
Tudo isto dizia Alexandra, enquanto ainda abraçava a amiga, parecia não querer afastar-se mais dela.
--Venha até nossa mesa, Isabel, Guilherme vai gostar muito de falar com você, pois ele a admira profundamente.
--Verdade, Alexandra? Quanto tenho rezado para estar contigo, para tentar resgatar a amiga que tanta falta me faz, disse Isabel, enquanto acompanhava Alexandra até sua mesa.
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--Não disse que a traria, Guilherme? Pois aqui tem minha melhor amiga. Uma pequena contrariedade afastou-nos, mas peço-lhe perdão, pois a felicidade está estampada em seu rosto, e eu nunca deveria tê-la criticado quando da mais difícil decisão que tomou para a sua vida.
--Ora, Alexandra para com isso, pois nada tenho a te perdoar. Não foste a única a opor-se às minhas decisões, minha amiga, portanto, vamos esquecer o que passou. Tenho algo muito sério a falar convosco e gostaria que fosseis, ambos, muito sinceros comigo. Lembrando-se então que não havia ainda cumprimentado Guilherme, muito sem graça e profundamente encabulada, esticou o braço para cumprimentá-lo e foi logo se desculpando:
--Perdoa-me, Guilherme, pois pusemo-nos a conversar e até esqueci-me de cumprimentar-te. Como vais? Tenho também muito que me desculpar contigo, meu amigo. Posso considerar-te ainda meu amigo, apesar do papelão que te fiz passar? Falou, meio sem graça.
--Ora, Isabel, eu não nego que me fez sofrer um bocado, mas acabei entendendo, e muito a admiro pelo que fez, pois me comprovou ser o que sempre soube que era, uma menina pura, honesta e que jamais
aceitaria meu pedido de casamento sem amar-me, somente pelo meu dinheiro. Fico-lhe muito grato pela sinceridade e também muito agradecido, pois casei-me com uma pessoa maravilhosa a quem ambos queremos tanto bem. E terminou passando o braço em torno dos ombros de Alexandra, cujos olhos brilhavam
de felicidade.
--Folgo em saber-vos felizes, pois eu e Antônio também o somos, e muito, falou Isabel, emocionada.
--Vamos sentar-nos para uma prosa rápida, porque, sendo a anfitriã, não podemos prendê-la muito tempo em nossa mesa, disse Guilherme, puxando uma cadeira para Isabel e em seguida para a esposa, com muito carinho.
--Diga-me, Isabel, que coisa séria você falou que tinha a nos dizer? Estou muito ansiosa para saber, falou Alexandra, tomando a mão da amiga.
--Sabes, Alexandra, do carinho que sempre tive por ti, não é? Indagou Isabel, receosa.
--Mas é lógico que sim. Também eu sinto o mesmo por você. Mas vamos direto ao assunto que está a me deixar ansiosa. O que tem a nos pedir? Peço a Deus que não seja nada que possa separar-nos novamente.
--Não sei, Alexandra. Será um direito de opção que tereis, mas eu não vou deixar de falar, com receio da possível recusa. Não sei se sabeis, mas estamos esperando outro filho e gostaríamos muito que aceitásseis
serem nossos compadres, batizando-o.
O silêncio que se seguiu fez esmorecer a esperança que Isabel trazia no olhar. Já ia levantando -se, pensando em uma desculpa qualquer para afastar-se dali o mais rápido possível, quando Alexandra segurando-a pela mão, com os olhos marejados, articulou:
--Aonde pensa que vai, depois de fazer-nos o convite mais gratificante que jamais recebemos de alguém?
Isabel, recobrando a alegria, voltou a sentar-se, olhou para a amiga, ansiosa, enquanto ouvia a resposta:
--Teremos muito prazer em tornarmo-nos compadres de pessoas que tanto admiramos, não é, Guilherme? E pedimos desculpas pela demora de nossa resposta, pois foi uma surpresa muito gratificante lembrarem-se de nós, em momento tão maravilhoso de suas vidas.
--Isto quer dizer que vós aceitais? Perguntou Isabel.
Guilherme, então, antepondo-se à esposa, respondeu:
--Se este for realmente o desejo de vocês, eu, particularmente, sinto-me muito honrado em aceitá-lo, minha sempre amiga Isabel, concluiu Guilherme, tomando a mão da menina e puxando-a para um abraço.
Alexandra juntou-se a eles. Abraçou-se aos dois, chorando e rindo de pura felicidade:
--Como é bom ver as duas pessoas que eu mais amo no mundo, juntas novamente.
Antônio, não querendo interferir, mantivera-se afastado, esperando que a menina resolvesse suas dúvidas. Quando percebeu a felicidade do grupo, aproximou-se, retrucando como se estivesse ofendido:
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--Pois então não sou merecedor de vivenciar os momentos felizes de minha esposa junto aos nossos futuros compadres somente por estar ocupado na minha função de anfitrião?
--Ora, pois, Antônio, aproxime-se, compadre. De hoje em diante, vai ter de me suportar sempre em sua casa, pois que me tomou a pessoa que eu mais queria ao casar-se com ela.
--Pois, se assim for, farei muito gosto de tua presença em nossa casa, Alexandra. Quanto a ti, Guilherme, eu espero que estejas tão feliz quanto nós, pois que, de minha parte, já ouvi falar tanto das vossas qualidades, que os considero meus conhecidos de longa data.
Guilherme, que sempre temera muito o primeiro contato com Antônio, maravilhado com a recepção que estava tendo, disse de maneira humilde, emocionado, enquanto apertava-lhe a mão com vigor e
sinceridade:
--Antônio, fique sabendo que estou realmente muito feliz em tornar-me seu compadre, pois, para mim, você é um dos poucos homens que sempre admirei e tomei como modelo e exemplo em minha vida.
--Ora, pois Guilherme, deixa disso..., retrucou Antônio, feliz pela felicidade que vivia a esposa, e abraçando-a perguntou:
--Foi difícil?
--Não, meu amor. Apesar de todo o meu receio, eles aceitaram e fizeram-me muito feliz, disse Isabel, com o rosto recostado ao peito do marido.
Antônio justificou seu distanciamento enquanto conversavam os três:
--Perdoem o fato de me ter mantido afastado enquanto minha esposa fazia-vos o convite, mas tenho certeza de que se estivesse por perto, ela teria ficado inibida e talvez perdesse a oportunidade, pois há muito tempo ela anseia aproximar-se de Alexandra, e eu não poderia atrapalhar o momento do reencontro delas.
As mulheres, de mãos dadas, olhando-se profundamente, e como que de comum acordo, murmuraram quase em uníssono:
--Estamos juntas novamente, pequena.
--Estamos juntas novamente, minha grande amiga Alexandra.
Ao perceber que chamavam a atenção, pois todos estavam com olhos voltados para aquela mesa, revelando no olhar a curiosidade de saberem o motivo de tanta alegria e entusiasmo, Carmo, não se conteve, aproximou-se do filho e, tocando-o no ombro, perguntou:
--Será que poderia participar da euforia dos casais, que estão a chamar a atenção de todos, com tantos abraços e cumprimentos?
Alexandra, afastando a mão da sogra e dando-lhe as costas, murmurou enquanto piscava para a amiga, sem um pingo de piedade:
--Pois que desta feita serás consumida pela curiosidade. Não só a senhora como também todas as pessoas que sofrerem do teu mal, pois o que aqui vivemos é algo muito nosso, e não temos vontade de partilhá-lo com ninguém, muito menos com a senhora, minha sogra.
--De muito pouca valia foi a fortuna que seus pais gastaram com sua mentora D. Nadir, pois nada
conseguiu acrescentar à sua enorme falta de modos, minha nora.
--O problema é de vocês, pois que eles a tomaram a minha revelia, e somente para fazer boa figura na sociedade. Contrataram uma mentora quando eu já estava perto dos trinta anos, sem se importarem com o ridículo que me faziam passar. Se eles, como pais, jamais conseguiram passar-me algo de bom, precisando sempre do auxilio de mentoras e preceptoras para fazê-lo, o que esperavam que esta horrorosa D.Nadir pudesse passar-me, a não ser o que vejo e vivo desde que abri os olhos para o mundo, que não fosse, orgulho em demasia, maledicência, futilidades e outras qualidades mais que não me cabe aqui citar. Portanto, pode voltar para junto de seus semelhantes, sogrinha que daqui não levará nenhum motivo para destilar o seu veneno, disse Alexandra em tom de mágoa.
Carmo, como se nada do que dissera a nora a atingisse, passou pelos cabelos a mão carregada de anéis, voltando-se para o filho que calado estivera o tempo todo e, antes de se retirar, falou com sarcasmo:
--Não se fazem mais filhos como antigamente!... Ao que Guilherme contrapôs, humilhado:
--Agradeço a Deus sua extrema vaidade por não permitir fazê-la parir um segundo filho em nossa família, mamãe, pois que seria motivo de muita pena na sociedade e, para isso, já basta eu, que levo o apelido
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de ―O filho da jararaca‖. Volte para seu lugar, mamãe, e contenha-se um pouco, pelo seu próprio bem. Não está longe o dia em que será esquecida e não mais constará das listas nem de simples chás beneficentes quanto mais de reuniões de pessoas nobres como nossos anfitriões desta noite.
--Como você está enganado meu filho. Enquanto eu puder fazer gordas doações em espécie para os grupos a que pertenço, estarei sempre presente em todas as reuniões, pois não convidar-me seria um risco aos fundos filantrópicos e uma desfeita ao comendador dr. Antônio do Carmo, seu pai.
--Pobre sogrinho que aguenta tanta coisa pela opção de estar a seu lado, pois perde muito mais do que estando contra você. Quanto às gordas doações, acho que devo lembrá-la, senhora, que, se ainda as faz, é pela enorme generosidade de meu marido, seu filho, portanto, acabemos com este assunto e volte a sua mesa, respondeu Alexandra, que se levantou e convidou:
--O que os amigos acham de abrirmos o baile desta maravilhosa noite, em que temos tantos motivos para comemorar, hein?
--Acho ótima ideia, Alexandra, disse Antônio, sem saber como lidar com a guerra fria entre as duas mulheres. Guilherme foi quem lhe dera forças para não se intrometer, fazendo-lhe sinais com os olhos.
Livre de companhia tão indesejável, Alexandra tomou a mão dos amigos e disse, com voz entristecida:
--Desculpem-me pelo ocorrido, mas já presenciei o suficiente de minha sogra por uma noite e tinha de tentar fazê-la perceber o quanto consegue ser desagradável, mas o pior é que me desgasto com isso, enquanto nada a afeta. Vejam como fala e gesticula com sua inseparável serpente Gabriela.
--Não sofras, Alexandra, pois eu a conheço desde nossa saudosa viagem, portanto, não te amofines com o que não vale a pena. Vivamos esta noite o melhor que conseguirmos. Em poucos dias estaremos fazendo troça de tudo o que aconteceu agora.
--Ah, tem razão, respondeu Alexandra, amargurada. Desculpe-me Guilherme, não consegui me controlar. Ter sido presenteada pela vida com meus pais e minha sogra, confesso..., ninguém merece. E sentindo o marido passando-lhe o braço pelos ombros, infundindo-lhe conforto, olhando-o agradecida, comentou:
--Vocês não imaginam o quanto é bom este meu Guilherme. Sabem que se não fosse por ele, eu teria sumido da casa de meus pais e até do país. Pois eu me lembro que em outra ocasião estava também para fugir de casa, quando conheci a pessoa mais incrível que passou pela minha vida, foi quando conheci você, Isabel, criança ainda, naquele convés do navio. Desde aquele dia, muita coisa mudou para mim, pequena, graças a você.
--Você, Antônio, é um homem de sorte, creia no que digo, disse Guilherme.
--Sempre soube disso, meu amigo, sempre soube, desde o dia em que ela teve a coragem de ser franca com você e com ela mesma, admitindo seus reais sentimentos.
--Antônio, nós precisamos continuar nosso giro entre os convidados, se não, estaremos dando-lhes muito mais razões para que falem de nós.
--Tens toda razão, minha menina, vamos deixar um pouco nossos amigos e tratar de cumprir nossas obrigações.
--Até, Alexandra, até mais Guilherme, despediu-se Isabel, afastando-se.
Retomando então as funções de anfitriã, Isabel, juntamente com o marido, continuou com o rosto bonito e sorriso ainda mais feliz, a trocar uma prosinha aqui e ali com seus convidados. Até que, chegando à mesa de Estela e João, feliz, e pronta para contar para a amiga a novidade de sua amizade reatada com Alexandra, sentiu-lhe uma ponta de ciúmes:
--Estela, estava tão ansiosa para contar-te...
--Não precisa perder seu tempo, pois que já há tempos corre pelo salão a grande novidade de que sua amizade com Alexandra está reatada.
--E, tu, minha amiga, não estás feliz por mim?
--Bem, é lógico que estou, Isabel, mas depois de tudo o que me tem contado sobre essa amiga, tenho lá as minhas dúvidas, se será o melhor para você, reatar esta amizade. Você sabe, não é? Isso me causa
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preocupação, pois que a senhora sogra dessa moça, cá entre nós, é a úlcera varicosa de nossa sociedade, e longe não deve estar o dia em que vai acabar envenenando-se com o próprio veneno, minha menina.
--Alexandra não tem nada a ver com a sogra dela, Estela, falas assim porque ainda não conhece direito minha amiga, mas logo vou promover um chá, e teremos a oportunidade de estarmos juntas as três e assim, perceberás o quanto estás enganada.
João, que ficara quieto ao ouvir o comentário da esposa, pediu licença e interveio:
--Isabel, eu a aconselho a fazer exatamente o que diz, pois que minha Estela é muito boa, mas quando encafifa com alguma coisa, não há nada que a demova. Proporcione, pois, uma boa ocasião em que vocês três possam estar a sós e à vontade, para que minha Estela possa realmente conhecer essa pessoa maravilhosa que é Alexandra.
--Ah, então meu calado marido conhece já a tão falada criatura, não é? Perguntou Estela, mais fazendo troça que outra coisa.
--Ora, mulher, pois que não sou seu médico particular? Para mim, tanto ela quanto o marido são pessoas muito especiais, declarou João, olhando para Antônio, a pedir-lhe uma força.
Antônio, por sua vez, estava louco para dar a sua opinião:
--Eu acabei de conhecer Guilherme e Alexandra e, realmente, também me pareceram pessoas muito especiais, disse, causando riso nas mulheres.
--Gostaria de saber o dia em que os homens concordarão com uma opinião das mulheres; retrucou
Estela, brincando.
--Neste caso, estou do lado de nossos maridos, pois este casal de que tanto falas ainda vai te surpreender muito, Estela.
--Que suas palavras sejam ouvidas pelos anjos que por aqui passam, retrucou Estela, jocosa, não querendo dar a mão à palmatória.
Com sorriso complacente, Antônio tocou o cotovelo da esposa e fê-la lembrar-se de que ainda
precisavam estar com alguns convidados.
Chegando à mesa dos irmãos Ferreira, onde pensavam levar uma prosinha rápida e afastarem-se, viram-se obrigados a sentar e a bebericar com eles um vinho verde em brinde à bela noite que estavam vivendo.
Isabel, aflita com a simples ideia de sentar-se à mesa com aqueles quase simpáticos cavalheiros, não encontrando outra saída, aceitou com um sorriso. Ao sentar-se, lembrou: ‖Pois que me vem às mãos, a oportunidade de esclarecer o inusitado colóquio que presenciei sem querer no começo da noite‖.
--Como desfila de forma majestosa pelo salão esta tão linda criatura, Antônio, disse Francisco. Alberto, com largo sorriso, concordou com um aceno de cabeça.
Antecipando-se ao marido, Isabel respondeu:
--Sempre muito gentil este já não tão jovem sr. Francisco. Mas foi providencial convidar-nos à vossa mesa, pois, sem querer, logo no início da noite, escutei uma prosa que muito me preocupou, senhores.
Os irmãos rindo um para o outro, imaginando que prosa interessante poderia ter escutado aquela criança, que de nada devia entender, retrucaram:
--Pois, conte-nos o que foi ouvido por esses tão belos ouvidos, para que nos possa transmitir tudo, na
íntegra.
--Bem, meus senhores, nada mais nada menos que algo pondo em questão a honra e a retidão de
caráter de meu tio e esposo, por quem eu assumo uma postura nada feminina sobre a questão, discutindo o assunto até com nosso Presidente da República, se for preciso.
Antônio, surpreso, sem saber o que se passava pela cabeça da esposa, juntando-se aos outros, pediu de forma meio jocosa, para deixá-la mais à vontade:
--Conte-nos, pois, o que ouviste, minha querida, para aquietar estes corações curiosos.
--Muito bem, antes que a noite terminasse, eu iria mesmo querer pôr as coisas em pratos limpos e, já que a Providencia Divina preparou-me este momento, que seja, pois, agora. Olhando firmemente para os três homens à sua frente, começou a relatar:
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--Estava eu sentada com meu tio Pedro à mesa, quando dois senhores, postando-se em pé logo atrás de nós, começaram a falar sobre a grande negociação que estão para fazer os irmãos Ferreira, mas que, por morarem na capital, esta tramitação comercial tem sido feita por intermédio de meu marido Antônio. Pois, diz ia o sr. Simão Vieira, enfatizando sempre e muito bem, junto ao sr. Gastão Alcântara, que os senhores estavam comprando as terras por um preço muito baixo, pois os Alcântara não sabiam já constar, na Prefeitura, um projeto já aprovado de loteamento para a região, que valorizará em muito aquelas terras.
Como nada era rebatido pelos homens, Isabel, mais excitada, continuou:
--Mas este não foi o ponto pior da vil conversa, mas, sim, o fato de o sr. Simão afirmar que os irmãos Ferreira estariam sendo apenas testas de ferro de meus tios, e que compravam a terra por uma bagatela, para passar em seguida a eles, que muitos interesses tinham, uma vez que suas terras fazem divisa com o grande lote a ser negociado.
--Isabel, tens certeza do que falas, minha menina? Perguntou Antônio, aflito, enquanto os irmãos
Ferreira ficavam vermelhos de ira.
--Não só tenho certeza absoluta, como também, tio Pedro, que ouviu tudo, pode testemunhar, pois tentou apaziguar-me quando, após a saída do fraudulento sr. Simão, dizia-me para não esquentar a cabeça, pois que isso eram coisas corriqueiras de negócios.
Francisco, virando-se para Antônio, comentou:
--Muito tem nos atrapalhado nas negociações este ignóbil senhor. Amanhã vamos acelerar a negociação e, após concluí-la, cabe muito bem uma ação judicial contra tal elemento, por calúnia e difamação, e que será aberta por nós, Antônio, pois nos dê um motivo para fazer-nos sair do Rio, para servir de testa de ferro para alguém, fosse para quem fosse. Imaginem se precisamos dessas artimanhas para ganharmos uns trocados. Ora, pois... Gostaria de saber em interesse de quem ele trabalha, pois, que, pelo que já tem feito durante toda a tramitação, deve estar ganhando boa comissão do tal elemento.
Antônio, nada dizia, mas no semblante aparecia toda sua desilusão. Olhando para os amigos, com seriedade comunicou:
--Ainda bem que estão aqui para concluírem logo a negociação e peço-lhes, como amigo, que comprem realmente esta propriedade, pois que me seria muito penoso ter por vizinhos, pessoas de tão má índole.
Isabel surpreendeu-se ao ouvir as palavras de Francisco:
--Sra. Isabel, aqui, em presença de seu marido, cabe-me em meu nome e em nome de meu irmão, desculparmo-nos por termos tomado como brincadeira o que a senhora tinha a nos relatar. Subestimando mais uma vez a inteligência feminina que, de algum tempo para cá, vem sendo questionada em seus direitos por diversos grupos. A senhora nos fez um bem incrível, além de limpar a honra de seu marido e de sua família, que a esta altura deve estar sendo enlameada pela escória da sociedade. Porém, tranquilize-se, pois que tudo terá o momento de reabilitar-se e, quanto à possibilidade de vendermos estas terras para seus tios, tenha a certeza de que, quando decidirmos vendê-las, será para eles que o faremos.
Com um sorriso de agradecimento, Antônio despediu-se dos irmãos Ferreira e dirigiu-se com a esposa à mesa para jantarem, entre o burburinho dos convidados.
Após tão esperado jantar, a Orquestra de Câmara começou, com uma valsa de Johan Strauss, a abertura do baile. Todos os presentes esperaram Isabel e o marido darem início à dança, e eles, não se
fazendo de rogados, dirigiram-se ao centro da pista e começaram a valsar. Estavam ambos tão bem
entrosados naquele valsar, que, distantes dos presentes como se fosse o único casal em cena, entregaram-se ao prazer da melodia, que os transportava para o mundo dos sonhos.
Isabel, dançando com leveza, parecia flutuar pelo salão a rodopiar, rodopiar, fazendo dr. João sinalizar-lhes para que moderassem na dança pelo estado delicado em que se encontrava a moça. Antônio, que nunca fora muito de dançar, encantou-se com a facilidade que encontrava em valsar com sua menina, mais feliz do que imaginava, sentiu profundamente quando, acabada a música, foram despertados pela salv a de palmas dos convidados.
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--O que mais me reserva de surpresa esta minha maravilhosa mulher? Perguntou-lhe Antônio, abraçando-a no meio do salão, à frente de todos os convidados.
Isabel, feliz, sorria-lhe com carinho e olhar apaixonado. E, ao ser novamente abraçada pelo marido, ouviu, que dizia:
--Cuidado com o que fazes, minha pequena, pois já não te disseram que jamais deves tocar o bicho com vara curta? Se assim continuares, pouco me importando com nossos convidados, vou escandalizar a todos, demonstrando o monstro de homem que escolheu para marido, disse-lhe Antônio, abraçando-a muito apertado e rodopiando com ela pelo salão, sem nenhum fundo musical.
As salvas de palmas que não paravam os trouxeram de volta à realidade, fazendo-os parar muito
corados, ao serem flagrados em tal enlevo.
A orquestra, a um sinal de Antônio, pôs-se a executar outra valsa e todos os casais levantaram-se para dançar com eles. Ao meio da dança percebeu a esposa cansada e conduziu-a em direção à sacada. Mal se recostaram na balaustrada apreciando a noite que fazia, ouviram som de vozes muito perto dali. Pegando Antônio pela mão e fazendo-lhe sinal de silêncio, Isabel levou-o para um canto escondido pelas palmeiras, de onde se podia ouvir nitidamente o que era dito ali perto. Olhando para Antônio, furiosa, Isabel murmurou:
--Ah, meu querido, só podia mesmo ser a jararaca da Carmo. Ouça o quanto é venenosa esta senhora. "--Pois é como lhes conto, meus amigos. Esta menina esteve sempre atrás de um grande peixe e
acabou fisgando um enorme.‖
Isabel fez menção de ir ao encontro do grupo, quando Antônio, segurando-a pela cintura e tapando-lhe a boca, sussurrou:
--Deixe estar, amor, vamos diverti-nos com o veneno que destila esta criatura, pois gostaria de saber até onde pode chegar tanta maldade. Quieta, amor... Vamos ouvir... Pssssiu...
Isabel, então, bem aconchegada ao corpo do marido, ficou ali, junto ao homem que amava, divertindo - se com o que sairia de tão fértil imaginação.
--Pois vocês precisavam vê-la no navio, menina ainda, não havia homem que escapasse de seus encantos. Nem o pessoal da tripulação escapava, imaginem!
--Ora, Carmo, será que não exagera no que nos conta?Perguntou a insossa Gabriela.
--Ah, Gabi, você fala assim, porque não estava lá. Todos morriam de dó dos pais da pequena, que não faziam outra coisa a não ser correr atrás dela pelos cantos do navio. Imaginem que nem o pobre do capitão Mendes ela deixou escapar, pois que o enfeitiçou de tal modo, que ele, abrindo uma exceção, convidou -a para seu par exclusivo no baile da grande noite de despedida, deixando as moçoilas casadoiras frustradas, pois que
sonhavam em fazer uma entrada principesca com a autoridade maior de bordo.
--E a menina, como estava, hein? Perguntou Gabriela, curiosa.
--Ora, como estava... Como poderia estar uma menina sem classe, de braço com o capitão! Foi um vexame total, acreditem. Pois dizem que, no final da noite, ela degenerou o baile, fazendo a Orquestra tocar o maxixe, essa música popular brasileira muito vulgar, e que dançava com os homens de forma despudorada, num verdadeiro rala-coxa.
--Nossa, Carmo, como pode falar assim de pessoa tão graciosa. Fique sabendo que gostei dela, achei- a muito bonita, e de muita classe, disse Gabriela, sem olhar para a amiga.
Carmo, furiosa com Gabriela, virou-se para o marido, que se mantinha calado, até se poderia dizer, a tirar uma breve soneca, e acordou-o com seu grito, insistente, a lhe perguntar:
--Não foi assim como contei, Antônio?
Antônio, acordando meio assustado com o grito da mulher, falou como um autômato:
--Mas é lógico que foi assim. E voltou a cochilar, com certeza, para fugir da companhia horrorosa da
mulher.
--E agora que já lhe contei quase tudo, vou contar-lhe o pior, Gabi. Mas isso deve ser segredo, pois
que se alguém souber que falei, não vai ficar bonito para mim, e Deus me livre, estragar a minha imagem com fofocas, pois que uma dama é sempre uma dama, e assim deve morrer: "Uma dama...".
--Mas é lógico que nada contarei, Carmo, mas diga-me logo, pois que me põe aflita, mulher; pediu a pobre Gabriela em desespero.
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--Ouve a bordo um zum zum zum de que a menina dos Gonçalves ficava horas a fio durante a noite em prosa feita com a tripulação, acredita nisso? Pois quando digo que a menina sempre foi atrevidinha, pode ter certeza, como tenho certeza também que foi ela, aquela malcriada no hotel em Santos, que nos mostrou aquele palmo de língua, quando subia pelo elevador. Coisa mais sem classe! Completou Carmo, chocando ainda mais a amiga Gabriela, que ousou retrucar:
--Ah, não, Carmo, nesta história do palmo de língua, você está enganada, porque eu estava junto a você naquele dia e tenho certeza que jamais poderia ser a nossa anfitriã desta noite aquela menina grosseira e mal educada de Santos.
--Ah, Gabriela, sua inocência às vezes me enjoa, disse Carmo, que, em pé, chamava o pobre marido, chacoalhando-o para que acordasse, enquanto dizia:
--Vamos, Antônio, precisamos dançar umas músicas, pois que não vou ficar enfurnada nesta sacada escura, depois de gastar uma fortuna nesta roupa. Vamos, homem, e rodopie bastante ao dançarmos, para
que ao rodar apareça a fenda ousada do meu vestido, que chega além do joelho.
--Minhas amigas vão enlouquecer com minha ousadia, Gabriela, você verá, amiga, você verá... Gabriela, sempre a concordar, respondia repetidamente:
--Com certeza, Carmo... Com certeza...
Dr. Antônio, passando a mão pelo rosto, agora totalmente desperto pela matraca da mulher, ajeitou a roupa e pondo sua cartola automaticamente, passou o braço da esposa pelo seu e, abrindo um sorriso nada natural, entraram pelo salão em direção ao centro da pista, sem ouvirem que Gabriela gritava:
--Carmo, tire a cartola do doutor! Mas que nada, Carmo estava preocupada em fazer boa figura e ambos, de peito estufado, começaram a dançar. Ao girarem para que aparecesse a atrevida fenda, a cartola
pulou da cabeça de Antônio, caindo aos pés dos dançarinos, que, sem se preocuparem com de quem poderia ser aquela cartola tão fora de lugar, chutavam-na de um lado a outro, pondo logo um fim à cartola do fidalgo dr. Antônio.
Para quem não estava dançando, a história da cartola foi motivo de risada sem fim. Para os que
dançavam, alguém, pegando o farrapo de cartola do chão, começou a pôr na cabeça dos cavalheiros, roubando-lhes assim a dama, acabando na brincadeira de passa a cartola e rouba a dama, que muito divertiu a todos, exceto a Carmo, dr. Antônio e a pobre Gabriela, que levou a bronca por não tê-los avisado.
Antônio e Isabel divertiram-se muito com a história da cartola, e Antônio, olhando para a mulher, falou:
--Sobre o que ouvimos, houve fatos que nunca me contaste, mas isso pode ficar para outra hora, porque agora estou com vontade de entrar nesta brincadeira da cartola e rir um pouco de quem gosta de fazer brincadeiras com as pessoas. Vem querida, vamos dançar...
Mal deram uns passos e foi parar na cabeça de Antônio o pouco que restava daquela linda cartola. Antônio, então, entregando com pesar a sua dama, ficou alguns minutos a rodar como se não soubesse o que fazer, até que, pondo o restolho da cartola na cabeça de dr. Antônio, roubou-lhe a dama, que, sentindo-se como se fosse a primeira dama do país, toda sorrisos, caiu com o pesado corpo sobre os braços do anfitrião,
que muito cedo já queria desistir da brincadeira, e logo pensou: "--Entreguei uma pena e sobrou-me uma saca
de batatas‖. Mas, fazendo força para levar em frente a brincadeira, começou a dançar com Carmo de maneira suave no começo, mas, depois, foi dando-lhe rodopios violentos, favorecendo o aparecimento do que ela muito queria, expondo, para que todos vissem, aquela enorme panturrilha bem torneada, que parecia mais os músculos dos braços de um homem, do que a perna de uma dama, de uma senhora da elite paulistana.
Um foi cutucando o outro e, de repente, eram só risadas dissimuladas que se ouvia pelo salão a cada rodopiada que Antônio fazia com sua exuberante dama, proporcionando-lhe abrir mais e mais a fenda, expondo sempre aquela muito curta e torneada perna de madame. Ele, já com os braços adormecidos de carregar aquela dama nos braços, arrependia-se, pois não recebera de nenhum cavalheiro a bendita cartola, para suavizar sua pena, quando entregaria com todo o prazer do mundo a sua dama tonelada, como a apelidara em sua mente. Como não há bem que tanto dure e nem mal que tanto perdure, aquela enorme melodia chegou ao final. E, com uma pirueta especial, Antônio conseguiu rasgar-lhe ainda mais a fenda, apresentando a todos as coxas mais musculosas e cheias de varizes da elite. Terminada a música, levando
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sua dama tonelada pelo braço ao encontro do pobre dr. Antônio, a quem entregou com o sorriso mais falso que já dera em sua vida, acompanhado da famosa frase: "--Foi um enorme prazer, senhora‖, despediu-se o anfitrião.
--Foi simplesmente emocionante, sr. Antônio, murmurou sorrindo a cansada megera.
Antônio foi à procura de sua pérola, encontrando-a em um enorme grupo que ria sem parar do que lhes falava a menina.
--Antônio, Antônio, estou aqui, gritava Isabel, esperando pelo marido junto ao grupo que, com a cartola na mão, fazia troça da boa brincadeira que fizeram.
--Antônio, todos gostaram muito da brincadeira, e os homens sentiram muita pena de ti, mas nenhum
deles teve coragem de poupar-te um pouco, dividindo tua carga, amor, disse Isabel rindo, fazendo com que o marido, fizesse coro com eles.
Fátima, olhando para Isabel, só sabia dizer:
--Você sempre nos encantou com sua graça e trejeitos durante toda a viagem. Não conheço uma pessoa com quem viajei que não me pergunte daquela rapariga brejeira que a todos encantava no navio, pois agora que já sei onde encontrá-la, se me permitir, qualquer dia eu apareço para fazer-lhe uma visita, Isabel.
--Para nós, será um enorme prazer, Fátima, respondeu Antônio, feliz. E, assim passaram-se as horas...
O jantar foi um sucesso, a noite, maravilhosa. E, já muito tarde, findou-se a esperada festa. Com os sapatos nas mãos, Isabel atravessou o salão até uma confortável poltrona no salão de estar e sentando-se, esticou os pés sobre uma mesinha de centro e ficou a prosear com o marido e tio Pedro. Eles comentavam
sobre os absurdos ocorridos durante a recepção, sobre os convidados em geral e sobre a maravilhosa noite
que tiveram.
Isabel, durante uma pausa entre os mais variados comentários, enquanto tomava um gole do vinho que fora servido no jantar, virou-se para Pedro e comentou:
--Esteve tudo maravilhoso Antônio. Fred, como sempre, superou-se em esmero e organização. O difícil mesmo foi ter sempre Marisa por perto, a me perguntar pelo meu charmoso tio Pedro, resmungou a menina,
percebendo que o tio, levantando-se da poltrona, pretendia retirar-se, fugindo do assunto. A sobrinha, então, tentando impedi-lo de sair, correu a seu encontro e perguntou-lhe, olhando-o nos olhos:
--Dize-me, tio... Dize-me a razão de sempre correres das moças que ficam enfeitiçadas pela pessoa especial que o senhor é, e por estes olhos maravilhosos, que o senhor tem? Conta-me o por que... Não pretendes casar-te e viver a felicidade suprema de um relacionamento que tanta alegria traz?
Pedro, tentando esquivar-se daquela mão que lhe agarrava o braço, sem consegui-lo, olhou-a e
rendeu-se, ao dizer:
--Pois digo-te, menina, que nenhuma moça interessou-me até hoje, talvez por meu coração estar tomado desde muito novo por um sentimento puro, profundo e impossível.
--Alguma rapariga lá da Ilha, meu tio? Perguntou, ansiosa e penalizada.
--Sim, pequena, foi lá na Ilha que me apercebi deste profundo sentimento. Para, pois, então, minha menina, de tentar apresentar-me a essas moçoilas casadoiras, pois que isto deixa-me por demais acabrunhado, como também, não tenho eu lá muito jeito para lidar com essa coisa intrincada de mulher.
--Então, somos intrincadas senhor, meu tio? Perguntou Isabel, segurando-o.
--Pois, a mim, parece-me, sempre percebi quanto é complicado entendê-las. Isabel, voltando-se cismada para o marido, perguntou:
--Sabias, meu marido, desta opinião que teu irmão tem sobre as mulheres?
--Não. Sobre este assunto, não. Mas hoje, somente hoje, foi me revelado algo que sempre tive muita desconfiança, mas, nunca me foi dada razão para acreditar, disse Antônio, deixando a mulher em desespero, com aquela resposta complexa.
Largando o braço do tio, voltou-se para o marido:
--Poderias, se não fosse pedir muito, que fosses mais explícito, meu marido? E virando-se para Pedro, deparou-se com o vazio no lugar onde há pouco se encontrava o tio.
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--Antônio, ele sempre escapa destas prosas! Ele sempre escapa de situações assim, por que, Antônio? Se ele é tão meigo, ótima companhia, bonito, apesar de bonachão em seu jeito simplório de ser, por quê? Indagava a menina, ainda não entendendo.
Antônio, como a pensar em alguma coisa, respondeu a cismar:
--Agora sei, Isabel.
--Sabes o quê, afinal? Conta-me!
--Ora, querida, agora comprovo que ele é muito tímido e que, apesar de ainda sofrer, está muito bem do jeito em que se encontra, minha querida.
--Mas, Antônio, perto dos irmãos Ferreira, tio Pedro é simplesmente maravilhoso e também muito rico. Como eles, dentro daquela feiúra e antipatia, conseguem ser inconvenientes em seus flertes, enquanto tio Pedro mantém-se sempre à parte? Timidez? Pois não aceito isso. Qualquer moça daria o pescoço a cortar para casar-se com ele, Antônio.
Este, tentando dissuadí-la de arrumar casamento para o irmão, retrucou:
--Deixa Pedro em paz, minha querida, pois ouviste muito bem quando disse que o coração dele está tomado desde muito cedo. Deixa-o viver a seu modo, pequena, pois que, só agora imagino o quanto tem sofrido este pobre homem.
E abraçando a criaturinha que fora motivo de tanto orgulho para ele naquela noite, pegou-lhe os pequenos sapatos da mão. Mas foi na mesma prosa em direção às escadas e para seus aposentos, para o descanso merecido após tão maravilhosa noite. Deitando-se, Antônio, ao perceber que a pequena dormia tranquila, ele, cansado, mas ainda sem sono, fez uma avaliação da noite: "--Foi muito proveitosa em termos
financeiros esta reunião. E, como pensei, todos os convidados compareceram, apesar de acreditar que foi
mais por curiosidade de, enfim, conhecerem a famosa menina que virou a cabeça de um homem muito requisitado pelas raparigas das mais ricas famílias da cidade. Mas todos eles, ao conhecerem Isabel, maravilharam-se com ela, esquecendo-se das razões de nos terem colocado à parte da sociedade, marginalizando-nos por tantos anos. Encantaram-se com ela, aceitando-a com carinho e benevolência. O que não faz o dinheiro!... Pois que comprovo agora, que tudo neste mundo pode ser comprado... ou quase tudo. Quanto a meu irmão Pedro, doeu-me sabê-lo sofrendo de um mal que por tantos anos causou-me também as maiores penúrias da minha vida‖, pensou Antônio, aproximando-se da esposa, abraçando-a, enquanto dizia consigo mesmo: "--Mas o que fez esta criança para enfeitiçar os irmãos Gonçalves desta forma, hein, sua danadinha? Ainda bem que Pedro me parece ser de natureza mais mansa que a minha, pois que se eu estivesse no lugar dele estaria esmurrando a porta, ao simples pensamento de ele tocá-la como eu o faço agora‖.
--Humm, não tens sono depois de tanta tensão? Perguntou Isabel com voz sonolenta.
--Sono? Eu? Estando perto de ti assim como estou, posso sentir tudo, minha amada, menos sono, respondeu o marido, já a tocá-la com as ávidas mãos.
--Dorme, querida, pois deves estar profundamente cansada, murmurou Antônio beijando-a na orelha e pescoço, tirando-lhe lânguidos gemidos e arrepios.
--Dormir? Ora como posso pensar em dormir, depois de ser despertada pela pessoa que mais amo, fazendo-me arrepiar toda, despertando-me para tudo, afastando toda a sonolência que me abatia? Como é bom estar assim contigo, meu querido. Fico, agora, imaginando as elegantíssimas mulheres com as quais
estivemos esta noite, todas esparramadas em suas camas, exaustas, a roncarem naquele rosnar típico,
fazendo coro com seus insossos maridos. Para elas, a festa terminou, enquanto a nossa, se não parares de mordiscar-me como o fazes, a nossa festa vai começar agora, sem hora para terminar, sendo, hoje e sempre, meu convidado especial, o meu sensualíssimo marido. Disse Isabel, agora totalmente desperta, causando em Antônio um riso profundo.
A luz da manhã já atravessava as venezianas quando os dois, exaustos, porém felizes, acabaram dormindo o sono dos justos, ainda abraçados.
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Capítulo 3
A Grande Revelação
Isabel, nos meses seguintes à grande festa, parecia retornar mais à vida. Sempre convidada para almoços e jantares que os amigos faziam em retribuição ao convite recebido, vivia o dia a dia, preocupada com o que vestir, pensando em não repetir algum traje. Segundo Alexandra, que voltara a conviver mais amiúde com Isabel, dizia-lhe ser ela, no momento, a pessoa mais comentada em todas as reuniões de que participava e por onde andasse. Isabel estava achando aquela nova fase maravilhosa e, com apoio de Antônio, vivia intensamente aqueles momentos de futilidade, como se previsse que seria uma fase efêmera, pois corria o risco de perdê-la a qualquer momento.
Certo dia, conversava com o amigo Quim, pois, apesar de todos os compromissos sociais, sempre encontrava tempo para exercitar Fuzarca em lentas marchas, já que dr. Reis a havia proibido de grandes exercícios devido à gravidez.
--A menina parece muito feliz com a vida que leva, pois não, criança? Perguntou Quim, em um desses momentos.
Levantando-se do banco ao lado do estábulo onde deixara Fuzarca matando a sede no enorme bebedouro, Isabel disse em tom indignado:
--Antes de responder sua pergunta, meu amigo, gostaria de acertar um pormenor que há algum tempo me incomoda, pois muito me alegraria saber quando vós percebereis que não sou mais a menininha da Ilha da
Madeira, com a qual convivestes por tanto tempo, fazendo-vos não perceber que eu cresci. Tenho quase vinte
e um anos, sou mãe de três filhos e esperando pelo quarto para muito breve. Não entendo como ainda me tratais por menina, criança, pequena e outras conotações próprias para designar crianças pequenas.
Quim, assombrado com a eloquência da menina, isto é, moça, pesaroso, retrucou:
--Acho que te tratamos assim, pois não gostaríamos de ter-te visto crescer tão rápido, exigindo de nós que te olhássemos com outros olhos que não aqueles que querem continuar a proteger-te, como se ainda fosses a menininha lá da nossa tão saudosa Ilha, que tanta alegria nos proporcionava.
--Calma, Quim, só quero participar-te que cresci, mas isto está longe de querer dizer que abro mão do carinho e dos cuidados que sempre tiveste comigo. Tenho a impressão de que jamais conseguiria viver sem
isto, tanto da tua parte, meu amigo Quim, como da de meus tios e amigos, como a velha Ana, Tina e Dora, disse a menina, falando rapidamente.
Quim, com a displicência de sempre em prosas tão sérias, perguntou:
--Já falaste sobre isso com teu marido, peq..., quero dizer, desculpa-me, mocinha...
--Não, Quim, por várias vezes tentei falar-lhe sobre o assunto, mas chegado o momento, eu digo a
mim mesma: ―Outro dia, talvez..., quem sabe...‖.
--Hum, hum..., fez Quim, lembrando a saudosa Ana e a velha Tina, que sempre que algo lhes causava estranheza, vinham com este pigarrear, como se não aprovassem.
Bufando e batendo as mãos contra o corpo, o que fazia sempre que se encontrava nervosa, Isabel sentou-se novamente ao lado de Quim e falou quase explodindo de ansiedade enquanto ele, sossegado, fumava calmamente seu cigarro de palha mal cheiroso, coisa que aprendera a fazer com os novos colegas, no
Brasil, pois que na Ilha nunca o vira fumar:
--Fale logo o que está aí a remoer, Quim, pois que estes ―rans, rans‖, eu já conheço de longa data,
pois que só os ouço quando não aprovam alguma coisa do que eu faça ou diga.
Quim, ainda em seu jeito especial, disse:
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--Se quer mesmo saber, menina, e digo menina, pois que uma moça como quer parecer, jamais tomaria uma atitude infantil como a que agora a pequena acabou de tomar.
--Ora, pois, dize-me qual foi a tal atitude infantil que tomei? Quim olhou-a e respondeu:
--Nada mais nada menos pequena, que a frase dita por ti, ainda agora, quando disseste ―Outro dia‖. Somente uma criança deixaria para outro dia a discussão com o marido sobre um assunto que me pareceu ser, algo muito sério para a minha menina. O fato de nos chamar a atenção para o quanto cresceu, tornando- se uma pessoa adulta.
Isabel, não encontrando argumentos para discutir com Quim, concordou:
--Muito bem, Quim, sou obrigada a concordar não ser esta uma atitude assim tão matura. Mas sabes de uma coisa, meu amigo? Não gostaria mesmo de falar disso com ele, pois que sinto tanto carinho nele quando assim me fala, entendes? Perguntou Isabel, torcendo as rédeas do cavalo, demonstrando um nervosismo que, para Quim, só vinha confirmar sua opinião.
--Entender? Mas é lógico que entendo, mocinha, respondeu Quim, fazendo pausa para soltar uma longa baforada daquele fumo mal cheiroso. Não só entendo como também compreendo que a menina não quer discutir o assunto com o marido, com medo de que, se assim o fizer, acabar perdendo o carinho do tio, tornando diferente o amor do marido, entendes, o que digo? Perguntou Quim, procurando olhá -la nos olhos, para sentir-lhe a reação, que não foi outra, se não a tensão da pequena, com o corpo retesado, mãos sobre o banco e braços esticados ao lado do corpo, numa dança de vai e vem, de trás para frente, comprovando que ele estava com a razão, quanto ao medo da criança.
Isabel percebeu o rumo que tomava a prosa, e tentou controlar seu nervosismo, dizendo:
--Certo, Quim, o assunto é sério, meu amigo. Por isso, acho que seria de bom alvitre, deixá-lo para outro dia, não é? Quanto à pergunta que me fez por ocasião de minha chegada, respondo -lhe que eu estou gostando muito da vida que tenho levado ultimamente, estou simplesmente adorando tudo isto, pois sabes muito bem que, desde pequena, queria viver intensamente uma vida social atribulada e muito concorrida. Aceitando inúmeros convites para o chá da tarde com senhoras finas de nossa sociedade, gastando com isto uma fortuna, com as compras absurdas de futilidades, como roupas, chapéus, sapatos, bolsas, adornos e outras mil coisas em que tenho gastado o dinheiro de meu marido, que me parece ter muito prazer com estes meus caprichos.
--Os homens, Quim, apesar de saberem-me uma mulher casada e grávida, não perdem a oportunidade de estarem comigo em galanteios e convites atrevidos. Afirmo-te, meu amigo, que se eu não amasse tanto meu Antônio, com certeza não teria conseguido resistir a tanta tentação, pois alguns chegam a oferecer-me presentes caríssimos para estar com eles, em um simples passeio de barco pelo Tietê. Com profundo suspiro de autoconfiança, levantou-se. --Isto tudo me traz muita felicidade, Quim... Pois sinto que, mesmo grávida, as pessoas fazem questão da minha companhia, pouco lhes importando meu estado civil, alimentando meu ego de maneira jamais imaginada. Sinto-me como uma verdadeira rainha, muito amada por seus súditos e cercada por eles, que chegam a discutir entre si, para estar comigo numa simples prosa.
"--Meu Deus, como é inocente esta menina!‖ Pensou Quim, observando as piruetas que a pequena
dava, enquanto contava-lhe seus segredos.
Isabel fez uma pausa na empolgante oratória, e após, continuou, olhando para Quim:
--Sempre soubeste que tudo isto foi o que mais desejei para minha vida, não é, meu amigo? Perguntou a menina com brilho nos olhos.
--E como sei, minha menina, como sei destes teus velhos sonhos! Respondeu Quim, continuando a fumar seu cigarro, enquanto parecia divagar em pensamentos.
--Sabes, Quim, percebo que hoje não é um bom dia para conversarmos. Estás meio distraído e,
quando não, criticas tudo o que falo e, como não gosto nada disto, vou andando para acabar logo com esta prosa, que, pelo pouco que te falei, já percebeste o quanto estou feliz nesta minha nova fase, não é?
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--Sim, deu bem para perceber a tua felicidade com esta vida intensa que estás levando. Respondeu - lhe Quim, sem permitir que um músculo sequer movesse-lhe no rosto, demonstrando, assim, a enorme decepção que vivia, ao tomar conhecimento de quanto tinham mudado os valores e princípios da sua menina.
Levantando-se, Isabel ia conduzir Fuzarca para a baia, quando ouviu a voz sempre calma de Quim, que falou de maneira displicente:
--Podes ir que trato do Fuzarca, mocinha.
Após murmurar um obrigada, que lhe soou muito estranho, Isabel afastou-se, a matutar sobre o que conversaram. "--Quim pareceu-me chocado, com o que lhe contei sobre o momento maravilhoso que estou vivendo‖, pensou a menina, justificando: "--Também, seria querer muito que ele entendesse o quanto é gratificante estar nas altas rodas, saindo vez por outra em colunas sociais dos jornais, sempre a tecerem elogios à minha elegância e fascínio. Como poderia o pobre Quim entender, se nunca conheceu outra coisa que não fosse o mundinho pequeno em que vive, desde o tempo da nossa queria Ilha da Madeira? E quanto a ele querer que eu fale com Antônio, sobre a mágoa que sinto por todos considerarem-me ainda uma menina, o que Quim pretende que eu faça? Que fale com Antônio que eu cresci e corra o risco de perder seu amor, que é tudo de mais precioso que tenho na vida? Não quero pensar mais nisso... Não quero..., amanhã, um dia, talvez..., quem sabe... Mas, por enquanto, não. Meu amigo Quim não tem ideia do que me pede‖. E, balançando a cabeça como sempre fazia para espantar pensamentos, começou a andar, num andar dançante de lá para cá, com as mãos cruzadas nas costas, não imaginando que Quim, que ainda a observava afastar - se, dizia alto e em bom som, pedindo aos céus que o vento levasse sua fala até sua menina:
--E quer ser considerada como uma moça! Ora, pois, vê se pode tal coisa... Pois, se anda como menina, age como menina, deixando suas responsabilidades de lado, vive como uma menina, querendo ainda viver vida de borboleta, sem lembrar que a decisão sobre o próprio casamento cortou-lhe as grandes asas. Pobre menina, que já é mulher pelo amor, mas anseia tornar-se uma moça, o que talvez nunca seja, pois tem medo de crescer como quer e, com isso, acabar perdendo o carinho que sempre teve das pessoas que ama.
Isabel, que sem querer diminuíra o passo, ouvira alguma coisa do que fora resmungado pelo amigo, com certeza trazida pelo vento que batia em sua direção. Ouviu, assim, coisas que a tocaram fundo, mas, pondo-as de lado, bem de lado, mesmo, continuou a andar e a pensar: "--Mas que bruxo. Quim sempre foi um bruxo! Ele vai direto ao ponto, fazendo-me arrepiar. Isto é sinal de que devo pensar no que ele me diz. Mas hoje não, Quim. Recuso-me a pensar em qualquer problema hoje. Amanhã..., um dia, quem sabe..., talvez... Pois hoje tenho de pensar no sério compromisso que teremos à noite, na mansão dos irmãos Ferreira.‖
Lembrando que talvez já estivesse atrasada para provar o traje para o compromisso daquela noite, um jantar na mansão dos irmãos Ferreira, que prometia ser muito fino, pois, eles gostavam muito de ostentar a fortuna que possuíam, Alexandra recomendara-lhe, com muita segurança e convicção:
"-- Apresenta-te o melhor que puderes, minha amiga, pois, para os irmãos Ferreira, nada é exagero, já que são avessos à simplicidade. Não te espantes, pequena, de chegar lá e encontrar um verdadeiro banquete oficial, com a participação de pessoas de cúpula da época do Reinado, da Política, do Clero e a mais fina elite de nossa sociedade. Para mim, eles convidaram-nos simplesmente porque jamais perderiam a oportunidade de tentar superar o que vós apresentastes. Portanto, vê se te arranjas o melhor possível para uma noite de corte, pois, se eles quisessem, conseguiriam trazer até a rainha da Inglaterra.‖ Prevenira-a, a amiga.
Isabel pretendia, com o auxilio de Dora, seguir os conselhos e, se possível, estar ainda mais bela e elegante que no dia de sua recepção. Lembrou-se que logo depois do jantar recebera um convite muito formal para um chá da tarde, com a mãe dos irmãos Ferreira. D. Armanda, pessoa muito simpática, não fazia crer que pudesse ter gerado filhos tão desengonçados. Certo que Alberto puxara um pouco a ela, porque possuía a
mesma contagiante vivacidade e a extrema simpatia, tornando-o até um pouco mais bonito. Se ele perdesse
alguns quilinhos e aparasse melhor o bigodão, teria um excelente ganho sobre a aparência. " --Tomara que Dora tenha conseguido providenciar o alargar do vestido que comprei para a ocasião, pois, d evido à gravidez, ficou um pouco justo, na prova desta manhã‖.
Chegando a casa, conferiu as horas no enorme carrilhão da saleta, reparando que ainda era cedo para preocupar-se com sua toalete. Resolveu passar na cozinha para dar um alô a sua velha amiga Tina. Quando lá
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chegou, encontrou-a sentada a tomar o café da tarde com a pobre Marga que, com os olhos arregalados, sem nada responder, tomava tranquilamente o café, como sempre, mal ouvindo as broncas da velha Tina.
Isabel observou-as algum tempo sem ser vista, reparando no mastigar esfregante de Marga que, molhando o pão no leite, parecia tão distraída que fazia a menina duvidar que a velha negra ouvisse algo do que estava sendo dito, pois os olhos brilhantes pareciam muito distante dali durante aquele ma stigar lento, dificultado pela boca desdentada e totalmente enrugada. Para engolir, levantava a cabeça e esticava o pescoço para facilitar a deglutição, o que fazia a pobre mulher piscar duro.
--Poxa Marga, qui ocê num ovi nada du qui falo, não é memu? Istou dizenu procê juntá a nata du leite pra modi passá nus braço pra tirá essa cor cinza qui minha Marga, tem.
--Ocê dissi issu, Tina? Perguntou Marga, distraída, ainda com o alimento na boca, naquela eterna dança de direita, esquerda, esfrega, esfrega, estica, enruga e glug..., conseguiu!...
--Ora si Tina dissi arguma coisa, Marga. Cómi, muié, qui ocê tá cada dia mais lenta pra cumê, cum essa boca toda desdentada i essi zóio cada veiz mais regaladu di tanta magreza qui minha Marga tá,
resmungou a inconformada Tina, olhando para Marga, penalizada, porque percebia que a amiga envelhecia dia a dia.
--O jeitu vai sê mi custumá cum tua cor cinza, pruquê já cansei de falá procê passá banha nessi braçu toda hora, pra módi perdê essa impressão de chujera prus patrão. Hum, hum..., qui u mió a fazê, é Tina ficá
quieta, pruqui a Marga tá memo é no mundo da lua, pruqui num iscuita nadinha di nada du que a véia Tina fala. Mas, percebendo que Marga não se interessava por nada do que dizia, dando uma boa bocada no pão besuntado com manteiga caseira, falou num repente:
--Tina acha bom memu é a menina resorvê si sai, u si entra na cunzinha, im vêis di ficá pur tráis das
porta iscuitanu u qui us outro fála, pruqui issu é coisa mutcho feia de si fazê, sinhazinha Isabel.
--Mas como percebeste que eu estava aqui, Tina? Ou vai me dizer que Tina tem também olhos nas costas? Perguntou Isabel, entrando e logo puxando uma cadeira para sentar-se com as pretas velhas naquele lanche de que há muito tempo não participava e que, nos velhos tempos, tanto arreliara a pobre Tina, sempre inconformada de a menina preferir tomar seu lanche com as velhas na cozinha, a fazê-lo com conforto e mordomia na saleta.
--Hum, hum, zólho nas costa, só memu a cabeça da minina pra pensá uma coisa dessa, pois qui vi ocê direitinho pelo vidro do guarda-cumida desdi qui chegô e ficô parada aí, rindo dus modu das véia tumá u café.
--Desculpa, Tina, eu não ria de vós. Não, no mal sentido. Mas é que eu gosto tanto de vossas prosas que sempre gostei de ouvir-vos escondida, pois que assim ficais mais à vontade para conversar, e eu, que fico ouvindo, gosto ainda mais do jeito de minhas velhas prosearem.
--Escondida!... Imagina si Tina num percebi as veis qui a menina fica cus ovidu grudadu nas porta
iscuitanu Tina mais Marga discuti, falou Tina, magoada.
--Perdoa-me Tina, prometo não fazer mais isso, minhas amigas...
--Nem pircisa prometê nada não, minina, pruqui dispois qui virô madama, nunca mais lembra das preta véia memu... Nem pircisa prometê nada não, sinhazinha...
--Ora, Tina, não começas tu também, que acabo de estar com Quim e o deixei falando sozinho, porque ele veio com umas conversas estranhas, disse Isabel, esticando o braço para pegar o bule de café para servir- se, quando Tina, severa, segurou-a e falou:
--Pois podi é levantá da mensa qui ocê não vai dexá a Tina falanu sozinha não, comu u cuitadu du
Quim. Podi a mocinha i safanu já daqui, pruqui aqui não é seu lugá mais não, agora qui virô grã -fina, seus amigu são otros.
Isabel, chocada com o que ouvia, sem jeito, levantou-se e já ia saindo, quando ouviu Tina que dizia com a mesma rispidez:
--Grã-fina a menina virô, mas mãe a moça inda é, u vai dexá as criança di veis pra Josefa i Dora cuidá,
hein?
Sem responder, Isabel saiu com os ouvidos zumbindo. Ao chegar ao quarto, encontrou Dora que, com
expressão séria, arrumava-lhe as roupas sobre a cama.
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--Oi, Dora, que bom que estás aqui, pois que já ia chamar-te.
--Ora, desde quando a menina precisou me chamar para alguma coisa? Retrucou Dora, cortando o que era dito por Isabel, antes que ela acabasse de falar.
--Mas, Dora!
--Sem mais nem menos, menina. Vai logo tirando a roupa, para eu experimentar este seu traje, disse
Dora, seca.
Isabel, achando estranho porque era a terceira pessoa com quem estivera durante o dia e todas, apresentaram-se arreliadas com ela, pegou a amiga pelo braço e perguntou-lhe, olhando-a nos olhos:
--Podes parar com o que fazes, pois que precisamos ter uma conversa muito séria, Dora.
--O que a menina quer dizer com isto?
--Ora, até parece que não sabes que ultimamente estás falando comigo de forma ríspida, quando sempre tiveste muito carinho ao falar comigo.
--Alguma razão deve existir para a menina perceber isso, não acha? Perguntou Dora, enfrentando um olhar cismado.
--Se não me contares, vou ficar a conjurar mil coisas e, talvez, nenhuma delas venha a ser a razão da mudança em teu comportamento, Dora. --Por que não falas de uma vez, pois percebo todos meio diferentes
comigo, até meu amigo Quim e Tina?
--Muito bem, se quer realmente assim, assim vai ser. Sente-se aqui, criança, e diga-me uma coisa: Onde estão seus filhos, agora?
--Ora, Dora, como sempre, eles estão na casa de Josefa.
--E você acha certo o que está fazendo com eles, deixando-os na casa de uma empregada sem cultura, com modos rudimentares de vida, usos e costumes totalmente diferentes e tudo o mais?
--Mas, Dora!
--Sem mais e nem menos, menina, você tem é que pôr nessa cabecinha de criança que tem filhos e que eles precisam de você, pelo menos de sentirem seu amor nas pequenas visitas que de quando em vez
lhes faz, disse Dora desenfreadamente, como não querendo parar o que começara.
Isabel, não gostando nada do rumo daquela prosa, levantou-se e falou meio agitada, simulando pressa pelo atraso.
--Vamos, Dora, vamos deixar esta prosa para outro dia, pois precisei sair com Fuzarca para exercitá-lo e atrasei-me para a prova da roupa, disse a menina, mexendo no lindo vestido sobre a cama. Hoje temos compromisso às vinte horas, na casa dos Ferreira, e não podemos nos atrasar, Dora, pois Antônio, já, já estará
aqui para se arrumar.
--Tenho certeza de que o sr. Antônio não vai se preocupar em esperar um bocadinho.
Ao ser puxada para sentar-se novamente na cama, ao lado de Dora, Isabel virou-se para ela e, olhando-a nos olhos, falou:
--Pois bem, vamos de vez com esta prosa, pois o que me interessa no momento é estar pronta em tempo hábil para não deixar meu marido esperando.
--Talvez dê tudo certo como minha patroa deseja e, se não der, pela primeira vez, meu patrão vai ter de esperar. E sabemos, nós duas, que sempre existe uma primeira vez para tudo, não é menina? Resmungou
Dora.
Isabel brincando com os dedos das mãos, como a dizer ―Pouco me importa o que vais falar‖, deixava
Dora ainda mais nervosa.
--Quando você era moça, eu até a incentivei a sair para passeios e eventos. Mas, agora, a menina está casada, perto de ganhar outro filho e parece-me que a pequena não está nada preocupada com eles, pois desde a fatídica noite da grande festa, noto que o demo tomou conta da casa, virando a cabeça da menina de vez, pois vive saindo quase todas as noites com o patrão, e nunca tem tempo de estar com os meninos, pois as tardes lhe são tomadas com esses chás aqui ou na casa de amigas... Isto quando não são os jantares e almoços aqui em casa, nos quais a menina parece querer esconder os filhos, deixando-os sempre com Josefa.
Isabel, muito aborrecia, falou:
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--Mas dize-me, Dora, o que achas que eu deveria fazer, hein? Perguntou a menina, demonstrando irritação. Achas que eu deveria apresentá-los à sociedade, para que riam de nós por termos todos os filhos com problemas mentais e de coordenação? Jamais, ouviu!... Jamais!... Jamais, apresentarei meus filhos a alguém, pois que logo que tiverem idade, pretendo interná-los em um bom colégio, para que se mantenham longe do casarão e, assim, possamos, Antônio e eu, vivermos a vida que desejarmos, sem o empecilho dos pequenos. Retrucou Isabel, levantando-se.
Dora, chocada ao ouvir aquilo, parecia não mais conhecer sua menina e, levantando-se da cama, deu- lhe as costas. Ela ultimamente mudara muito em seu modo de ser e proceder.
Isabel, preocupada com a reação do que dissera, procurando remediar o irremediável, tentou convencer Dora, falando com sinceridade:
--Dora, minha amiga, temos a intenção, Antônio e eu, de logo que desmamar este pequeno que está para nascer fazermos uma viagem à Europa, conhecendo países que jamais passou-me pela cabeça, vir um
dia a conhecer. Entendes, Dora, que sou ainda muito nova para assumir todas estas responsabilidades que me
cobras e prefiro ouvir Antônio, que, quando comento com ele alguma coisa, responde-me sempre, com muita sabedoria: "--Pois temos empregados que são muito bem pago para fazê-lo por nós‖.
--Portanto, Dora, eu não me preocuparei mais com isso, pois prefiro pensar como Antônio e viver a nossa vida.
Dora, ainda mais chocada com o que ouvira, muito decepcionada, pôs-se a arrumar a roupa e prová-la em sua patroa, enquanto lágrimas corriam-lhe pelo rosto, da pena que sentia daquelas pobres e pequenas crianças. Aquela tarde foi uma verdadeira tortura para Dora e Isabel, que, muito aborrecida uma com a outra,
foram obrigadas a ficarem juntas até que Isabel ficasse pronta, para mais aquele especial evento. Dora, no
saguão, acompanhava a alegria do elegante casal ao subir no carro que os levaria até a mansão dos Ferreira. Após a saída deles, ela permaneceu ali, a olhar o carro que descia a rua, levando não só o elegante casal, mas, levava nele a jovem patroa e amiga, ainda uma criança para ela, mas que, num repente, crescera, perdendo-se com os encantos do glamour da sociedade, sem lembrar que a grande emoção que vivia era efêmera, e que passaria muito rápido. Quando isto acontecer, sobrará para ela apenas o nada. O nada de tudo aquilo que deixara de fazer.
Apesar das preocupações de Dora e de todos da casa, Isabel vivia intensamente até que, sem mais poder camuflar o ventre já avolumado, sentia-se menos bela, sendo tomada de alguns complexos quando começou a perceber um comportamento estranho no marido. Preocupada com suas cismas, resolvida a encarar os fatos, numa certa ocasião, quando tomavam o café da manhã, perguntou:
--Dize-me, meu marido, o que te pode afligir tanto, que há tempos percebo-te nervoso, evitando-me por diversas ocasiões?
Antônio, surpreendido pela pergunta, dissimulado, falou de maneira displicente, enquanto continuava tomando o seu café:
--Ora, do que falas, minha amada esposa? Pois nada está a afligir-me como imaginas, se não pequenas coisas do dia a dia.
--Não, Antônio, percebo que algum problema muito sério está a deixar-te preocupado. Não seria por acaso o cansaço de nossa vida social muito intensa, ou mesmo algo que eu tenha feito ou dito, a causa desta irritabilidade que percebo há tanto tempo? Perguntou Isabel ansiosa, deixando o café de lado.
--Pois afirmo-te que cansaço não é, uma vez que me delicio ao acompanhar a felicidade da minha
menina em frequentar a casa de nossos amigos, as festas na hípica, os eventos culturais no Teatro Municipal, nossas aventuras de azar na emoção que nos oferece o Jóquei Clube, ou mesmo as constantes recepções que oferecemos aqui em casa a nossos amigos. Tudo isso, pequena, fazem-me sentir o mais feliz dos mortais ao perceber o quanto és feliz.
Isabel, não convencida com o longo discurso do marido, e ainda disposta a esclarecer as razões de
Antônio andar meio estranho, disse com determinação:
--Vamos, Antônio, podes ir falando, pois sinto que alguma coisa está para acontecer, uma vez que também me ocorrem repentinas inquietudes nada justificáveis, meu marido.
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Antônio, na realidade, extenuado com a vida social que levavam, procurava esconder da esposa que toda aquela agitação servia-lhe como fuga para não viver a angústia da próxima chegada dos parentes. Percebia não só a insistência da menina como também a necessidade de colocá-la, e logo, a par da visita que estavam para receber. Resolvido a acabar com aquele tormento de uma vez, colocou de lado o café e, olhando-a nos olhos, disse:
--Não fiques tão preocupada, minha menina, pois não é que recebi nova carta de José, que, com a correria de nossos dias, esqueci-me totalmente de mostrar-lhe, querida? Disse Antônio, de maneira normal, como se fosse comum receberem missivas da família.
Isabel, não acreditando no que dizia o marido e sentindo-se magoada, pois sempre ansiava por notícias dos pais e, quando elas chegavam, não era participada, entristecida, falou:
--Ora, Antônio, não me venhas com desculpa, pois não é tão comum recebermos cartas de papai, pois nestes quase dez anos, se formos contá-las, não preencheriam os dedos das mãos, a não ser que você, mas
tenha escondido, comentou Isabel desconfiada, aguardando agora com mais ansiedade as notícias que
poderiam conter aquela nova missiva.
--Ora, pois, imagina se eu seria capaz de fazer-te tal afronta, minha menina, declarou Antônio, levantando-se da cadeira e caminhando até o janelão, puxando as cortinas, pois o sol que entrava provocava um calor desconfortante. E falou como se fosse a coisa mais natural:
--Pois imagina, minha querida, que José diz em sua carta que estarão todos chegando ao Brasil na próxima quarta-feira.
Isabel, com os ouvidos a zumbir, pensou não ter entendido o que dissera o marido e, levantando -se, falou, aflita:
--Minha família está chegando ao Brasil ainda esta semana, e dizes isso como se estivesse tudo bem, como se eu não tivesse que lhes preparar acomodações, organizar a casa para recebê-los e, o que é pior,
como se não tivéssemos nada para comunicar-lhes. Como se fosse a coisa mais natural do mundo eles
chegarem aqui e nos encontrarem casados, provocando-lhes um grande choque, retrucou Isabel, andando de um lado para o outro daquele quarto, que lhe parecia pequeno, pois sua vontade era realmente sumir por aquele horizonte, voltando somente quando as coisas estivessem ditas, esclarecidas e, principalmente, aceitas. Como gostaria que assim ocorresse!
Antônio, triste, por ver a aflição da esposa, revoltado consigo mesmo, culpava-se por todo o sofrimento por que ela passava. Segurou-a pelos ombros quando, em sua andança, passou por ele batendo os braços contra o corpo e falou-lhe com carinho:
--Isabel, não fiques assim, pois não vai fazer nada bem a ti e, muito menos, ao nosso bebê, minha querida.
Levando-a até uma poltrona da saleta intima, começou a dizer com muito receio:
--Sentemo-nos e conversemos sobre o assunto, para que possamos tranquilizar nossos corações e recebê-los com todo o carinho e amor que temos por eles, minha menina.
Isabel sentou-se, suspirando. Olhava-o com olhar aflito quando comentou:
--Pois o que está para acontecer, Antônio, este confronto com meus pais, era o que eu mais temia desde que nos casamos.
Antônio, entendendo o que dizia a esposa, mas em parte discordando dela, Levantou-se. Ficara mais tenso ao perceber a angústia da menina. Então, falou:
--Pois bem, minha amada, digo-te que até pouco tempo este confronto era também a situação que eu mais temia. E receber a carta comunicando-nos a chegada para tão próxima data é lógico que me apavorou,
não por mim, mas por ti, minha querida, e não pela chegada deles, mas pela urgência e o pouco tempo qu e eu
tinha para participar-te esta visita inesperada. Analisa comigo os fatos. Vamos prender-nos somente a eles, não permitindo que a emoção interfira, pois, além de sofrermos mais, vamos ter mais dificuldade para encararmos este confronto de que falas. Portanto, vamos por partes, analisando as razões que justifiquem tanto sofrimento. Estamos casados, pois não, minha querida? Não só estamos casados, como também o casamento foi abençoado por Deus, com a benevolência de nosso querido padre Inácio, pois não? E stes são os fatos, concordas? Perguntou Antônio e, como a resposta continuava a ser aquele pranto desconsolado,
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continuou, já não esperando pela resposta dela, pois sabia que não viria, devido ao pranto que não conseguia controlar:
--Tem calma, minha menina, e tenta acompanhar o que digo. Está na hora de termos realmente confiança no passo que demos quando nos casamos. Haja vista o fato de estarmos legalmente casados frente à sociedade e à Igreja. Agora, falemos das causas que nos levaram ao fato; falemos do que consideramos o mais importante, minha querida e, apertando-lhe um pouco a mão, perguntou:
--Por que te casaste comigo, se, na ocasião, eras tão disputada pelos jovens mancebos da sociedade? Dize-me, por que te casaste comigo, Isabel? Perguntou mais ansioso ainda, pois apenas ouvia o pranto.
Isabel parou o choro ao ouvir a estranha pergunta do marido. Respondeu puxando-lhe a mão para o peito, fazendo-o sentir o forte batimento de seu coração e disse-lhe com emoção:
--Ora! Casei-me contigo unicamente porque te amava, Antônio. Como te amo até hoje.
--Pois eu também, minha querida, depois de lutar muitos anos com este sentimento que me consumia, rendi-me a ele, casando-me contigo porque te amava muito. Mais que a tudo neste mundo. E não querendo chocar-te com o que vou dizer, afirmo-te que se nós não tivéssemos casado, com certeza, com muita certeza, eu a teria feito minha amante, pois que o amor que te tenho longe está de ser um sentimento fraternal ou platônico, minha amada, terminou Antônio, deitando a cabeça no colo dela, dividindo com o filho o calor e o aconchego daquele corpo.
Isabel, atônita com a declaração, vivendo aquele momento de profundo entrosamento, comentou, emocionada:
--Estás cheio de razão, meu querido, no que dizes tão sabiamente. Somente uma grande verdade existe neste nosso imenso sofrimento, Antônio. É o fato de nos amarmos. E isso é tão forte em nós, que nada e nem ninguém terá o direito de macular esta nossa realidade. E digo-te com segurança que nada mais me aflige, não depois de ouvir e conscientizar-me da grande verdade que nos traz tanta felicidade. Nós nos amamos, Antônio, e, certo ou errado, estamos juntos legalmente, o que é para mim o mais importante de tudo, meu querido. Nada mais me importa. A partir deste momento, proponho-me a dar-lhes a notícia assim que chegarem, revelando-lhes nossos sentimentos e nossas razões e, se mesmo assim, abrindo-lhes nossos corações, não aceitarem o que está tão óbvio, certamente, com o tempo, eles vão entender e nos abençoar. Agora, se ainda insistirem em não aceitar, e nos criticarem, isto não deverá nos importar, querido, pois estaremos juntos e somente nós... Somente nós é que podemos entender nossos reais motivos para a grande opção que tomamos certo dia, para o futuro de nossas vidas, meu amor. Eu te amo, meu marido, meu Antônio... Eu te amo, como jamais pensei amar alguém... Este foi o maior e único motivo que tive para aceitar- te em casamento, disse Isabel, enquanto acariciava a farta cabeleira preta, agora já mesclada de fios prata, deixando-o ainda mais belo. Tomara coragem de olhar a vida que eles levavam, por opção dos dois, com muita seriedade. Ainda acariciando aqueles cabelos, abaixando-se, beijou-os, levantando aquela cabeça tão querida e olhando-o nos olhos profundamente, de onde pela primeira vez via descerem lágrimas, emocionando-a.
Antônio não resistiu à sinceridade daquela declaração. Emocionado com a coragem e a determinação de sua menina, ele, com lágrimas descendo-lhe pelo rosto, foi quem falou:
--Este também foi o único e predominante motivo que me levou um dia, em completo desespero, a pedir-te que te casasses comigo, pois também te amo. Eu te amo de forma total, pois que não existo por mim, mas por ti. Amo a criaturinha mais complexa que tive o prazer de descobrir tão cedo, amo teu jeito complicado
de ser, teu jeito de viver plenamente, teu jeito simples e espontâneo, amo com paixão esse teu jeito de amar,
minha eterna menina.
Abraçando-se, procuravam fundir-se na coragem daquelas palavras, que para eles muito significavam. Beijaram-se com a paixão que ainda os envolvia, sendo difícil para ambos apartarem-se naquele momento para retomarem a razão e partirem para a lida do dia. Agora, mais dispostos e confiantes, pois, pela segunda vez, decidiam o futuro de suas vidas.
Final dos Capítulos para Apreciação